200 anos de Engels!

Há 200 anos nascia Friedrich Engels. Engels, nos primeiros anos da década de 1840, juntou seu destino ao de Marx, com o qual travou 40 anos de combate comum para dotar o proletariado de uma teoria revolucionária e de uma organização própria que correspondesse a seus interesses imediatos e históricos, um instrumento de luta pela revolução socialista.

A leitura do manuscrito de Engels A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, publicado em 1945, foi segundo Marx, um fato determinante para que este rompesse seus últimos laços com a filosofia alemã e enveredasse pela formação de uma crítica revolucionária da sociedade capitalista. Com efeito,  o documento fundador da organização revolucionária da classe operária, o Manifesto do Partido Comunista, de 1848, será subscrito por ambos. A par de uma vida inteira dedicada à organização da classe operária, tendo sido fundador tanto da I como da II Internacionais, Engels desenvolveu um intenso trabalho teórico, legando obras fundamentais do marxismo como a primeira exposição da concepção materialista da história, A Ideologia Alemã, A Sagrada Família, ambas em colaboração com Marx, Revolução de Herr Eugen Dühring na Ciência (conhecido como Anti-Dühring), A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, além de ter tido papel decisivo na edição e publicação dos livros II e III de O Capital. Por esta vida de atividade revolucionária, como inseparável parceiro de Marx, Engels foi cognominado de “o segundo violino”, em referência aos instrumentos solistas numa orquestra.

Publicamos a seguir dois trechos de sua obra polêmica Anti-Dühring: o item I da introdução, chamada “Generalidades” e o item I da terceira parte da obra, dedicada ao socialismo, denominada “Traços Históricos”. A combinação destes dois trechos levam ao leitor uma excelente exposição das raízes do socialismo moderno, desde a época dos utopistas até as descobertas de Karl Marx que deram fundamento científico à luta pela organização dos trabalhadores para a conquista do poder por meio da revolução proletária. Engels retrabalharia estas passagens do Anti-Dühring para a edição de sua brochura comumente conhecida em sua versão em português como Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico.


 

INTRODUÇÃO A ANTI-DÜHRING
I – GENERALIDADES

Friedrich Engels
Por seu conteúdo, o socialismo moderno é, antes de mais nada, o produto de uma dupla verificação: os antagonismos de classe entre possuidores e não-possuidores, burgueses e operários assalariados, que imperam na moderna sociedade, e a anarquia, que preside a produção. Mas, na sua forma teórica, o socialismo apresentava-se, em seus primórdios, como um desenvolvimento aparentemente lógico dos princípios proclamados pelos grandes nacionalistas franceses do século XVIII. Como toda nova teoria, o socialismo, ainda que tenha suas raízes nos fatos econômicos, teve que se ligar, ao nascer, ao material de ideias existentes.
Os grandes homens, que prepararam, na França, os espíritos para a revolução, que haveria de desencadear-se, já adotavam atitude resolutamente revolucionária. Não reconheciam nenhuma autoridade exterior. A religião, a observação da natureza, a propriedade, a ordem pública, tudo era submetido à mais desapiedada crítica; tudo o que existia devia justificar sua existência perante o tribunal da razão ou renunciar a continuar existindo. A tudo, aplicava-se, como crivo único, a razão. Era a época em que, segundo a frase de Hegel, o mundo descobriu que tinha um cérebro. Em primeiro lugar, porque o cérebro humano e as conclusões a que chega com seus raciocínios se outorgam o direito de serem aceitos como base de todas as ações e de todas as relações sociais; em segundo lugar, e no sentido mais amplo, porque a realidade, que não se ajusta a esses princípios, é inteiramente subvertida, dos seus alicerces à cúpula. Todas as formas anteriores de sociedade e de Estado, todas as ideias tradicionais, foram postas à margem como contrárias à razão, o mundo, até então, governara-se por puros preconceitos; o passado merecia apenas comiseração e desprezo. O mundo, até então, havia estado envolto em trevas; para o futuro, a superstição, a injustiça, o privilégio e a opressão seriam substituídos pela verdade eterna, pela eterna justiça, pela igualdade baseada na natureza e por todos os direitos inalienáveis do homem.
Sabemos, hoje, que esse reinado da razão era apenas o reinado idealizado pela burguesia; a justiça eterna corporificou-se na justiça burguesa; a igualdade reduziu-se à burguesa igualdade perante a lei; os direitos essenciais dos homens, proclamados pelos racionalistas, tinham, como representante, a sociedade burguesa, e o Estado da razão, o contrato social de Rousseau, ajustou-se, como de fato só podia ter-se ajustado, à realidade, convertido numa República democrático-burguesa. Os grandes pensadores do século XVIII, sujeitos às mesmas leis de seus predecessores, não podiam romper os limites que sua própria época traçava.
Ao lado do antagonismo entre a nobreza feudal e a burguesia, mantinha-se o antagonismo geral entre os exploradores e os explorados, entre os ricos ociosos e os pobres, criadores da riqueza. E foi precisamente esse fato que permitiu aos representantes da burguesia apresentarem-se como representantes, não de uma classe determinada, mas de toda a humanidade sofredora. Mais ainda, desde o próprio momento em que nasceu a burguesia, ela trouxe em suas entranhas sua própria antítese, uma vez que os capitalistas não podiam viver sem os operários assalariados. E na mesma proporção em que os mestres dos grêmios medievais se convertiam em burgueses modernos, os oficiais e aprendizes não agremiados se transformavam em proletários. Em termos gerais, se a burguesia pôde arrogar-se o direito de representar, nas suas lutas contra a nobreza, não só seus próprios interesses como também o das diferentes classes trabalhadoras da época, em cada um dos movimentos deflagrados já apareciam palpitações Independentes da classe que trazia consigo o germe mais ou menos desenvolvido do proletariado moderno. E, de fato, já na época da Reforma e da Guerra dos Camponeses, Thomaz Münzer representava essa tendência. Na grande Revolução Inglesa foram os “niveladores” que desempenharam esse papel e, na Revolução Francesa, Baboeuf serviu de porta-voz da classe proletária. Com essas afirmações revolucionárias de personalidade de uma classe incipiente surgem e se desenvolvem uma série de manifestações teóricas a elas correspondentes: nos séculos XVI e XVII aparecem as descrições utópicas de sociedades ideais e, no século XVIII, teorias já diretamente comunistas, como as Morelly e Mably. O postulado da igualdade rompia a envoltura dos direitos políticos para estender-se às condições sociais da vida dos homens. Já não se tratava apenas de abolir os privilégios de classe, mas também de destruir os próprios antagonismos de classe. Uma espécie de comunismo ascético, inspirado nos espartanos, foi o primeiro sinal de vida da nova ideia. Logo após, surgiram três grandes utopistas: Saint Simon, no qual a tendência burguesa continua a se afirmar, até certo ponto, ao mesmo tempo que a tendência proletária e Fourier e Owen, radicados no país onde a produção capitalista estava mais desenvolvida e sob a impressão dos antagonismos por ela engendrados, expuseram sistematicamente uma série de projetos destinados a abolir as diferenças de classe, seguindo em linha reta as pegadas dos materialistas franceses.
