Sobre a eleição de Donald Trump para presidente nos EUA

As eleições presidenciais norte-americanas expressão da crise do sistema capitalista

Lucien Gauthier

Toda a imprensa internacional dedicou as suas manchetes aos resultados das eleições presidenciais norte-americanas, mostrando assim que a “virada” que teve lugar não é americana, mas mundial. Este resultado é o reflexo, dentro do imperialismo mais poderoso, da crise de todo o sistema de domínio imperialista.

Sendo ele próprio expressão e produto dessa crise, este resultado constitui, por sua vez, um seu factor de aceleração, devido à posição do imperialismo norte-americano em nível do planeta.

A vitória de Trump é, indiscutivelmente, um sinal do impasse do sistema da propriedade privada dos meios de produção, que vê todos os governos, especialmente os das grandes potências imperialistas, entalados entre as exigências do capital financeiro e a resistência dos trabalhadores e dos povos. Esta resistência, que é o motor decisivo, exprime-se no terreno da luta de classes e, em certas circunstâncias, apodera-se de outros terrenos. “Insurreição eleitoral” explica Védrine, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros de Jospin(1), a propósito do Brexit(2) e da eleição de Trump, para descrever a cólera dos povos.

“Todos serão afetados”

É uma crise de todo o sistema, e o conjunto dos dirigentes dos diferentes países, como os economistas e outros especialistas, estão conscientes disso e aterrorizados.

  1. Waechter, responsável da investigação económica na Natixis, explica (Les Echos, 9 de Novembro): “É mais complicado e mais grave que o Brexit ou o choque petrolífero. Com a eleição de Trump, o mundo inteiro entra num novo paradigma. A eleição de Reagan e de Thatcher tinha aberto a via a quarenta anos de globalização e esta página está talvez em vias de ser voltada com o sinal da eleição do ultra proteccionista Trump. É um risco importante e vai ser preciso que os mercados financeiros tenham em conta este novo fenômeno que vai trazer muita volatilidade e incertezas aos mercados (…). Todos pensavam que para sair desta situação de crescimento frágil e lento seria preciso passar por mais cooperação internacional. O voto a favor do Brexit foi o primeiro sinal contrário; a eleição de Trump, o segundo. Cada um arrisca tentar encontrar no seu canto uma solução para satisfazer os seus eleitores. Mudar de paradigma e é muito preocupante (…). O principal risco é ter uma diminuição do comércio mundial ainda mais forte do que hoje, o que provocaria um choque negativo sobre o crescimento. Todos serão afetados …”.

Como se  a “diminuição do comércio mundial” e o pânico dos bancos centrais perante a enorme bolha financeira que eles próprios fizeram inchar desde há anos não tivessem provocado, já, um início de desmembramento do mercado mundial.

Multinacionais e Estados nacionais

O capital financeiro não pode ser identificado com os estados nacionais porque as multinacionais e os monopólios já se emanciparam há muito tempo das fronteiras nacionais e, no decurso dos últimos trinta anos, reforçaram-se como verdadeiras potências internacionais procurando ditar, ainda mais, as suas leis aos estados nacionais. Porque para aumentar a sua procura do lucro, o capital financeiro tem necessidade do mercado externo; quer dizer, do mercado mundial. Ele tem necessidade de rebentar qualquer barreira que constitua um obstáculo à sua penetração. E, para fazer isto, utiliza, contudo, os estados nacionais, à conta dos seus próprios interesses. É por isso que Obama reagiu violentamente às ameaças de sanções contra a Apple, em nome da defesa dos “interesses americanos” protegendo uma empresa que não paga os seus impostos nos EUA e que produz na Ásia. Como medida de retaliação, Obama fez sancionar o Deutche Bank.

Durante a sua campanha, Trump fez discursos contra a Apple, para que esta relocalize as suas fábricas nos EUA (a Apple emprega setenta e seis mil assalariados nesse país e cerca de dois milhões no resto do mundo). Todos os economistas concordam em dizer que se trata de uma medida ilusória. Do ponto de vista do próprio capitalismo, o isolacionismo e o proteccionismo são uma impossibilidade utópica, dado o imbricado de toda a economia mundial e do mercado mundial. As deslocalizações para a China, para o resto da Ásia ou para o México – para baixar o custo do trabalho – não podem ser proibidas por Estados imperialistas submetidos às exigências deste mesmo capital financeiro. Em trinta anos, o capital financeiro norte-americano suprimiu também mais de 30% dos empregos industriais nos EUA, atirando para o desemprego, para a precariedade e a pobreza milhões de operários americanos.

Trump brandiu a espada contra “os três grandes” da indústria de automóvel americana, que acusa deslocalizar sua produção e de desindustrializar os Estados do norte dos EUA.

