A persistência do trabalho escravo

Resgates em todo o país exigem reversão do desmonte feito por Temer e Bolsonaro

O Brasil ficou atônito quando, em 22 de fevereiro, foram libertados 207 trabalhadores em condições análogas à escravidão. Eles foram resgatados trabalhando em situação degradante na colheita para três das principais vinícolas nacionais – Aurora, Salton e Garibaldi –, em Bento Gonçalves, na serra gaúcha. Nessas empresas, os avanços tecnológicos mais modernos convivem com as formas mais brutais de exploração do ser humano!

Mesmo com as abundantes provas, o patronato local emitiu nota defendendo as empresas e condenando… as vítimas e a “política assistencial” do governo. E as empresas se livraram com uma ridícula multa de R$ 7 milhões, menos de 0,5% de seu faturamento anual! Em 2022, o faturamento somado das três vinícolas passou de R$ 1,5 bilhão.

Não se trata de um caso isolado. Veja-se o noticiário de poucos dias:

– em 1º de março, o Sindicato dos Servidores Municipais de Joinville denunciou o trabalho análogo a escravidão imposto a trabalhadores de uma terceirizada que faz obras para a Prefeitura (veja abaixo);

– em 10 de março, 82 trabalhadores em situação análoga à escravidão foram libertados de duas fazendas de cultivo de arroz em Uruguaiana (RS);

– em 17 de março, 212 trabalhadores foram resgatados em situação análoga à escravidão em alojamentos em Itumbiara (GO), Porteirão (GO) e Araporã (MG), de uma prestadora de serviços para fazendas e uma usina da empresa BP Bunge Bioenergia – associação entre a BP, uma das maiores petrolíferas do planeta, e a Bunge, gigante multinacional da área de alimentos. Pega em flagrante, a BP Bunge Bioenergia – especialista em modernidades como sustentabilidade, energia limpa e transição energética – deve se safar com uma multa abaixo de R$ 10 milhões e com uma nota em que “lamenta o ocorrido” e se isenta de responsabilidade direta.

Se os casos chocam pela frequência, pelos números e pelas empresas envolvidas, somam-se a muitos outros que vêm à tona regularmente. Em 2022, 2.575 trabalhadores foram libertados da situação de “escravidão moderna”, o maior número em dez anos. Com certeza, os casos descobertos são só uma pequena mostra da terrível realidade do país. A chaga da escravidão resiste no Brasil.

Herança escravista

A abolição legal da escravatura, há 125 anos, ocorreu após séculos de resistência e luta dos escravizados e do povo, mas foi feita de forma a preservar os interesses da elite. Não se realizou uma reforma agrária que desse aos libertados o pleno acesso à terra e a condições dignas de vida, nem a universalização do ensino, que levasse a uma ascensão generalizada nas condições de educação e trabalho. O século 20 viu a mentalidade escravista e o racismo no Brasil serem perpetuados como uma arma de superexploração da classe trabalhadora – com a servidão no campo, a informalidade e os baixos salários. É uma herança escravista presente e persistente, cuja superação faz parte das bandeiras emancipatórias do povo brasileiro.

Os combates nunca cessaram, e foram impondo o reconhecimento gradativo dos direitos trabalhistas no campo, inclusive na Constituição (veja mais ao final da matéria). Em 1995, o Brasil reconheceu a existência da “escravidão moderna” e montou um grupo de ação, articulando esforços do Ministério do Trabalho, Ministério Público, Polícia Federal e Polícia Rodoviária. Desde então, mais de 60 mil trabalhadores foram resgatados pelo país.

No primeiro governo de Lula, em 2003 e 2008, foram formalizados os últimos planos nacionais de combate ao trabalho escravo. O último concurso público para fiscais do trabalho ocorreu em 2013. Mas, desde o golpe de 2016, os governos atuaram para facilitar a “escravidão moderna”. Temer tentou restringir as definições de trabalho análogo a escravidão e bloquear a divulgação das empresas criminosas. Bolsonaro atacou diretamente a penalização de escravistas.

Ambos agiram para desmontar a fiscalização do trabalho – que envolve todas as questões trabalhistas, como trabalho infantil, condições de saúde e segurança, informalidade, e inclui o combate às condições análogas à escravidão. Em todo o Brasil, há a previsão de 3.644 cargos de auditor fiscal do trabalho, mas hoje existem apenas 1.949 fiscais. E o orçamento para o combate ao trabalho escravo veio sendo esvaziado e chegou quase a zero no final de 2022. 

O que fazer

Tudo indica que a escravidão moderna se agrava no país. Para o desembargador Jorge Luiz Souto Maior, do TRT da 15ª Região, a lei que liberou a terceirização de atividades-fim e a reforma trabalhista, ambas de 2017, fazem parte do cenário que facilita a disseminação do trabalho análogo à escravidão, pois as empresas tentam se desvincular da responsabilidade pelos abusos contra os trabalhadores.

A resposta a essa gravíssima situação, no contexto do novo governo Lula, envolve a revogação das ilegítimas e incorrigíveis Lei das Terceirizações e Reforma Trabalhista. Inclui, naturalmente, a recuperação da estrutura da fiscalização e do Ministério do Trabalho, com a realização de concurso público para recompor plenamente o quadro de servidores e a recomposição plena do orçamento. E passa pela efetivação do confisco das empresas escravocratas, de forma a punir severamente os que se utilizam do cativeiro e da degradação humana para turbinar a rentabilidade do capital.

Paulo Zocchi


O que diz a Constituição

Entre os direitos e garantias encravados pela luta popular na Constituição, está o artigo 243: “As propriedades rurais e urbanas (…) onde forem localizadas (…) a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei (…) (redação modificada em 2014)”.

Ferramenta prática de combate à escravidão moderna, o dispositivo constitucional, porém, permanece letra morta. Embora a determinação seja claríssima, a Justiça alega que falta “regulamentação legal” do Congresso para aplicá-la. Frente à indignação na opinião pública causada pelo episódio de Bento Gonçalves, a Defensoria Pública da União (DPU) entrou com pedido no Supremo Tribunal Federal, em 9 de março, para que obrigue o Congresso a regulamentar o artigo 243. Em 17 de março, o ministro Luiz Fux negou o pedido.

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