Nenhum dos três teóricos citados, entretanto, representava o interesse do proletariado que, já nessa época, surgia como um produto histórico, Da mesma forma que os racionalistas, esses três autores não se propõem a emancipar uma determinada classe, mas toda a humanidade, com a instauração do reinado da razão e da justiça eterna. Mas entre eles e os racionalistas abria-se um abismo. Os novos pensadores descobrem que também o mundo burguês, instaurado segundo os princípios do racionalismo, é injusto e irracional, merecendo, portanto, ser desprezado como um traste inútil, da mesma forma como já o foram o feudalismo e as formas sociais que o precederam. Se, até então, a verdadeira razão e a verdadeira justiça não governaram o mundo. Isso se deve a que, segundo o seu modo de ver, ninguém ainda conseguiu alcançá-las. Faltava o homem genial que só agora se ergue frente a humanidade, com o segredo da verdade que por fim foi descoberto. Por que é que só agora esse homem se levanta, por que é que só agora, e não antes nem depois, é que se descobre o segredo da verdade? Não foi porque isso lhe fosse imposto como algo de inevitável, pela concatenação do desenvolvimento histórico, mas apenas porque a sorte assim o quis. O mesmo poderia ter ocorrido há quinhentos anos e teria sido poupada a humanidade de quinhentos anos de erros, de sofrimentos e de lutas. Esse modo de ver é, em suma, o de todos os socialistas ingleses e franceses e o dos primeiros socialistas alemães, sem excluir Weitling. O socialismo é a expressão da verdade, da razão e da justiça absoluta, e é suficiente descobri-lo para que se imponha ao mundo por sua própria virtude. E, como a verdade absoluta é independente do espaço, do tempo, do desenvolvimento do homem e da história, só o acaso pode decidir quando e onde se deve revelar o seu descobrimento. Acrescente-se a isso que a verdade absoluta, a razão e a justiça absolutas, variam conforme o fundador de cada escola. E, como o caráter específico da verdade, da razão e da justiça absolutas é agraciado, por sua vez, em cada um deles, com a inteligência pessoal, as condições de vida, o estado dos conhecimentos e a disciplina mental, forçosamente surge um conflito entre as verdades absolutas, não restando outra solução senão a dos atritos ou fusões de umas com as outras. Era, pois, natural e inevitável, que surgisse uma espécie de socialismo eclético e, com efeito, a maior Parte dos operários socialistas da França e da Inglaterra têm, nos cérebros, uma mistura pitoresca que admite, aliás, toda uma série de matizes, na qual se fundem os princípios econômicos, as expansões críticas e as representações sociais do futuro, dos diversos fundadores de seitas. Essa mescla é tanto mais fácil de ser composta quanto mais depressa os ingredientes individuais vão perdendo, no curso das discussões, seus contornos agudos e concretos, como se fossem pedras aplainadas pela corrente do rio. Assim, para converter o socialismo numa ciência, só era possível situando-o no terreno da realidade.
Entretanto, junto à filosofia francesa do século XVIII surge, logo após, a moderna filosofia alemã, à qual Hegel dá o último remate. O principal mérito dessa filosofia foi a restauração da dialética como forma suprema do pensamento. Os antigos filósofos gregos eram todos dialéticos por natureza e o cérebro mais universal dentre eles, Aristóteles, chegou até a penetrar na forma mais substancial do pensamento dialético. Em troca, a nova filosofia, tendo alguns brilhantes pensadores dialéticos (por exemplo, Descartes, Spinoza), deixou-se dominar cada vez mais pelas chamadas especulações metafísicas, influenciada principalmente pelos ingleses, das quais não se livram também os autores franceses do século XVIII, pelo menos no que se refere às investigações filosóficas. Fora do estrito campo da filosofia, os franceses souberam também criar obras mestras de dialética, como, por exemplo, O Sobrinho do Rameau, de Diderot, e o estudo de Rousseau sobre A origem da desigualdade, dos homens.
Resumiremos concisamente os traços principais de ambos os métodos filosóficos, sem que, com isso, deixemos de estudar, mais adiante, com mais detalhes, esse assunto.
Se submetermos à consideração especulativa a natureza ou a história humana ou a nossa própria atividade espiritual. Encontrar-nos-emos, logo de início, com uma trama infinita de concatenações e de mútuas influências, onde nada permanece o que era nem como e onde existia, mas tudo se destrói, se transforma, nasce e perece. Esta intuição do mundo, primitiva, simplista, mas perfeitamente exata e congruente com a verdade das coisas, foi utilizada pelos antigos filósofos gregos e aparece expressa, claramente, pela primeira vez, em Heráclito: tudo é e não é, pois tudo flui, tudo está sujeito a um processo constante de transformação, de incessante nascer e perecer, Mas esta intuição, por ser exatamente a que reflete o caráter geral de todo o mundo dos fenômenos, não basta para explicar os elementos isolados de que se forma todo esse mundo. E esta explicação é indispensável, pois, sem ela, nem mesmo a imagem total adquirirá sentido exato. Para penetrar nesses elementos, antes de mais nada, precisamos destacá-los de seu tronco histórico ou natural e investigá-los separadamente, cada um de per si, em sua estrutura, causas e efeitos que em seu seio se produzem, etc.
Com efeito, é essa a missão primordial das ciências naturais e da história, ramos de investigação que os gregos clássicos situavam, com bastante razão, num plano puramente secundário, uma vez que o seu papel se restringia, substancialmente, a fornecer, por um trabalho de classificação, os materiais científicos. Os rudimentos das ciências naturais exatas não se desenvolveram até chegar aos gregos do período alexandrino e, muito mais tarde, na Idade Média, com os árabes. Na realidade, a autêntica ciência da natureza data somente da segunda metade do século XV e, a partir de então, não fez mais que progredir com velocidade constantemente acelerada. A análise da natureza em suas diferentes Partes, a classificação dos diversos fenômenos e objetos naturais em determinadas categorias, a investigação interna dos corpos orgânicos segundo a sua diferente estrutura anatômica, foram outras tantas condições fundamentais a que os progressos obedeceram gigantescos realizados nos últimos quatrocentos anos, no que se refere ao conhecimento científico da natureza. Mas estes progressos processaram-se juntamente com o progresso no modo de analisar as coisas e os fenômenos da natureza, isoladamente, destacados da grande concatenação do universo. Não são, pois, encarados dinamicamente, mas estaticamente, não são considerados como situações substancialmente variáveis, mas como dados fixos, dissecados como materiais mortos e não apreendidos como objetos vivos. Por esse método de observação, ao passar, com Bacon e Locke, das ciências naturais à filosofia, sobreveio a limitação especifica, característica destes últimos tempos, no método metafísico de especulação.