“Em 9 de Novembro, no dia seguinte à eleição de Trump, a General Motors – o primeiro construtor de automóveis americano – anunciou a supressão de mais de dois mil empregos nas fábricas do norte dos EUA. Uma provocação e uma forma de aviso, no dia seguinte à vitória do candidato republicano que tinha protestado contra as reduções de emprego nas indústrias automóveis» (Le Monde, 11 de Novembro).

As zonas de comércio livre em vias de desagregação

As zonas de comércio livrepostas de pé na Europa, na Ásia e na América Latina com o objectivo de desregulamentar para satisfazer o capital financeirosão hoje um instrumento ineficaz para ir até ao fim das exigências destruidoras impostas pelas multinacionais. Esta necessidade dos mercados externos exprime-se, de forma brutal, no facto que as grandes companhias americanas detêm em liquidez 2,5 trilhões de dólares no exterior dos EUA, que não contam repatriar. É a razão pela qual o capital financeiro norte-americano empurra com todas as suas forças para fazer saltar todas as barreiras, normas e regulamentações que o impedem de realizar o seu capital.

É por isso que estas zonas de comércio livre estão em via de desintegração, sob a pressão contraditória das exigências deste mesmo capital financeiro e dos Estados nacionais que lhe estão, no entanto, submetidos, mas que estão aterrorizados pelos riscos do surgimento da classe operária e dos povos dos seus próprios países. Isto provoca uma crise importante em todos estes governos da União Europeia, abrindo brechas nas quais as massas podem penetrar.

A política do imperialismo em direcção aos países da América latina, da África e da Ásia leva igualmente a por em causa tudo o que foi conquistado pela classe operária, assim como leva ao desmembramento das nações. Daí o sentido da ofensiva de uma fracção do capital norte-americano que, em ligação com a oligarquia brasileira, organizou o golpe de Estado destituindo a presidente Dilma, membro do Partido dos Trabalhadores (que tinha, no entanto, satisfeito um sem número de exigências do imperialismo norte-americano), a fim de ser constituído um Governo que, não somente volte atrás nas conquistas da luta de classes destes últimos quinze anos, mas também sobre os direitos adquiridos desde há vários decênios. Esta mesma ofensiva provoca a resistência do povo brasileiro e dos povos do resto da América Latina.

A classe operária procura defender-se

É esta a marca característica da situação mundial que se expressou na Europa nos cinco meses de mobilização pela retirada da reforma da Lei do Trabalho em França. E, nos próprios EUA, fracções importantes da classe operária exprimiram – com a sua abstenção massiva e seu voto – a sua rejeição e sua cólera.

Desprovidas de um partido, pronunciaram-se contra Clinton, que mais abertamente simbolizava Wall Street. Esta posição da classe operária norte-americana encontrará a forma de expressar-se nas semanas e nos meses que estão por vir, confrontada com a política do governo de Trump e fá-lo-á no seu terreno que é o da defesa dos direitos e das garantias dos trabalhadores. Por isso, a situação no seio da AFL-CIO (central sindicação dos EUA, nota do editor) é um elemento de extrema importância para o futuro.

Trata-se de um período de incerteza que se abre para todo o planeta. Numerosos comentarias, especialmente de esquerda e de extrema-esquerda, apresentam Trump como “o mal pior” (sugerindo assim que Clinton teria sido o “mal menor”). O multimilionário Trump, com as suas reflexões racistas e misóginas (machistas), expressa o lodo da sociedade capitalista em decomposição. Hillary Clinton, a “distinta” dama de Wall Street, não tem nada a invejar-lhe… Toda esta gente se esquece que a sociedade norte-americana, tal como o resto do mundo, é regida pela divisão da sociedade em classes e, portanto, pela luta de classes.

E agora?

O Financial Times, de 11 de Novembro, afirma: “Trump procura tranquilizar os seus aliados chocados e os investidores nervosos”.

Depois de eleito, Trump fez inúmeras declarações de apaziguamento, em particular no plano da economia, indicando – ao contrário do que ele próprio tinha declarado durante a sua campanha – que é necessário desregulamentar a economia dos EUA e em nível mundial. Ele começou a constituir a sua equipe presidencial retomando o diálogo com os dirigentes do Partido Republicano, aqueles que havia zombado durante a campanha eleitoral, e nomeando como primeiro conselheiro presidencial um dos principais dirigentes do Partido.

Nesta situação de incerteza mundial, não poderá existir um “homem providencial” para o capital em crise. Desde há muito tempo que o capital financeiro dos EUA tem necessidade de um poder forte, para esmagar a classe operária norte-americana sob o seu tacão de ferro e disciplinar os povos de todo o mundo. Mas ele tem um poder fraco e em crise que continuou a enfraquecer ao longo dos últimos anos. E a eleição de Trump sinaliza uma nova etapa desta crise mundial.

