100 anos da Revolução Russa – parte 10: A revolução foi traída mas o legado de Outubro sobrevive

Muitos se perguntam como ava­liar o legado da Revolução de Outubro de 1917, diante do fato que a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), fundada ao final da guerra civil em 1922, tenha sido dissolvida em 1991.

Os inimigos da revolução socia­lista, defensores do caráter “eterno” do modo de produção capitalista, se comprazem em apresentar as coisas, e o fizeram fartamente neste centená­rio, da seguinte forma: a revolução russa só poderia levar ao desastre, pois Stálin seguiu Lênin ao impor a ditadura do partido único, com o cortejo de mentiras, assassinatos e repressão que foi o stalinismo; como o partido bolchevique tornou-se instrumento de opressão das massas, além de não ser necessário tal tipo de partido, estaria “provado” que a revolução “não deu certo” como demonstra o fim da URSS.

É uma falsa visão baseada em aspectos superficiais, que apaga as contradições e choques internos ocorridos na Rússia soviética que, por sua vez, refletiam a luta de classes in­ternacional. É uma visão interessada em “criminalizar” qualquer processo revolucionário e a própria luta dos trabalhadores contra a exploração capitalista.

Curiosamente ela é retomada, nes­te ano, pelo governo Putin da Rússia, herdeiro da burocracia stalinista que, através de sucessivos dirigentes do Partido Comunista da União Soviéti­ca (PCUS), desde a morte de Stálin1, continuaram a preparar o terreno para a restauração da propriedade privada dos grandes meios de pro­dução até se chegar à “Perestroika” e “Glasnost” de Gorbatchev e Bóris Yeltsin que terminaram por dissolver a URSS.2

 As bases da contrarrevolução

Um marxista, ao contrário, deve buscar a explicação dos fenômenos históricos, como a degeneração stali­nista do partido bolchevique, da In­ternacional Comunista e da própria revolução russa, em bases materiais e na luta de classes internacional.

Com efeito, logo após a tomada do poder pelos sovietes em outubro de 1917, o imperialismo respondeu com a guerra civil e a intervenção de potências estrangeiras (França, Reino Unido, Estados Unidos, Japão e outras) no território russo ao lado do Exército Branco. Eles se enfren­taram com o Exército Vermelho, organizado por León Trotsky, entre 1918 e 1921, quando são derrotados a partir de um esforço extraordinário dos operários e camponeses para preservar as bases da revolução, a saber, a expropriação da burguesia e da nobreza, a propriedade coletiva dos meios de produção.

Foram quatro anos de penúria e desorganização da produção, que cobraram o seu preço, inclusive no desaparecimento físico de boa parte da vanguarda revolucionária, cons­tituída por operários bolcheviques que ocuparam a primeira fila na guerra civil.

É sobre a base de uma economia em frangalhos, com uma mão de obra de jovens camponeses sem qualificação, com os bolcheviques, que dirigiam o Exército Vermelho, se convertendo em diretores de fábricas com “privilégios” (uso de automóveis, por exemplo), que uma diferenciação social se desenvolveu.

No plano internacional os bolche­viques depositavam esperanças em revoluções na Europa, para romper o isolamento da Rússia soviética e dar uma base material mais avan­çada para o desafio de construir o socialismo. A fundação, em março de 1919, da 3ª Internacional3, em plena guerra civil, para combater pela República Internacional dos Sovietes, é a demonstração cabal de como os bolcheviques consideravam a exten­são da revolução como decisiva.

Ao final da 1ª Guerra Mundial ocorrem revoluções na Alemanha em 1918-19 – quando Rosa Luxemburgo é assassinada pelo governo social­-democrata (SPD) de Friedrich Ebert – e de novo em 1923; na Hungria (1919) e Bulgária (1923). A traição dos partidos da 2ª Internacional e a imaturidade de jovens partidos comunistas, entretanto, impediram romper o isolamento da URSS.

As consequências da guerra civil e o isolamento da revolução deram as bases para o surgimento do stalinis­mo como fenômeno contrarrevolu­cionário.

A burocracia stalinista

Entre 1920/21 aparecem os primei­ros sintomas de burocratização, que Lenin irá combater até sua morte pre­matura em janeiro de 1924. É neste mesmo ano que, pela primeira vez, se ouve falar em “socialismo num só país”, que será a bandeira de Stálin para combater Trotsky e a teoria da Revolução Permanente (cujas raízes encontram-se em Marx ao analisar 1848 na Alemanha).

Na verdade Stálin representava uma camada de altos funcionários do partido e do Estado – a buro­cracia – que passara a desenvolver interesses próprios e opostos aos da massa dos operários e camponeses. Seus privilégios decorriam dos cargos que ocupavam e para defendê-los trataram de reescrever toda a história do bolchevismo e até a “inventar” teorias.4

Ao mesmo tempo em que afirmava seu poder na URSS, a burocracia stali­nista passou a controlar a Internacio­nal Comunista, cuja função passou a ser a de “proteger” a “construção do socialismo” na URSS, e não a de fazer a revolução em outros países.

A passagem para a contrarrevolu­ção foi um processo paulatino. Des­de a luta pela sucessão de Lenin em 1924, até os processos de Moscou em 1936, nos quais foi eliminada toda a vanguarda bolchevique da Revolução de Outubro, passaram-se doze anos.

Trotsky fundou a Oposição de Esquerda em 1927-28, visando re­orientar os partidos comunistas e a Internacional. Somente em 1933 ele proclama a necessidade de uma nova Internacional, após o balanço da po­lítica de divisão das fileiras operárias feita pelo stalinismo na Alemanha de 1933, que facilitou a chegada de Hitler ao poder, criando as condições para a 2ª Guerra Mundial (1939-45).

Em setembro de 1938, reivindi­cando o legado político e teórico da Revolução de Outubro, será fundada a 4ª Internacional que hoje encarna os ensinamentos daquela que há cem anos foi a primeira revolução proletária vitoriosa da história.

Viva o centenário da Revolução Russa!

Julio Turra

Notas

  1. Stálin, Josef Vissariónovitch Dju­gashvili (1878-1953), secretário geral do Comitê Central do partido bolchevique em 1922, assume o comando supremo na URSS a partir de 1924. Após sua morte, em 5 de março de 1953, seus sucessores mantiveram os pilares do stalinismo, regime de partido único sem democracia operária.
  2. Mikhail Gorbatchev, líder do PCUS entre 1985 e 1991, introduziu “reformas” pró-mercado sendo sucedido, após a dis­solução da URSS, por Bóris Ieltsin como presidente da Rússia (25/12/1991).
  3. Internacional Comunista ou 3ª Internacional, fundada por iniciativa dos bolcheviques vitoriosos na Rússia em 1919. Também conhecida como Komintern, foi dissolvida por Stálin em 1943, prenunciando os acordos com as potências imperialistas do final da 2ª Guerra Mundial de divisão do mundo em esferas de influência.
  4. A esse respeito ver “A Revolução Traída” (1936) de León Trotsky, em particular o Apêndice “O socialismo num só país”.

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