Para o metafísico, as coisas e suas imagens no pensamento, os conceitos, são objetos isolados de investigação, objetos fixos, imóveis, observados um após o outro, cada qual de per si, como algo determinado e perene. O metafísico pensa em toda uma série de antíteses desconexas: para ele, há apenas o sim e o não e, quando sai desses moldes, encontra somente uma fonte de transtornos e confusão. Para ele, uma coisa existe ou não existe. Não concebe que essa coisa seja, ao mesmo tempo, o que é uma, outra coisa distinta. Ambas se excluem de modo absoluto, positiva e negativamente, causa e efeito se revestem da forma de uma antítese rígida. À primeira vista, esse método especulativo parece-nos extraordinariamente plausível, porque é o do chamado senso comum. Mas o verdadeiro senso comum, personagem bastante respeitável dentro de portas fechadas, entre as quatro paredes de sua casa, vive peripécias verdadeiramente maravilhosas, quando se arrisca pelos amplos campos da investigação. E o método do pensamento metafísico, por justo e necessário que seja em vastas zonas do pensamento, mais ou menos extensas, de acordo com a natureza do objeto de que se trata, tropeça sempre, cedo ou tarde, com uma barreira que, franqueada, faz com que ele se torne um método unilateral, limitado, abstrato; perde-se em contradições insolúveis, uma vez que, absorvido pelos objetos concretos, não consegue enxergar as suas relações. Preocupado com sua própria existência, não reflete sobre sua gênese e sua caducidade; concentrado em suas condições estáticas, não percebe a sua dinâmica; obcecado pelas árvores não consegue ver o bosque. Na realidade de cada dia, sabemos, por exemplo, e disso podemos dizer ter toda a certeza, se um animal existe ou não. Mas, se investigarmos mais detalhadamente, veremos que o problema pode complicar-se, e de fato se complica às vezes consideravelmente, como não o ignoram os juristas que, em vão, se atormentam para descobrir um limite nacional, a partir do qual deve ser considerado como um assassinato a morte de um feto no útero materno. Tampouco é fácil determinar fixamente o momento da morte, uma vez que a fisiologia demonstrou que a morte não constitui um acontecimento automático, instantâneo, mas faz Parte de um longo processo. Do mesmo modo, pode-se afirmar que todo o ser orgânico é, no mesmo momento, ele mesmo e um outro. Surpreendido em qualquer instante, estará assimilando materiais absorvidos do exterior e eliminando outros de seu seio. Em qualquer momento que o observarmos, veremos que em seu organismo morrem umas células e nascem outras. E, no transcurso de um período mais ou menos longo, a matéria de que está formado se renova radicalmente e novos átomos de matéria ocupam o lugar dos antigos, donde se pode concluir que todo o ser orgânico é, ao mesmo tempo, o que é e um outro. Mesmo assim, se observarmos as coisas detidamente, veremos que os dois pólos de uma antítese, o positivo e o negativo, são antitéticos e que, apesar de todo seu antagonismo eles se completam e se articulam reciprocamente. E vemos, também, que a causa e o efeito são representações que só vigoram como tais na sua aplicação ao caso concreto, mas que, situando o fato concreto em suas perspectivas gerais articulado com a imagem total do universo, se diluem na ideia de uma trama universal de ações recíprocas, onde as causas e os efeitos trocam constantemente de lugar e o que, antes, era causa, toma, logo depois, o papel de efeito e vice-versa.
Nenhum desses fenômenos e métodos de investigação se enquadra nos limites das especulações metafísicas. O contrário acontece com a dialética, que encara as coisas e as suas imagens conceituadas, substancialmente, em suas conexões, em sua filiação e concatenação, em sua dinâmica, em seu processo de gênese e caducidade, como os fenômenos que acabamos de expor, que nada mais são do que outras tantas confirmações do método experimental que lhe é próprio. A natureza é a pedra de toque da dialética e não temos outro remédio senão agradecer às modernas ciências naturais nos terem oferecido um acervo de dados extraordinariamente copioso e que vêm enriquecendo todos os dias, demonstrando, assim, que a natureza se move, em última análise, pelos canais da dialética e não sobre os trilhos metafísicos. Mas, até hoje, os naturalistas, que têm sabido pensar dialeticamente, são pouquíssimos e esse conflito, entre os resultados descobertos e o método especulativo tradicional que utilizam, desvenda aos nossos olhos a ilimitada confusão hoje reinante na teoria das ciências naturais e que constitui o desespero de mestres e discípulos, de autores e leitores.
Só pela via dialética, não perdendo de vista a ação geral das influências recíprocas, da gênese e da caducidade de tudo quanto vive, das mudanças de avanço e retrocesso, podemos chegar a uma concepção exata do universo, de seu desenvolvimento e do desenvolvimento da humanidade, assim como da imagem por ele projetada nos cérebros dos homens. Este foi o caminho pelo qual seguiu, desde o primeiro instante, a moderna filosofia alemã, Kant começou sua carreira de filósofo transformando o sistema solar estável e de duração eterna de Newton num processo histórico: no nascimento do sol e de todos os planetas pelo movimento de rotação de uma massa nebulosa. Deste fato, tirou a conclusão de que esta origem implicava, também, necessariamente, na futura morte do sistema solar. Meio século mais tarde, sua teoria foi confirmada matematicamente por Laplace, e, depois de mais 50 anos, o espectroscópio demonstrou a existência, no espaço, daquelas massas ígneas de gás, em diferentes graus de condensação.
A filosofia moderna alemã foi completada por Hegel, no qual, pela primeira vez – esse é o seu grande mérito – se concebe o mundo da natureza, da história e do espírito, como um processo, isto é, como um mundo sujeito à constante mudança, transformações e desenvolvimento constante, procurando também destacar a íntima conexão que preside este processo de desenvolvimento e mudança. Encarada sob este aspecto, a história da humanidade já não se apresentava como um caos áspero de violências absurdas, todas igualmente condenáveis perante o. julgamento da razão filosófica madura, apenas interessantes para que as deixasse de lado o mais depressa possível, mas, pelo contrário, se apresentava como o processo de desenvolvimento da própria humanidade, que incumbia ao pensamento a tarefa de seguir em suas etapas graduais e através de todos os desvios, até conseguir descobrir as leis internas, que regem tudo o que à primeira vista se pudesse apresentar como obra do acaso.
