Laicidade e religião

Tradução: Claudio Soares

Publicamos um texto de Lênin datado de dezembro de 1905 (1) que mantém, 110 anos depois, um conteúdo particularmente atual. Esse texto foi publicado em 3 de dezembro de 1905, alguns dias antes da adoção, na França, de uma lei de separação entre as igrejas e o Estado (9 de dezembro de 1905). Nesse artigo, intitulado “Socialismo e Religião”, Lênin explica por que a religião deve ser uma questão privada em relação ao Estado, mas precisa o sentido que é necessário dar a essa fórmula pelo partido operário independente. Para este último, com efeito, a religião não é de modo algum uma questão privada que não lhe cabe combater no plano das ideias. Muito ao contrário. De um ponto de vista programático, o problema se coloca de modo diferente. Lênin desenvolve amplamente esse ponto. A época atual coloca, além disso, a obrigação para os militantes de distinguir claramente a natureza particular do partido operário, cujo objetivo é a realização do socialismo pelas massas exploradas. Outras formas de agrupamento da classe operária, como os sindicatos, têm, como se sabe, suas especificidades. As tradições nacionais devem ser levadas em conta de forma escrupulosa.

“A sociedade moderna está fundada inteiramente na exploração das grandes massas da classe operária por uma ínfima minoria da população pertencente às classes de proprietários de terras e de capitalistas. Essa é uma sociedade de escravagistas, porque os operários ‘livres’ que trabalham a vida inteira para o capital só têm ‘direito’ aos meios de existência estritamente indispensáveis à conservação dos escravos para produzir os lucros, que permitem assegurar e perpetuar a escravidão capitalista.

A opressão econômica que pesa sobre os operários provoca e engendra inevitavelmente, sob diversas formas, a opressão política, o aviltamento social, o embrutecimento e a degradação da vida intelectual e moral das massas. Os operários podem obter uma liberdade política maior ou menor a fim de lutar por sua libertação econômica, mas nenhuma liberdade os livrará da miséria, do desemprego e da opressão enquanto o poder do capital não for abolido. A religião é um dos aspectos da opressão espiritual que acabrunha sempre e em todos os lugares as massas populares, esmagadas por um trabalho perpétuo em proveito de outrem, pela miséria e pelo isolamento. A fé em uma vida melhor no além nasce inevitavelmente da impotência das classes exploradas em sua luta contra os exploradores, assim como a crença em deuses, em diabos e em milagres nasce da impotência do selvagem em sua luta contra a natureza. Para aqueles que sofrem durante toda a vida na miséria, a religião ensina a paciência e a resignação aqui embaixo, embalando-os com a esperança de uma recompensa celestial. Quanto àqueles que vivem do trabalho de outrem, a religião ensina a beneficência aqui embaixo, oferecendo-lhes assim uma fácil justificativa para sua existência como exploradores e vendendo-lhes por bom preço os bilhetes que dão acesso à felicidade divina. A religião é o ópio do povo. A religião é uma espécie de álcool espiritual no qual os escravos do capital afogam sua imagem humana e sua reivindicação de uma existência, por pouco que seja, digna do homem.

Mas o escravo que tomou consciência de sua condição e se ergueu para a luta que deve alforriá-lo deixa de ser pela metade um escravo. O operário consciente de hoje, formado pela grande indústria, educado pela cidade, afasta com desprezo os preconceitos religiosos, deixa o céu para os padres e os tartufos burgueses e se dedica à conquista de uma existência melhor sobre a terra. O proletariado moderno se coloca do lado do socialismo que apela à ciência para combater as fumaças da religião e, organizando o operário em uma verdadeira luta por uma melhor condição terrena, o libera da crença no além.

A religião deve ser declarada um assunto privado. É assim que se define ordinariamente a atitude dos socialistas em relação à religião. Mas importa determinar exatamente o significado dessas palavras, a fim de evitar qualquer mal-entendido. Exigimos que a religião seja um assunto privado em relação ao Estado, mas não podemos de nenhuma maneira considerar a religião um assunto privado no que concerne ao nosso próprio partido.

