“Como se um país como a Itália não pudesse ficar duas semanas sem fabricar carros!”

Entrevista com Eliana Como, representante de Riconquistiamo Tutto, tendência de oposição da Confederação Geral Italiana do Trabalho (CGIL), concedida ao jornal francês “Informações Operárias”

O que você pode nos dizer sobre a crise da saúde na Itália?

Antes de qualquer coisa, é importante lembrar-se de que a situação é mais trágica do que dizem as autoridades. No epicentro da crise, em Bérgamo, onde estou “presa” há mais de um mês, muitos mortos não são computados porque eles morrem sós, sem terem tido acesso às estruturas de saúde, em suas casas ou em asilos, que se tornaram verdadeiras bombas infectuosas muito perigosas, tanto para os moradores quanto para os funcionários.

Muitos morrem sem diagnóstico e, assim, não entram nas cifras oficiais. O número de mortes em Bérgamo, em comparação com o mesmo período de 2019, quadruplicou: mais de 4.500 mortos em um mês. Nos hospitais do Norte, especialmente na Lombardia, todos os funcionários estão literalmente no modo de sobrevivência há mais de um mês, prisioneiros de um ritmo frenético, sem a segurança necessária. Muitos médicos adoeceram, particularmente em Bérgamo. O problema é que, nas últimas décadas, a saúde pública italiana sofreu cortes no orçamento e no número de funcionários. Faltam postos de terapia intensiva e médicos.

Houve várias greves nas últimas semanas: quais eram as reivindicações?

Os trabalhadores e as trabalhadoras estão pagando um preço alto por causa dessa crise de saúde. As medidas tomadas pelo governo italiano desde o início têm sido muito contraditórias e pesam muito sobre os funcionários. No primeiro momento, naquele que demandou um esforço enorme, sem garantia mínima de segurança. Além da saúde, há também os setores de distribuição de alimentos, transporte, serviços públicos, serviços de limpeza industrial, etc. No segundo momento, o peso dessa crise se concentrou nos salários dos trabalhadores. As garantias de renda para quem não está trabalhando no momento devido ao fechamento de fábricas chegaram atrasadas e mal cobrem 50% do salário de um trabalhador básico. Muitos outros perderam seu trabalho porque este era precário. O governo concedeu apenas 600 euros, mas eles ainda não os receberam e quem sabe quando os receberão…  Aqueles que trabalham na noite não receberam nada.

Particularmente no Sul, onde o desemprego e a pobreza já estavam mais presentes, é explosivo, há cada vez mais problemas, as pessoas não conseguem evitar isso.

As greves da meados de março, no entanto, tiveram outro objetivo. Até o dia 22 de maço, a maior parte das fábricas, mesmo aquelas não essenciais, continuaram funcionando (e infelizmente ainda há muitas). Os grevistas demandavam fechar todos os setores não-essenciais, sobretudo os setores da manufatura. Houve uma forte esquizofrenia: de um lado o governo nos bombardeou de instruções e obrigações para ficar em casa; de outro, tivemos que ir trabalhar todos os dias, como se nada estivesse acontecendo, porque nossa saúde estava sujeita ao lucro e ao imperativo absoluto de continuar produzindo. Como se um país como a Itália não pudesse ficar duas semanas sem fabricar carros!

Qual seu ponto de vista sobre o protocolo assinado dia 14 de março entre o governo, a Confindustria (central patronal), outras associações empresariais e as centrais sindicais?

À medida que o medo e a raiva aumentavam entre os trabalhadores forçados a ir trabalhar, o protocolo de 14 de março se concentrou num slogan irreal e equivocado, o de trabalhar com total segurança. Para muitos trabalhos, sobretudo nas fábricas, é impossível, não há possibilidade de respeitar a distância de segurança. E é igualmente irrealista pensar que os meios de proteção chegariam, já que não os há sequer para o pessoal da saúde! E, ainda, seria criminoso tê-los, pois eles faltariam nos hospitais. Perdemos, assim, um tempo precioso, com um protocolo para as empresas praticamente inútil. A única segurança possível para que os próprios trabalhadores não se tornem transmissores da doença uns para os outros, teria sido, desde o início, fechar as fábricas cuja produção não era essencial. Porque, mesmo partindo do princípio de que nas fábricas onde os sindicatos estivessem mais presentes, nós teríamos conseguido fazer respeitar as medidas de segurança, isso seria impossível em toda uma miríade de pequenas empresas artesanais, onde o sindicato é pouco presente. Não há controle possível sobre estas empresas, a não ser com o fechamento definitivo decretado pelo governo. Além disso, aqueles que trabalham lá são principalmente precários e migrantes, que muitas vezes não têm a possibilidade de tirar licença-médica por pressões e chantagem contra eles.

Na minha visão, as direções nacionais dos sindicatos demoraram demais a compreender que a única solução seria impor ao governo o fechamento, apesar da oposição feroz da Confindustria. O governo só chegou a realizar o fechamento dos não-essenciais no dia 22 de março, um mês após o início da crise, com 4 mil mortes na Lombardia! Não somente foi atrasado, mas foi também pouco eficaz. Porque permaneceram abertos, na prática, setores não-essenciais, me refiro aos bancos, às seguradoras e aos carteiros. E porque numerosas empresas, as mesmas não-essenciais, podem solicitar licenças e permanecer abertas se elas estiverem dentro da cadeia produtiva considerada “essencial”. Mas como isso pode ser definido? Graças a uma “auto-declaração” da própria empresa. De modo que, em Bérgamo, 1800 empresas estão funcionando, mesmo se elas não produzem nada de essencial. É criminoso.

E agora?

No momento, moro em Bérgamo (Lombardia). Acredite, meu estado de espírito é o de uma pessoa que está passando por uma guerra. Focamos no essencial e achamos difícil planejar o futuro. No presente, o essencial é impedir que os trabalhadores sejam bucha de canhão para que as fábricas não fechem, ou porque os trabalhos indispensáveis não se desenvolvem em condições de segurança (por exemplo, nos setores da distribuição alimentar e de limpeza, onde a situação geralmente é desesperadora). Sabe-se também que tudo isso levará a uma crise econômica, e que o risco é que sejamos nós que paguemos esse preço. Eu pensava assim antes, mas agora isso se tornou um imperativo moral. Os patrões se comportam de maneira cínica, perfeitamente criminosa, opondo sem escrúpulos seus interesses à nossa saúde. E o governo muitas vezes escreveu decretos ditados por eles. Nenhuma conciliação é possível com esses parceiros. No futuro, eu penso que nem um único euro deve ir para a saúde privada. Precisamos de mais recursos para a saúde pública, mesmo que tenhamos que retirar recursos dos gastos militares, que na Itália estão entre os mais altos da Europa! Quando começarmos a falar sobre salários e contratos coletivos novamente, teremos que lembrar disso.

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