Não importa que Hegel não tenha resolvido esse problema. Seu mérito, que marcou época, consistiu apenas em o ter colocado. Mas não se trata de um problema que pode ser resolvido apenas por um homem. E, mesmo sendo Hegel, ao lado de Saint-Simon, o cérebro mais universal de seu tempo, seu horizonte estava circunscrito, em primeiro lugar, pela limitação inevitável de seus próprios conhecimentos, e, em segundo, pela dos conhecimentos e observações de sua época, também limitados em extensão e profundidade. A tudo isso deve-se ainda acrescentar uma terceira circunstância. Hegel era idealista. As ideias de seu cérebro não eram, para ele, imagens mais ou menos abstratas das coisas e dos fenômenos da realidade, mas coisas que, em seu desenvolvimento, se lhe apresentavam como projeções realizadas de uma “ideia”, existente não se sabe onde, antes da existência do mundo. Este modo de ver tudo subvertia, revirando pelo avesso toda a concatenação real do universo. Por mais justas e mesmo geniais que fossem muitas das concepções concretas concebidas por Hegel, era inevitável, pela razão que acabamos de aludir, que muitos de seus detalhes tivessem caráter acomodatício, artificioso, arbitrário, falso, numa palavra. O sistema Hegel foi um aborto gigantesco, porém o último de sua espécie. Com efeito, sua filosofia padecia ainda de uma contradição interna incurável, pois que, se, por um lado, considerava como suposto essencial da concepção histórica, segundo a qual a história humana é um processo de desenvolvimento que não pôde, por sua própria natureza, encontrar solução intelectual no descobrimento disso que se chama de verdades absolutas, por outro, se nos apresenta precisamente como resumo e compêndio de uma dessas verdades absolutas, Um sistema universal e compacto, definitivamente plasmado, no qual se pretende enquadrar a ciências da natureza e da história, é incompatível com as leis da dialética. Isso, entretanto, não exclui, mas, ao contrário, faz com que o conhecimento sistemático do mundo exterior, em sua totalidade, possa progredir, a passos gigantescos, de geração em geração.
A consciência da total inversão em que o idealismo alemão incorrera, necessariamente, tinha que levar ao materialismo, mas, note-se bem, não se trata do materialismo puramente metafísico e exclusivamente mecânico do século XVIII Afastando-se da simples repulsa, candidamente revolucionária, de toda a história anterior, o materialismo moderno vê, na história, o processo de desenvolvimento da humanidade, cujas leis dinâmicas tem por encargo descobrir. E, desviando-se da ideia da natureza que dominava entre os franceses do século XVIII, da mesma forma que da ideia concebida por Hegel, ideia pela qual se considerava a natureza como um todo permanente e inalterável, com mundos eternos que se moviam dentro de um estreito ciclo, tal como a representava Newton, e com espécies invariáveis de seres orgânicos, como ensinava Lineu, o materialismo moderno resume e sistematiza os novos progressos das ciências naturais, segundo os quais a natureza tem também a sua história no tempo e os mundos, as espécies e os organismos, que, em condições propícias, o habitam, nascem e morrem, e onde os ciclos, na medida em que sejam admissíveis, se revestem de dimensões infinitamente mais grandiosas. Tanto num como noutro caso, o materialismo moderno é substancialmente dialético e já não há necessidade de uma filosofia superior para as demais ciências. Desde o instante em que cada ciência tenha que se colocar no quadro universal das coisas e do conhecimento delas, já não há margem para uma ciência que seja especialmente consagrada a estudar as concatenações universais. Tudo o que resta da antiga filosofia, com existência própria, é a teoria do pensamento e de suas leis: a lógica formal e a dialética. Tudo o mais se dissolve na ciência positiva da natureza e da história.
A nova etapa das ciências naturais, entretanto, só conseguiu impor-se na medida em que a investigação lhe fornecia materiais positivos correspondentes, e, enquanto isso, já há muito tempo, se haviam revelado certos fatos históricos que abalaram decisivamente o modo de encarar a história. Em 1931, rompe, em Lyon, a primeira sublevação operária e, de 1838 a 1842, o primeiro movimento operário nacional, o dos cartistas ingleses, alcança o seu apogeu. A luta de classes entre o proletariado e a burguesia passou a ocupar o primeiro plano na história dos países europeus mais avançados, no mesmo ritmo em que se desenvolvia a grande indústria e em que se firmava a hegemonia política da burguesia recentemente conquistada. Os fatos vinham desmentir, cada vez mais categoricamente, as doutrinas econômicas burguesas sobre a identidade de interesses entre o capital e o trabalho e sobre a harmonia universal e o bem-estar geral das nações como fruto da livre concorrência.
Esses fatos não podiam passar desapercebidos, assim como não podia ser ignorado o socialismo francês e o inglês, que eram a sua expressão teórica, embora ainda bastante imperfeita. Mas a velha concepção idealista da história, que ainda não havia sido abandonada, não podia reconhecer sequer interesses materiais de qualquer espécie. Para ela, a produção, como todos os outros fatores econômicos, só existia como acessório, como elemento secundário dentro da “história cultural”. Os novos fatos, que a realidade revelava, obrigaram a uma revisão de toda a história antiga e, dessa maneira, ficou demonstrado que a história havia sido, sempre uma história de luta de classes e que estas classes em luta foram, em todas as épocas, condições de produção e de troca, ou seja, fruto das condições econômicas e que a estrutura econômica da sociedade em todos os fatos da história era, portanto. a base real sobre a qual se erigia, em última instância, todo o edifício das instituições jurídicas e políticas, da ideologia filosófica, religiosa, etc.. de cada período histórico. Assim, o idealismo via-se despojado de seu último reduto na ciência histórica. Lançava-se os alicerces para uma concepção materialista e abria-se o caminho para verificar-se que a existência é quem determina a consciência do homem e não é a consciência quem determina a existência, como se afirmava tradicionalmente.
Verificamos, assim, que o socialismo tradicional era incompatível com a nova concepção materialista da história bem como a concepção dos materialistas franceses, sobre a natureza, não podia coexistir com a dialética moderna e com as novas ciências naturais. Com efeito, o socialismo criticava o regime capitalista de produção existente e suas consequências, mas não conseguiu explicá-lo e, portanto, também não o poderia destruir, limitando-se apenas a repudiá-lo, simplesmente, como imoral. Era preciso, porém, entender esse regime capitalista de produção em suas conexões históricas, como um regime necessário para uma determinada época da história, demonstrando, com isso, ao mesmo tempo, seu aspecto condicional histórico, a necessidade de sua extinção e do desmascaramento de todos os seus disfarces, uma vez que os críticos anteriores se limitavam apenas a apontar os males que o capitalismo engendrava em vez de assinalar as tendências das coisas a que obedeciam. A principal máscara, sob a qual se disfarçava o capitalismo, caiu por terra com a descoberta da mais-valia. Esta descoberta revelou que o regime capitalista de produção e a exploração dos operários que dele se origina tinham, como base fundamental, a apropriação do trabalho não pago. Revelou ainda que o capitalista, mesmo supondo-se que comprasse a força de trabalho de seu operário por todo o seu valor, por todo o valor que representava como mercadoria no mercado, e que este excedente do valor, esta mais-valia era, em última instância, a soma do valor de que provinha a massa cada vez maior do capital acumulado nas mãos das classes possuidoras. Desde então, o processo da produção capitalista e o da criação do capital já não continham nenhum segredo.
Estas duas descobertas: a concepção materialista da história e a revelação do segredo da produção capitalista que se resume na mais-valia são devidas a Karl Marx. Graças a estas descobertas, o socialismo converte-se numa ciência, que não é preciso senão desenvolver em todos os seus detalhes e concatenações.