Reina a incerteza em todo o planeta, ninguém sabe oque poderá acontecer e há risco e ameaça de intensificação da guerra, e mesmo de conflitos armados entre Estados; mas existem também, de maneira contraditória, as explosões revolucionárias e o levantamento dos povos contra o caos e a barbárie imperialista.


Os sindicatos durante a campanha presidencial

Devan Sohier

O Congresso da AFL-CIO foi marcado por uma resolução, aprovada por unanimidade, que reclamava uma Segurança Social baseada no salário diferido. Esta reivindicação opunha-se, de facto, ao projecto designado como “Obamacare’’.

Nas Eleições primárias do Partido Democrata, esta questão surgiu de novo. O programa de Hillary Clinton previa reforçar as limitações ao Obamacare (particularmente, com uma subida das contribuições anuais e das taxas moderadoras). O programa de Sanders defendia a criação deste tipo de Segurança Social (da AFL-CIO – NdT). Sobre esta base, alguns sindicatos da AFL-CIO, entre os quais se contavam alguns importantes – como o Sindicato dos Portuários (ILWU) ou o Sindicato das Enfermeiras (NNU) – apoiaram Sanders nas Primárias democratas.

Contudo, seguindo o exemplo do Sindicato da Educação (AFT), ai incluindo os sindicatos que haviam apoiado Clinton desde o princípio, dedicaram poucos esforços à sua campanha: nas suas notas internas, o tema da eleição presidencial só era referido no final. Quanto ao ILWU o ao NNU, abertamente não fizeram nenhuma campanha: suas páginas na Internet sequer mencionavam a candidatura de Clinton.

Pelo seu lado, o ILWU reproduz, na capa do seu Boletim um artigo que pergunta: “Afinal o que ocorreu? Que espécie de cegueira pode levar os nossos dirigentes a preparar a derrota na eleição que nos anunciavam como sendo a mais importante das nossas vidas?” O ILWU continua no quadro do Partido Democrata, mas ataca o balanço que é feito desta campanha.

Esta é uma questão central. A velha reivindicação do movimento operário norte-americano de que a AFL-CIO inicie la criação de um Labor Party (Partido dos Trabalhadores), com o apoio dos sindicatos, sempre se confrontou com a Direcção da AFL-CIO, que, a cada eleição, apoia o Partido Democrata. Muitos sindicatos, com mais “militância” (que não são habitualmente apoiantes do Partido Democrata) colocaram-se, desta vez, no seu quadro, devido à candidatura com fraseologia “esquerdista” de Sanders. Alguns sindicatos que apoiaram Sanders não o seguiram quando ele apelou a votar em Clinton (pelo seu lado, muitos grupos de extrema-esquerda, viam em Sanders alguém que poderia “transformar” o Partido Democrata em Partido dos Trabalhadores).

Depois das eleições presidenciais, as reivindicações continuam a existir. A questão do acesso aos cuidados de saúde continua colocada, e a necessidade de obter segurança social continua a ser mais urgente que nunca. A batalha de militantes sindicalistas para que a AFL-CIO actue de acordo com a resolução do seu último Congresso está na ordem do dia especialmente porque a situação do movimento sindical está agitada. Muitos sindicalistas querem que as coisas mudem e, sobretudo, colocam a questão de como resistir aos novos ataques em preparação.

A este respeito, é significativa a reacção de Trumka – o Presidente da AFL-CIO (a principal Confederação sindical) e apoiador de H. Clinton desde a primeira hora – que, num comunicado, reconhece a derrota eleitoral e conclui: “Vamos continuar a trabalhar para representar todos quantos lutam pela dignidade humana básica para reforçar as nossas fileiras e dar aos trabalhadores uma voz forte e unida.” Trumka, como todos, vê o futuro incerto, sobretudo em relação à evolução da própria AFL-CIO.

Notas:

(1) Lionel Jojin: político francês. Ocupou o cargo de primeiro-ministro da Franca pelo Partido Socialista Francês, entre 3 de Junho de 1997 a 6 de Maio de 2002.

(2) Brexit é a abreviação de Britain Exit, uma expressão inglesa que significa “Saída Britânica”, na tradução literal para o português. Este termo se refere ao plano que prevê a saída do Reino Unido da União Europeia (UE).


Este dossiê foi publicado por Informations ouvrières (Informações Operárias, semanário do Partido Operário Independente, de França), na sua edição n° 428, de 17 de Novembro de 2016. A suas duas primeiras páginas foram traduzidas para o português.

 

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