O Banco Central e os bancos na crise

Sem controle de outras instâncias do setor público, a autoridade monetária atuará em consonância com os lobbies bancários

Paulo Nogueira Batista
Revista Carta Capital – 17/04/2020

A crise produziu virtual unanimidade entre economistas quanto à urgência de uma rápida ampliação do gasto público e do estoque de moeda . Ora, como dizia Nelson Rodrigues, toda unanimidade é burra . Burra porque, tal como a estatística e o biquíni, esconde o essencial. No caso em tela, ela joga o foco sobre uma questão macroeconômica – a estabilização da demanda agregada – e desvia atenção de outra dimensão essencial – a questão distributiva. E justo agora que está em curso uma tremenda socialização de prejuízos, por meio de medidas de política fiscal e, em especial, da ação do Banco Central.

Corremos o risco de experimentar uma concentração brutal da renda e da riqueza – isto num país que exibe uma das piores distribuições do planeta. Gastos e injeções de recursos que beneficiam setores de alta renda e riqueza não só agravam a elevada concentração de renda como produzem em geral menos ampliação da demanda .

A observação vale, a fortiori, para medidas que estão sendo tomadas pelo BC. Pouco ajuda encharcar os bancos de liquidez, de forma horizontal. Um exemplo disso é a decisão de reduzir os depósitos compulsórios dos bancos no BC. Sem direcionamento e contrapartidas claramente estabelecidas, os compulsórios liberados vão simplesmente engordar o colchão de liquidez dos bancos .

Uma consequência prática da diminuição dos compulsórios é a mudança para pior da composição da dívida pública. Os recursos liberados são aplicados pelos bancos em títulos federais. Cai um passivo relativamente barato e sob controle do Estado – os depósitos compulsórios dos bancos junto à autoridade monetária – e sobe na mesma medida um passivo mais caro e de prazo curto – a dívida pública mobiliária em poder do mercado. Aumentam, assim, os resultados dos bancos à custa das finanças governamentais. Como o crédito bancário não cresce, nada se alcança em termos de estabilização da demanda efetiva. A renda flui para os bancos e seus proprietários, e não circula. Principais resultados em poucas palavras: aumento da dívida do Tesouro, mudança e encarecimento do passivo consolidado do Tesouro e do BC, aumento da liquidez e dos lucros dos bancos, ausência de efeitos sobre a demanda e o crédito.

O Banco Central brasileiro tem historicamente uma relação de dependência problemática com os bancos, que terá provavelmente consequências nefastas na crise atual. O BC deveria supervisionar e regular o sistema bancário, com isenção e autonomia em relação a interesses financeiros privados. Mas não alcança senão parcialmente esses objetivos.

Esse é um dos temas abordados em livro que publiquei recentemente (O Brasil Não Cabe no Quintal de Ninguém, Editora LeYa, 2019). O problema está na forma de constituição da diretoria do BC, que torna a instituição vulnerável à influência dos bancos que deveria regular, com prejuízo para o interesse 
público. É a chamada porta giratória. O fenômeno não é exclusivamente brasileiro, mas se manifesta entre nós de forma particularmente clara. Executivos oriundos do mercado financeiro privado, e destinados a retornar a ele, são chamados a integrar a diretoria do BC. No exercício do cargo de presidente ou diretor do BC são obrigados, por assim dizer, a dançar conforme a música – no interesse, claro, da sua volta a funções ainda mais prestigiadas e bem-remuneradas em instituições financeiras privadas. Trata-se, em última análise, de uma forma sutil, intransparente de corrupção – palavra forte, porém apropriada, acredito.

No governo Temer, por exemplo, o BC foi presidido por llan Goldfayn, paquidérmica figura com origem no ltaú, que, depois de curta quarentena, obteve uma sinecura no Credit Suisse. Foi substituído no comando do BC por um executivo do Santander, Roberto Campos Neto, cujo destino após a passagem pelo setor público será – posso apostar – algum cargo prestigiado no mercado financeiro privado.

Com o argumento de que precisa ajudar a salvar a economia da depressão, Campos Neto acionou diversos instrumentos e pediu autorização constitucional para ampliar os mecanismos de intervenção da autoridade monetária, estendendo-os inclusive à compra no mercado secundário de papéis de empresas não financeiras. As medidas podem facilmente levar ao uso 
impróprio dos recursos à disposição do Estado nacional. Na linha do que argumentei acima, elas tendem a resultar em ampliação ou encarecimento da dívida pública, benefícios para os bancos e concentração da renda – com pouco impacto na estabilização da economia. Absurdo, mas não inesperado. Sem controle de outras instâncias do setor público, recebendo basicamente carta branca, o BC atuará em consonância com os lobbies bancários.

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