Era esse, mais ou menos, o sentido com que se apresentavam as coisas no campo do socialismo teórico e da decadente filosofia, quando o Senhor Eugênio Dühring veio à cena e anunciou, com o auxílio de tambores e fanfarras, a total subversão da filosofia, da economia política e do socialismo, subversão feita unicamente por ele.
Vejamos, agora, o que o Senhor Dühring promete e…o que cumpre.


 

PARTE III DE ANTI-DÜHRING – SOCIALISMO

I – TRAÇOS HISTÓRICOS

Friedrich Engels
Vimos, na Introdução, como os filósofos franceses do século XVIII que abriram o caminho para a revolução, apelavam para a razão como único juiz de tudo quanta existe. Pretendia-se instaurar um Estado racional, uma sociedade ajustada à razão, e tudo quanto contradissesse a razão eterna deveria ser enterrado sem a menor piedade. E vimos também que na realidade, essa razão eterna não era senão a inteligência idealizada do homem da classe média daqueles tempos, do qual haveria de sair, em seguida, o burguês. Por isso, quando a Revolução Francesa tentou criar essa sociedade nacional e esse Estado da razão. viu-se que as novas instituições, por muito que se destacassem das antigas, ficavam ainda longe da razão absoluta. O Estado da razão fracassara ruidosamente. O contrato social de Rousseau tomaria corpo no regime do terror e, fugindo dele e desconfiando já de seus próprios donos políticos, a burguesia foi refugiar-se, primeira, na corrupção do Diretório e, por fim, sob a égide do despotismo napoleônico. A prometida paz eterna transformara-se numa interminável guerra de conquistas. A sociedade da razão também não teve melhor sorte. O antagonismo entre pobres e ricos, longe de desaparecer no bem-estar geral, aguçara-se ainda mais, com o desaparecimento dos privilégios feudais e muitos outros, que o atenuavam, e os estabelecimentos de beneficência, que mitigavam um pouco o contraste da desigualdade.
O desenvolvimento da indústria em bases capitalistas converteu a pobreza e a miséria das massas trabalhadoras em condições de vida da sociedade. A estatística criminal crescia de ano para ano. Os vícios feudais, que até então se exibiam impudicamente à luz do dia não desapareceram, mas apenas se esconderam, ao menos por um momento, no fundo da cena. Em troca, floresciam exuberantemente os vícios burgueses, ocultos até então sob a superfície. O comércio foi degenerando, cada vez mais descaradamente, em roubo. A “fraternidade” da divisa revolucionária tomou corpo nas deslealdades e na inveja da concorrência. A opressão violenta cedeu lugar à corrupção, e a espada, primeira arma de poder social, foi substituída pelo dinheiro. O privilégio da primeira noite nupcial passou do senhor feudal para o fabricante burguês. A prostituição desenvolveu-se em proporções inauditas. O casamento continuou sendo o que já era: a forma sancionada pela lei, o manto oficial com que se cobria a prostituição seguida de uma abundância complementar de adultério. Numa palavra, comparadas com as brilhantes promessas dos racionalistas, as instituições políticas e sociais, instauradas pela “vitória da razão”, deram como resultados umas tristes e decepcionantes caricaturas, Só faltava mesmo que os homens pusessem em relevo o seu desengano Esses homens surgiram nos primeiros anos do século XIX. Em 1802, foram publicadas as Cartas genebrinas de Saint-Simon; em 1808, Fourier editou o seu primeiro livro, embora as bases da sua teoria já datassem de 1799; em 1 de janeiro de 1800, Robert Owen assumiu a direção da empresa de New Lanark.
Por aqueles tempos, todavia, o regime capitalista de produção, e, com ele, o antagonismo entre a burguesia e o proletariado, não haviam saído ainda de sua fase incipiente. A grande indústria, que, na Inglaterra acabava de nascer, era inteiramente desconhecida na França. E a grande indústria é a encarregada de desenvolver, em todas as Partes, os conflitos que reclamam imperiosamente, de um lado, a subversão do regime de produção – conflitos que estalam não só entre as classes engendradas por ela como também entre forças produtivas e as formas de intercâmbio por elas criadas, – e, de outro, as gigantescas forças produtivas, que oferecem os meios para resolver esses conflitos. Nos princípios do século os conflitos, que brotavam da nova ordem social, começavam apenas a crescer a muito mais, naturalmente, os meios que haveriam de conduzir à sua solução. Se as massas desprotegidas de Paris conseguiram apossar-se, por algum tempo, do poder, durante o regime do Terror, foi somente para demonstrar até que ponto era impossível manter esse poder nas condições da época. O proletariado, que começava a destacar-se, no seio dessas massas desprotegidas, como tronco de uma classe nova, mas ainda incapaz de desenvolver uma ação política própria, não representava mais do que um setor oprimido, castigado, ao qual, em sua Incapacidade para valer-se a si mesmo, teria que ser dada ajuda de fora, do alto, se possível.
Essa situação histórica dá forma às doutrinas dos fundadores do socialismo. Suas teorias incipientes não fazem mais do que refletir o estado incipiente da produção capitalista a embrionária situação da classe. Queria tirar do cérebro a solução dos problemas sociais latentes ainda nas condições econômicas embrionárias da época. A sociedade não continha senão males, que a razão pensante era chamada a remediar. Tratava-se de descobrir um novo sistema, mais perfeito, de ordem social, a fim de impô-lo à sociedade, de fora para dentro, por meio da propaganda, e, se possível, pregando-o com o exemplo, mediante experiências que servissem de modelos de conduta – Esses novos sistemas sociais nasciam condenados a mover-se no reino da utopia; quanto mais detalhados e minuciosos mais haveriam de degenerar, forçosamente, em puras fantasias.
Baseados nisso, não há razão para nos determos nem um momento mais nesse aspecto já definitivamente incorporado ao passado. Deixemos que os trapeiros literários do tipo do Sr. Dühring revolvam solenemente estas fantasias, que hoje provocam riso, para salientar sobre esse “fundo” a seriedade e a respeitabilidade do seu próprio sistema. Nós, longe de nos rirmos, nos admiramos das ideias geniais e dos geniais germes de ideias que nascem por toda Parte sob esse invólucro de fantasia e que os filisteus, naturalmente, são incapazes de enxergar.