O Estado não deve se misturar à religião, as sociedades religiosas não devem ser ligadas ao poder de Estado. Cada pessoa deve ser perfeitamente livre para professar qualquer religião ou não reconhecer nenhuma, ou seja, ser ateu, como em geral são os socialistas. Nenhuma diferença de direitos civis motivada por crenças religiosas deve ser tolerada. Qualquer menção à crença dos cidadãos nos documentos oficiais deve ser incontestavelmente suprimida. O Estado não deve conceder nenhuma subvenção nem à Igreja nem às associações confessionais ou religiosas, que devem se tornar associações de cidadãos correligionários, inteiramente livres e independentes em relação ao poder. Apenas a realização total dessas reivindicações pode dar fim a esse passado vergonhoso e maldito no qual a Igreja estava dominada pelo Estado, os cidadãos russos estando por seu lado dominados pela Igreja do Estado, no qual existiam e eram aplicadas leis inquisitoriais medievais (mantidas até hoje em nossas disposições legais), que perseguiam a crença ou a descrença, violavam a consciência e faziam as promoções e as remunerações oficiais depender da distribuição de tal ou qual elixir clerical. A separação completa entre Igreja e Estado é a reivindicação do proletariado socialista em relação ao Estado e à Igreja modernos.

A revolução russa deve levar ao atendimento dessa reivindicação, como parte integrante e indispensável da liberdade política. Com relação a isso, a revolução russa está colocada em condições particularmente favoráveis, com o detestável regime burocrático da autocracia feudal e policial tendo provocado o descontentamento, a efervescência e a indignação no próprio clero. Por mais miserável e ignorante que seja o clero ortodoxo russo ele, no entanto, acordou no fracasso da queda do antigo regime, do regime medieval na Rússia. O próprio clero apoia hoje a reivindicação de liberdade, se levanta contra o burocratismo oficial e o arbítrio administrativo, a denúncia policial imposta aos ‘ministros de Deus’. Nós, socialistas, devemos apoiar esse movimento, empurrando até o fim as reivindicações dos representantes honestos e sinceros do clero, fazendo nossas as suas palavras quando eles falam em liberdade, exigindo que quebrem resolutamente qualquer ligação entre a religião e a polícia. Se vocês são sinceros, devem reclamar a separação completa entre Igreja e Estado, escola e Igreja, e demandar que a religião seja declarada assunto privado, e isso de modo absoluto e categórico. Ou então vocês não subscrevem essas reivindicações consequentes de liberdade, e isso significa que são ainda prisioneiros de tradições inquisitoriais, que querem sempre ter acesso às promoções e às remunerações oficiais, que não creem na potência de suas armas espirituais, que continuam a aceitar as gorjetas do Estado; e então os operários conscientes da Rússia declaram a vocês uma guerra sem misericórdia.

Em relação ao partido do proletariado socialista, a religião não é um assunto privado. Nosso partido é uma associação de militantes conscientes de vanguarda, que combatem pela emancipação da classe operária. Essa associação não pode e não deve manter-se indiferente à inconsciência, à ignorância ou ao obscurantismo que se reveste sob a forma de crenças religiosas. Reclamamos a separação completa entre Igreja e Estado a fim de combater a bruma da religião com armas pura e exclusivamente ideológicas: nossa imprensa, nossa propaganda. Mas nossa associação, o Partido Operário Social-Democrata da Rússia, quando de sua fundação, se deu como objetivo, entre outros, combater qualquer bestialização religiosa dos operários. Para nós, a luta de ideias não é um assunto privado; ela interessa a todo o partido, a todo o proletariado.

Mas, se é assim, por que não nos declaramos ateus em nosso programa? Por que não proibimos os cristãos e os crentes de entrar em nosso partido?

A resposta a essa questão fará ressaltar a diferença muito importante de pontos de vista sobre a religião entre a democracia burguesa e a social-democracia.

