100 anos da Revolução Russa: 8 de março de 1917, a centelha – parte 2

A Revolução de Fevereiro cria a dualidade de poderes

Iniciada pelas operárias têxteis em 8 de março, em cinco dias a insurreição foi vitoriosa.

Na edição anterior, abordamos os antecedentes da Revolução de Fevereiro, que, no calendário atual eclodiu em 8 de março de 1917 (23 de fevereiro na Rússia da época). Neste artigo utilizaremos as datas do velho calendário, só revogado em 1918 pelo poder revolucionário (1).

Desde 1916, com a Rússia na 1ª Guerra Mundial (1914-18), greves operárias e revoltas camponesas multiplicaram-se contra o envio de 14,6 milhões de homens para o front e a miséria que reinava na retaguarda. Em 22 de janeiro de 1917, aniversário do “Domingo Sangrento” de 1905, 150 mil grevistas demonstraram que não se havia esquecido nem da repressão brutal, nem da experiência que foi a constituição dos primeiros sovietes.


As operárias de Petrogrado acendem o pavio

Na manhã de 23 de fevereiro, operárias têxteis de Petrogrado entram em greve e decidem manifestar-se. Elas recebiam salários miseráveis e não conseguiam sequer alimentar seus filhos. Sua primeira ação foi ir ao bairro de Vyborg pedir aos operários que as apoiassem, arrastando muitos deles até a Duma (2) para exigir “Pão”. Trotsky escreveu a respeito:

“O 23 de fevereiro era o Dia Internacional da Mulher. Os elementos social-democratas se propunham a festejá-lo na forma tradicional: com assembleias, discursos, manifesto etc. Não passou pela cabeça de ninguém que o Dia da Mulher pudesse se converter no primeiro dia da revolução. Nenhuma organização fez o chamamento à greve para esse dia. (…) No dia seguinte, omitindo suas instruções, declararam-se em greve as operárias de algumas fábricas têxteis e enviaram delegadas aos metalúrgicos, pedindo-lhes que acompanhassem o movimento (…) é evidente, portanto, que a Revolução de Fevereiro começou de baixo, vencendo a resistência das próprias organizações revolucionárias; com a particularidade de que essa iniciativa espontânea esteve a cargo da parte mais oprimida e coibida do proletariado: as operárias do ramo têxtil, entre as quais há de se supor que houvesse não poucas mulheres casadas com soldados.”3

Os acontecimentos se aceleram

No dia seguinte, a greve ganha toda Petrogrado, somando à exigência de “Pão” os slogans de “Abaixo a Autocracia” e “Abaixo a Guerra”. Diante da multidão, os policiais e cossacos (4) vacilam. Os manifestantes, em particular as mulheres, buscavam dialogar com eles contra a guerra. Ocorrem episódios em que cossacos recusam atirar contra a multidão e se voltam contra seus oficiais, ou de regimentos de soldados que se juntam, até com banda de música, às passeatas.

Em 25 de fevereiro a greve geral atinge 240 mil trabalhadores na capital imperial. No dia 26, a 4ª Companhia do Regimento Pavlosky – os guarda costas de “Sua Majestade” – rebela-se quando oficiais atiram contra manifestantes, prendendo seus próprios “superiores”.

Em 27 de fevereiro os operários se organizam nas fábricas para sair às ruas e, ao mesmo tempo, outros batalhões se amotinam e se juntam ao Regimento Pavlosvky. Tudo converge para uma grande manifestação à tarde.

Em meio à confusão, é designado um “quartel general” com uma dupla função: soldar o bloco de operários e soldados e decidir os pontos estratégicos a serem ocupados: delegacias de polícia, a fortaleza Pedro e Paulo, os arsenais, estações de rádio e o Palácio Tauride, onde se reunia a Duma. Ao anoitecer do dia 27 todos esses objetivos foram alcançados e a insurreição é vitoriosa.

1º de março: constitui-se o soviete de Petrogrado

Nos últimos dias de fevereiro, nas fábricas em greve e nas casernas já surgiam sovietes, mas a data em que o soviete (conselho) de Petrogrado faz sua primeira sessão foi a de 1º de março: uma assembleia de delegados operários e soldados, eleitos nas fábricas e casernas, que toma medidas de emergência e organiza a distribuição de produtos de primeira necessidade. Exigências, como a jornada de 8 horas, são dirigidas e impostas aos patrões apavorados. Moscou também formou seu soviete e ao final de março as principais cidades da Rússia já haviam elegido os seus conselhos.

O soviete de Petrogrado decreta o “Prikaz 1” (palavra russa para “de­creto” ou “ordem”) com medidas em favor dos soldados, que passam a eleger seus comitês de representantes que devem obedecer ao soviete e são proibidos de entregar suas armas aos oficiais. O decreto proclama também que a questão da paz deve ser resolvida “sem anexações, nem indenizações”.

 

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Soviete de Petrogrado reunido

O primeiro governo provisório

Deputados da Duma, informados que o czar Nicolau 2º iria anunciar sua abdicação em 3 de março, se apressam em formar, no dia 2, um governo provisório. Presidido pelo príncipe Lvov, um aristocrata latifundiário, com antigas autoridades czaristas e membros dos partidos burgueses “outubrista” e constitucional democrata (KD, daí cadetes), o primeiro governo provisório vai ter Kerensky, “socialista independente”, como ministro da Justiça. O presidente do soviete, Tchkheidzé (menchevique), recusa a proposta de entrar nesse governo.

A abdicação de Nicolau 2º foi por ele assinada diante de uma delegação do soviete de Petrogrado. Ele abdica em favor de seu irmão, arquiduque Miguel, mas este se recusa a exercer o poder. É o fim da dinastia Romanov (5), abalando a Europa e o mundo.

O governo provisório dá anistia aos dirigentes socialistas (bolcheviques inclusive), o que lhes permite entrar nos sovietes. Toma medidas democráticas como as liberdades sindical, de reunião, de imprensa e o fim da pena de morte. Anuncia a convocação de uma Assembleia Constituinte, sem data. Mas mantém a Rússia na guerra, ao lado dos imperialismos inglês e francês, pedindo aos soldados que retornem ao front e aos camponeses que não ocupem terras.

O combate pela paz vai ser um dos principais elementos da situação de dualidade de poderes – opondo os sovietes ao governo provisório – que vai perdurar até outubro.

Julio Turra

Notas

1. O antigo calendário Juliano, vigente no Império Russo, tinha 13 dias de defasagem a menos em relação ao calendário usado no mundo ocidental (Gregoriano). 2. “As particularidades do desenvolvimento da Rússia”, tomo 1 – A Revolução de Fevereiro, in “A História da Revolução Russa” de Leon Trotsky.

2. Duma Estatal era uma assembleia de deputados outorgada pelo Czar (Imperador) e a ele submetida, criada após a Revolução de 1905. Existiram quatro Dumas convocadas pelo Czar até outubro de 1917.

3. Leon Trotsky in “A História da Revolução Russa”. Lembremos que bolcheviques e mencheviques eram membros do Partido Operário Social Democrata Russo (POS­DR), daí a expressão “elementos social-democratas”.

4. Os cossacos, povo originário dos limites da Rússia com a Ucrânia, constituíram tropas de cavalaria a serviço do Czar, em troca de privilégios (como não pagar impostos). As unidades cossacas eram usadas nas guerras e na repressão a manifestações (como ocorreu em 1905).

5. A dinastia Romanov governou o Império Russo desde 1613 até 1917, portanto por mais de 300 anos.

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