Saint-Simon era filho da Grande Revolução Francesa, que estalou quando ainda não contava trinta anos. A revolução francesa foi a vitória do Terceiro Estado, isto é, da grande massa da nação a cujo cargo estavam a produção e o comércio, sobre os fundamentos, até então ociosos e privilegiados, da sociedade: a nobreza e o clero. Mas, de repente, verificou-se que a vitória do Terceiro Estado não era senão a vitória de uma Parte muito pequena dele, a conquista do poder político pelo setor socialmente privilegiado dessa classe: a burguesia abastada. Essa burguesia soube, além disso, aproveitar-se da revolução para enriquecer-se rapidamente, especulando com os bens confiscados e. em seguida, vendidos, da aristocracia e da Igreja, e enganando a nação por meio dos fornecimentos ao exército. Foi precisamente o governo desses especuladores que, sob o Diretório, levou a França e a revolução à beira da ruína, proporcionando a Napoleão o pretexto que desejava para o seu golpe de Estado. Por isso, no espírito de Saint-Simon, o antagonismo entre o Terceiro Estado e os setores privilegiados da sociedade tomou a forma de um antagonismo entre “trabalhadores” e “homens ociosos”. Os ociosos eram não só os antigos privilegiados mas também os que viviam de suas rendas, sem interferir na produção nem no comércio. No conceito de “trabalhadores” não entravam somente os operários assalariados, mas também os industriais, os comerciantes e os banqueiros. Que os ociosos haviam perdido os títulos que os capacitavam a dirigir espiritualmente e a governar politicamente o país era um fato evidente que a revolução tinha evidenciado de modo definitivo. E, para Saint-Simon, as experiências do regime do terror faziam supor, também, que os sans-culottes, por sua vez, não tinham suficiente capacidade para isso. Então, quem havia de dirigir e governar a nação? Segundo Saint-Simon a ciência e a indústria, unidas por um novo laço religioso destinado a restaurar a unidade das ideias religiosas destruída desde a Reforma, um novo “cristianismo” forçosamente místico e rigorosamente hierárquico. Mas a ciência eram os sábios acadêmicos e a indústria, em primeiro lugar, os burgueses ativos, os fabricantes, os comerciantes, os banqueiros. E esses mesmos burgueses, segundo as concepções de Saint-Simon, haveriam de transformar-se numa espécie de funcionários públicos, de agentes sociais, mas conservariam, sempre, diante dos operários, uma posição autoritária e economicamente privilegiada. Os banqueiros, principalmente, seriam chamados a regular toda a produção social por meio de uma regulamentação de crédito. Esse modo de conceber a sociedade correspondia perfeitamente a uma época em que a grande indústria e, com ela o antagonismo entre a burguesia e o proletariado começava a despontar na França. Saint-Simon, não obstante, insiste em que o que o preocupa sempre, em primeiro lugar, é a sorte da “classe mais numerosa e mais pobre” da sociedade (la classe la plus nombreuse et la plus pauvre).
Já em suas Cartas genebrinas sustenta Saint-Simon a tese de que “todos os homens devem trabalhar”. E aí já se expressa a ideia de que o regime do terror era o governo das massas desprotegidas. “Vede – grita-lhes, – o que aconteceu, na França, quando vossos camaradas subiram ao poder, ocasionando uma epidemia de fome”. Mas, o conceber a Revolução Francesa como uma luta de classe entre a nobreza, a burguesia e os desprotegidos, era um descobrimento verdadeiramente genial para o ano de 1802. Em 1818, Saint-Simon declara que a política é a ciência da produção e prediz a total absorção da política pela economia. E se aqui não se faz mais do que apontar a consciência de que a situação econômica é a base das instituições políticas, proclama-se já, claramente, a futura transformação do governo político sobre os homens numa gestão administrativa sobre as coisas e no governo direto sobre os processos da produção que não é nem mais nem menos, do que a idéia da abolição do Estado, que tanto ruído levanta hoje. E, erguendo-se neste mesmo plano de superioridade sobre os contemporâneos, declara, em 1814, coincidindo quase com a entrada, em Paris, das tropas coligadas, e reafirma, em 1815, durante a guerra dos Cem Dias, que a aliança da França com a Inglaterra e a destes dois países com a Alemanha é a garantia única da prosperidade e paz, para a Europa. Para aconselhar aos franceses de 1815 uma aliança com os vencedores de Waterloo era preciso seguramente mais valentia do que para declarar uma guerra de palavras aos professores alemães.
O que, em Saint-Simon, é uma profundeza genial de visão, que lhe permite conter, em germe, todas as ideias não estritamente econômicas dos socialistas posteriores é, em Fourier, a crítica sutil do francês autêntico, crítica engenhosa, mas nem por isso menos profunda das condições sociais existentes. Fourier surpreende, pela palavra, a burguesia, aos seus ardorosos profetas pré-revolucionários e seus aduladores de após-revolução. Despe impiedosamente a miséria material e moral do mundo burguês e compara-o com as promessas tentadoras dos racionalistas, com a sua imagem da sociedade – em que só a razão predominaria, em que a civilização faria todos os homens felizes e a capacidade humana de perfeição superaria todos os obstáculos, – e com as brilhantes palavras dos ideólogos burgueses da época. Mostra, derramando sobre esse ruidoso caudal da fraseologia sua sátira mordaz, como essas frases bombásticas contrastam, em todas as Partes, com a mais cruel realidade. Fourier não é apenas um crítico; seu espírito sutil e engenhoso torna-o satírico, – um dos maiores satíricos de todos os tempos. A loucura de especulação, que se acentua com o refluxo da onda revolucionária e a mesquinhez do comércio francês daqueles anos, aparecem desenhados em sua obra com traços maravilhosos e cativantes. Ele se torna ainda mais formidável na crítica das relações entre os sexos e da posição da mulher na sociedade burguesa. É o primeiro a proclamar que o grau de emancipação da mulher numa sociedade é o barômetro natural pelo qual se mede a emancipação geral. Onde mais se eleva Fourier, entretanto, é no modo por que concebe a história da sociedade. Fourier divide toda a história em quatro fases ou etapas: o selvagismo a barbaria, o patriarcado e a civilização, sendo que esta última, na sua opinião, coincide com a chamada sociedade burguesa atual e afirma “que a ordem civilizada exalta de modo complexo, duplamente perverso, equívoco e hipócrita, todos os vícios que a barbaria praticava em meio da maior simplicidade”. Para ele, a civilização debate-se num “círculo vicioso”, num ciclo de antagonismos, que está engendrando e constantemente renovando, sem conseguir superá-lo, obtendo sempre justamente o contrário do que quer, ou, pelo menos finge querer conseguir. E assim deparamos, por exemplo, o fato de “na civilização, a pobreza decorrer da própria abundância” Como se vê Fourier maneja a dialética com a mesma mestria de seu contemporâneo Hegel. Diante dos que se empavonam falando da ilimitada capacidade humana de perfeição, salienta com a mesma dialética, que toda fase histórica tem, ao mesmo tempo, um lado ascendente e outro descendente e projeta esta concepção sobre o futuro de toda a humanidade. E, assim como Kant proclama, na ciência da natureza, o futuro desaparecimento da terra, Fourier proclama, na ciência histórica, a extinção futura da humanidade.