Nosso programa é inteiramente baseado em uma filosofia científica, rigorosamente materialista. Para explicar nosso programa, é necessário, então, explicar as verdadeiras raízes históricas e econômicas da bruma religiosa. Nossa propaganda compreende necessariamente a do ateísmo; e a publicação, com esse fim, de uma literatura científica que o regime autocrático e feudal proibiu e perseguiu severamente até hoje deve tornar-se agora um dos ramos da atividade de nosso partido. Teremos provavelmente de seguir o conselho que Engels deu um dia aos socialistas alemães: traduzir e propagar entre as massas a literatura francesa do século 18, ateia e desmistificadora.

Mas de maneira nenhuma deveremos nos extraviar nas abstrações idealistas daqueles que colocam o problema religioso em termos de ‘razão pura’, fora da luta de classes, como fazem muitas vezes os democratas radicais saídos da burguesia. Seria absurdo crer que, em uma sociedade fundada sobre a opressão sem limites e o embrutecimento das massas operárias, os preconceitos religiosos possam ser dissipados apenas pela propaganda. Esquecer que a opressão religiosa da humanidade não passa do produto e do reflexo da opressão econômica no interior da sociedade seria dar prova de mediocridade burguesa. Nem os livros nem a propaganda esclarecerão o proletariado se ele não for esclarecido pela luta que ele próprio sustenta contra as forças tenebrosas do capitalismo. A unidade dessa luta realmente revolucionária da classe oprimida que combate para criar um paraíso sobre a terra nos importa mais que a unidade de opinião dos proletários sobre o paraíso do céu.

Eis por que, em nosso programa, não proclamamos e não devemos proclamar nosso ateísmo; eis por que não proibimos e não devemos proibir que se aproximem de nosso partido os proletários que conservaram tais ou quais restos de seus antigos preconceitos. Preconizaremos sempre a concepção científica do mundo; é indispensável que lutemos contra a inconsequência de certos ‘cristãos’, mas isso não quer dizer de modo algum que seria preciso colocar a questão religiosa em primeiro plano, lugar que não lhe pertence; que seria preciso dividir as forças engajadas na luta política e econômica verdadeiramente revolucionária em nome de opiniões de terceira ordem ou de quimeras, que perdem rapidamente qualquer valor político e são muito rapidamente relegadas ao quarto de despejo no próprio decorrer da evolução econômica.

A burguesia reacionária tem tido o cuidado, em todos os lugares, de atiçar os ódios religiosos – e começa a fazê-lo entre nós – para atrair a atenção das massas para esse lado e desviá-las dos problemas econômicos e políticos realmente fundamentais, problemas que o proletariado russo agora resolve, ao se unir na prática em sua luta revolucionária. Essa política reacionária de fracionamento das forças proletárias, que se manifesta hoje sobretudo pelos pogromes dos Cem-Negros (2), encontrará amanhã talvez medidas mais sutis. Nós lhes oporemos em qualquer caso uma propaganda calma, firme, paciente, que se recusa a excitar desacordos secundários, a propaganda da solidariedade proletária e da concepção científica do mundo.

O proletariado revolucionário terminará por impor que a religião se torne para o Estado um assunto verdadeiramente privado. E, nesse regime político desembaraçado do mofo medieval, o proletariado engajará uma luta ampla e aberta pela supressão da escravidão econômica, causa verdadeira da bestialização religiosa da humanidade. ”

Notas:

1) V. I. Lênin, “Obras”, tomo 10, “Socialismo e religião”, novembro de 1905-junho de 1906, páginas 80-85 (nota da edição francesa).

2) Cem-Negros eram bandos criados na Rússia, pela polícia czarista, contra o movimento revolucionário. Entre outras ações, eles realizavam pogromes (pilhagens, agressões e assassinatos) contra os judeus. (Nota do tradutor).


Extraído da Carta de A Verdade nº 822 de 13 de setembro de 2016. Publicação da seção francesa da 4 Internacional

Publicado originalmente em Novaia Jizn” nº 28 em 3 de dezembro de 1905

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