Enquanto o furacão da revolução varria o solo da França, na Inglaterra se desenvolvia um processo revolucionário mais silencioso, mas, nem por isso, menos poderoso. O vapor e a nova maquinaria transformaram a manufatura na grande indústria moderna, revolucionando, com isso, todos os fundamentos da sociedade burguesa. O ritmo lento do período da manufatura transformou-se numa marcha verdadeiramente vertiginosa de produção. Com uma velocidade cada vez mais acelerada ia-se operando a divisão da sociedade em dois campos: os grandes capitalistas e os proletários, entre os quais já não ficava encravada a antiga classe média, com sua estabilidade, mas, ao contrário, oscilava, levando vida insegura, uma massa instável de artesãos e pequenos comerciantes, a Parte mais flutuante da população. O novo regime de produção começava a percorrer ainda a sua vertente ascensional. Era ainda o regime de produção normal, e, também, o único possível naquelas circunstâncias. E, no entanto, já engendrava toda uma série de abusos sociais clamorosos: o amontoado de uma população arrancada de seu solo nas mais sórdidas habitações das grandes cidades; a dissolução de todos os lucros tradicionais do costume, da submissão patriarcal, da família; a exploração abusiva do trabalho, que, para as mulheres e para os menores, principalmente, tomava proporções assustadoras: a corrupção de massas de trabalhadores lançadas, de súbito, em condições de vida totalmente novas. Nestas circunstâncias, surge como reformador um industrial de vinte e nove anos, um homem cuja pureza infantil atingia o sublime, e que era, ao mesmo tempo, um inato condutor de homens, como poucos. Robert Owen assimilara os ensinamentos dos materialistas do racionalismo, segundo os quais se o caráter do homem é por um lado o produto de sua organização inata, é, por outro, o fruto das circunstâncias que o rodeiam durante sua vida, e, principalmente, durante o período de seu desenvolvimento. A maioria dos homens de sua classe viam, na revolução, apenas caos e confusão, uma ocasião propícia para se pescar em águas turvas e enriquecer-se rapidamente. Owen viu nela o terreno adequado para pôr em prática sua tese favorita, transformando o caos em ordem. Já em Manchester, dirigindo uma fábrica de mais de quinhentos trabalhadores, tentara, não sem êxito, pôr em prática sua teoria: de 1800 a 1829, conduziu, no mesmo sentido, embora com muito mais liberdade de iniciativa e com um êxito que lhe valeu fama europeia, a grande fábrica de fios de algodão de New Lanark, na Escócia, da qual era sócio e gerente. Uma população operária, que foi crescendo até chegar a 2.500 indivíduos, recrutada entre os elementos mais heterogêneos, a maioria dos quais sem qualquer princípio moral, converteu-se, em suas mãos, numa perfeita colônia modelo, na qual não se conhecem a embriaguez, a polícia, o cárcere, os processos, os pobres nem a beneficência pública. Para isso, bastou-lhe colocar os seus trabalhadores em condições humanas de vida, dedicando um cuidado especial à educação de seus descendentes. Owen foi o inventor dos jardins-de-infância, que funcionaram, pela primeira vez, em New Lanark. As crianças, já aos dois anos de idade, eram enviadas à escola e nela se sentiam tão satisfeitas, com os seus jogos e diversões, que não havia quem de lá as tirasse. Ao passo que, nas outras fábricas que lhe faziam concorrência, a duração do trabalho era de treze e quatorze horas por dia, a jornada em New Lanark era de dez horas e meia. Ao estalar uma crise algodoeira, que o obrigou a fechar a fábrica durante quatro meses, os trabalhadores de New Lanark continuaram percebendo integralmente os seus salários. E, apesar disso, a empresa duplicou seu capital e deu, até o último dia, grandes lucros a seus sócios.
Owen, porém, não estava satisfeito com o que conseguira. A existência que proporcionara a seus operários estava, segundo ele, ainda muito longe de ser uma existência humana: “Aqueles homens eram meus escravos”: as condições relativamente favoráveis em que os havia colocado não lhes permitam ainda, nem ao menos, desenvolver racionalmente e em todos os seus aspectos a inteligência e o caráter, e, muito menos, exercer livremente a sua vida .”E, no entanto, a Parte operária daquelas 2.500 almas produzia para a sociedade uma soma tão grande de riqueza que, meio século antes, 600.000 homens juntos não seriam capazes de criá-la. Eu me perguntava: Para onde irá a diferença entre a riqueza consumida por estas 2.500 criaturas e a que teriam que consumir as 600.000 de outrora? A resposta não era difícil. Essa diferença destinava-se a abonar aos sócios da empresa os cinco por cento de juros do capital de estabelecimento, o que importava em 300.000 libras esterlinas de lucros. E o caso de New Lanark era, ainda em maior medida, o de todas as fábricas da Inglaterra. “Sem esta nova riqueza criada pelas máquinas não teria sido possível levar a cabo as guerras que se fizeram para derrubar Napoleão e manter de pé os princípios da sociedade aristocrática. E, entretanto, este novo poder era obra da classe trabalhadora”. A ela, portanto, deviam pertencer os seus frutos. As novas e gigantescas forças produtivas que, até então, só haviam servido para enriquecer uma minoria e para a escravização das massas, lançava, na opinião de Owen, os alicerces de uma nova estrutura social e estavam destinadas a trabalhar apenas para o bem-estar geral, como propriedade coletiva de todos os membros da sociedade.
E foi assim, por este caminho puramente industrial, como um fruto, por assim dizer, dos cálculos de um homem de negócios, que surgiu o comunismo oweniano, que conservou sempre este mesmo caráter prático. Em 1823, Owen propõe a criação de um sistema de colônias comunistas para combater a miséria irlandesa e apresenta, em favor de sua proposta, um orçamento completo de instalação, despesas anuais e receitas prováveis. E, em seus planos definitivos do futuro, as minúcias técnicas do assunto estão calculadas com tal conhecimento da matéria, que, aceito o método oweniano da reforma da sociedade, pouca coisa se lhe poderia objetar, mesmo um técnico muito competente quanto aos pormenores da organização.
Ao abraçar o comunismo, a vida de Owen transformou-se radicalmente. Enquanto se limitara a agir como filantropo, colheu riquezas, aplausos, honrarias e fama. Era o homem mais popular da Europa.
Dispensavam-lhe entusiástica acolhida não só os homens de sua classe e posição social, como também os governantes e príncipes. Mas, quando formulou suas teorias comunistas, a coisa mudou de aspecto. Segundo ele, os grandes obstáculos que se antepunham à reforma social eram, principalmente, três: a propriedade privada, a religião e a forma atual do matrimônio, E não ignorava o perigo que corria combatendo-os. Nem podia ignorar que lhe estavam reservadas a condenação geral da sociedade oficial e a perda da posição que nela ocupava. Mas essa consideração não o deteve em seus impiedosos ataques àquelas instituições. E ocorreu o que estava previsto. Alijado da sociedade oficial, ignorado pela imprensa, arruinado por suas malogradas experimentações comunistas na América, – às quais sacrificou toda a sua fortuna, – entregou-se diretamente à classe trabalhadora, no seio da qual ainda agiu durante trinta anos. Todos os movimentos sociais, todos os melhoramentos reais tentados pela Inglaterra em prol da classe trabalhadora estão associados ao nome de Owen. Assim, por exemplo, em 1819, depois de cinco anos de lutas. Conseguiu fosse promulgada a primeira lei regulamentadora do trabalho da mulher e dos menores nas fábricas. Foi ele, também, quem presidiu o primeiro congresso em que os sindicatos de toda a Inglaterra se fundiram num grande e único sindicato. E foi também ele quem implantou, como medida de transição, até que a sociedade pudesse, na sua totalidade, organizar, “comunisticamente” duas espécies de organismos: as cooperativas de consumo e de produção, que, pelo menos, mostram praticamente a inutilidade do comerciante e do fabricante, e os bazares operários, estabelecimentos em que se trocavam os produtos do trabalho por bônus de trabalho, que fazem as vezes do papel-moeda e cuja unidade é a hora de trabalho despendido. Estabelecimentos necessariamente fadados ao fracasso, mas que superam os bancos proudhonianos de intercâmbio, muito posteriores, diferenciando-se destes principalmente porque não pretendem servir de panaceia universal para todos os males sociais, mas são, pura e simplesmente, um primeiro passo para a transformação radical da sociedade.
São estes os homens que o olímpico Senhor Dühring contempla dos cimos de sua “verdade absoluta e de última instância” com o desprezo que salientamos na Introdução. Este desprezo, pelo menos em Parte, tem seu fundamento e sua razão, pois nasce, em última análise, de uma ignorância verdadeiramente assustadora das obras dos três utopistas. De Saint-Simon, por exemplo, diz-nos que “sua ideia fundamental era substancialmente exata, e pondo de Parte certas particularidades, ainda hoje determina e impulsiona uma série de modalidades reais”. Pois bem: apesar de não duvidarmos de que o Sr. Dühring haja tido em suas mãos algumas das obras de Saint-Simon, em vão buscaremos, nas vinte e sete páginas impressas que lhe dedica, a”idéia fundamental” de Saint-Simon, a que mais acima se refere, nem também atinamos com”o que quer significar, por si mesmo, o quadro econômico de Quesnay, e por fim, queiramos ou não, temos de nos contentar com a afirmativa de que “a imaginação e o efeito filantrópico.., com a fantasiosa hipertensão própria dele, dominavam todo o mundo ideológico de Saint-Simon”. Em Fourier, só vê e só toma em consideração as suas fantasias sobre o futuro, cheias de minúcias novelescas. Não duvidamos de que isso “interesse muito mais” para pôr em relevo a infinita superioridade do Sr. Dühring sobre Fourier do que o pesquisar como eles “procura criticar por alto os fatos reais”. Por alto, quando nele não há uma só página em que não brilhem as chamas de sua sátira e da crítica às misérias da tão endeusada civilização! É como se disséssemos que o Senhor Dühring proclama “por alto” o Senhor Dühring como o maior pensador de todos os séculos. E, no que se refere a Roberto Owen, para escrever as doze páginas que lhe consagra, não teve outra fonte de informação senão a mísera bibliografia de Sargant, um filisteu que também não conhecia as obras mais importantes de Owen: as relativas ao matrimônio e à organização comunista da sociedade. Essa ignorância permite ao Senhor Dühring lançar intrepidamente a afirmativa de que não há base para “pressupor” em Owen um “comunismo decidido”. Se houvesse tido em suas mãos o seu Book of the New Moral World, não só teria visto afirmado nele o mais definido comunismo, com o dever geral de trabalhar e o direito de participar equitativamente do produto do trabalho – equidade dentro de cada idade, como Owen salienta sempre – como também, perfeitamente esboçado, o edifício da sociedade comunista do futuro, com os seus planos, a sua planta e a sua perspectiva. Mas, quando o “estudo das obras pessoais dos representantes da ideologia socialista se reduz ao simples conhecimento do título, ou, quando muito, de qual é o tema de alguns livros, como é o caso do Sr. Dühring, não há outra solução senão precipitar-se em afirmativas absurdas e inventadas. Owen não só pregou o “comunismo decidido” como também o praticou durante cinco anos (do fim da década de 1830 ao início da década de 1840) na colônia de Harmony Hall de Hampshire, cujo comunismo não deixava, quanto à sua decisão, nada a desejar. Eu mesmo tive ocasião de falar pessoalmente com várias pessoas que haviam pertencido a essa colônia comunista experimental. O que acontece é que Sargant ignora completamente a atividade de Owen entre os anos de 1836 e 1850. Por esse motivo, a “profunda historiografia” do Sr. Dühring debate-se nas mais negras trevas. O Sr. Dühring diz que Owen era, “em todos os sentidos, um verdadeiro monstro de impertinência filantrópica”. Pode dizê-lo o Senhor Dühring. Entretanto, se a nós nos ocorresse dizer desse mesmo Senhor Dühring, que nos fala do conteúdo de livros que só conhece pelo título e, quando muito, pelo assunto, que é “em todos os sentidos, um verdadeiro monstro de impertinência ignorante”, em nossos lábios isso seria um “insulto”.
Eram utopistas, pois, como temos dito, porque não podiam ser outra coisa, numa época em que a produção capitalista começava a desenvolver-se. Não tinham outra solução senão tirar da cabeça os elementos de uma nova sociedade, pelo simples fato de que na sociedade antiga esses elementos não se manifestavam ainda em caráter geral. Para esboçar os planos do novo edifício, tinham que ater-se aos ditames da razão, porque não podiam apelar para a história vivida. E se, hoje, quase oitenta anos depois de seu aparecimento, o Sr. Dühring entra em cena com a pretensão de construir o sistema “definitivo” de uma nova ordem social, não o desenvolvimento como o resultado necessário do material histórico existente, mas tirando-o de sua cabeça privilegiada, de seu espírito cheio de verdades definitivas e inapeláveis, não é mais do que um epígono dos utopistas, o último dos utopistas, ele que, por toda Parte, vê apenas epígonos. O Sr. Dühring chama os grandes utopistas de “alquimistas sociais”. É possível. Também a alquimia foi necessária em seu tempo. Mas, desde então, veio a grande indústria desenvolver as contradições que dormiam no seio do regime capitalista de produção, desenvolvendo-as até convertê-las em antagonismos sociais tão clamorosos, que já se pode – se é possível dizer-se – tocar com as mãos a derrota iminente deste regime de produção a tal ponto, que as novas forças produtivas se podem conservar e desenvolver desde que seja implantado um novo regime de produção consentâneo como seu grau atual de desenvolvimento; a luta entre as duas classes, criada pelo regime atual de produção e continuamente renovada, em antagonismo cada vez mais acentuado, invadiu todos os países civilizados, tornando-se cada dia mais violenta; já temos hoje consciência de seu encadeamento histórico e podemos penetrar nas condições da transformação social, que se torna inevitável, como podemos predizer igualmente as linhas gerais dessa transformação, condicionada também por ela própria. Quando o Sr. Dühring, em vez de limitar-se ao material econômico existente, elabora, tirando de seu augusto cérebro, uma nova ordem social utópica, não só pratica a “alquimia social”, como também age como agiria alguém que, depois de descobrir e enunciar as leis da química moderna, teimasse em restaurar a alquimia no seu antigo esplendor, valendo-se dos pesos atômicos, das fórmulas moleculares, da valência dos átomos, da análise espectral e da cristalografia, para, finalmente, descobrir… a pedra filosofal.

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