A reforma constitucional de Maduro e a “nova economia”

Uma contrarreforma trabalhista vem aí?

Colocar a carroça na frente dos bois, é a expressão mais adequada para a tendência de se ficar preso a análises estritamente conjunturais da realidade. A fumaça que se levantou diante da polarização entre Maduro e Maria Corina Machado acabou escondendo a necessária análise da dinâmica real de poder e dos acordos sociais que enquadram a sociedade venezuelana.

O fato de as câmaras patronais terem se abstido de apoiar uma eventual posse de Edmundo Gonzáles (candidato de direita que substituiu Corina, impedida, no pleito) e a postura distante dos EUA e de governos de direita da região apontam algo novo na confrontação Oficialismo x Oposição dos últimos 27 anos.  

Por um lado, as organizações patronais se concentram em maximizar os lucros de seus acordos com o governo (incentivos fiscais e flexibilização dos marcos protetórios dos trabalhadores). A postura tíbia de Trump reflete os acordos entre o Estado venezuelano e o lobby petroleiro e sua necessidade estratégica de baratear custos de extração. É a economia que arrasta a política, não o contrário. Trata-se de correlação de forças entre atores sociais e atores econômicos com expressão social.

“Democracia popular” e “nova economia”?

Assim Nicolás Maduro assumiu a presidência em 10 de janeiro para seu terceiro período sob uma nova coexistência. Como estratégia de legitimação, sua proposta de governo se centra numa reforma constitucional, para a qual convoca ao debate os diferentes atores sociais. O eixo dessa reforma seria consolidar a “democracia popular” e desenhar uma “nova economia”. 

Seria necessário definir as formas de participação dos atores sociais neste debate nacional, o que passaria por reconhecer interesses coletivos. Em nenhuma circunstância se poderia falar de uma “democracia participativa” se os eixos de discussão são impostos e tutelados por instâncias institucionais e setores econômicos, já com acordos adiantados e consolidados.

A realidade de 2025 está muito distante daquela de 2013, quando do primeiro mandato de Maduro. Durante anos a oposição desenvolveu um golpe institucional desde a Assembleia Nacional eleita em 2015, enquanto as câmaras patronais, em paralelo, exerceram sua força social para torcer o braço do governo e perfurar os marcos de proteção das grandes maiorias, tendo como estratégia central a especulação, a estocagem de mercadorias, o locaute, entre outras. 

Esses setores, durante todos esses anos, pediram mais garantias para o capital privado, uma reforma na Lei Orgânica do Trabalho (LOTTT), protestaram contra a retroatividade das prestações sociais, a estabilidade laboral, pediram exceções e benefícios para “resistir” à crise. 

Enquanto isso, milhares de trabalhadores foram despedidos de empresas como Polar, Regional, Coca-Cola, Pepsi, Cargil e outras tantas. A conflitividade laboral alcançou níveis jamais vistos, desobediência e desacato eram práticas comuns das empresas privadas diante de instâncias como a inspeção do trabalho. 

A chamada guerra econômica baseou-se em crimes socioeconômicos e práticas fraudulentas que ficaram impunes, por falta de vontade política do governo, mas também porque não existem marcos legais para penalizar esses crimes, nem sequer a Assembleia Nacional Constituinte de 2017 conseguiu legislar nessa matéria. Os acionistas estão protegidos por laços corporativos e as pessoas jurídicas não têm regulação adjetiva (procedimentos de penalização e sanções econômicas). 

Caos e anarquia do “mercado”

Para além da impunidade, em 2018 os grupos econômicos conseguiram acordos de coabitação com o Estado. Por via de fato o Estado adotou uma política de “não fazer nada”, o que permitiu uma reconfiguração econômica do setor privado baseada na diminuição do custo da mão de obra por meio de fechamentos de empresas e demissões em massa.

A dita recuperação econômica se baseou no fim da retenção de mercadorias pelo capital privado, as quais passaram a fluir cotadas em divisas, e “incentivos para a inversão”. Assim a construção da chamada “nova economia” parte desses cimentos preestabelecidos. 

Estando assim as coisas, cabe perguntar: existe vontade política para regular e restringir o caos e a anarquia do mercado? Ou, ao contrário, se busca concretizar políticas de abertura e flexibilização? 

A essa altura é um infantilismo acreditar que na Venezuela tudo se resume à polarização entre “esquerda” e “direita”, entre Maduro e Maria Corina Machado. A realidade de fundo é que o mercado necessita garantir as suas condições de inversão mediante o aprofundamento da flexibilização e desregulamentação laborais, sendo a LOTTT sumamente incômoda para ele, mesmo que sua aplicação seja administrada pelo Estado de forma discricionária em sua política de “deixar fazer”. 

Tudo aponta para uma contrarreforma laboral conveniente para os grupos econômicos privados, mas para isso há que se reformar a constituição, anular seus princípios em matéria trabalhista. Por outro lado, resulta conveniente para encobrir ataques aos direitos laborais, centrar a discussão em aprofundar a “democracia popular”, diluindo as forças sociais num debate que leva a um beco sem saída. Ou a “nova economia” incluiria uma economia popular distinta da economia de mercado?  

Salvador De León, membro do CAIT1

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(1) CAIT é a sigla de Coordenação Autônoma e Independente de Trabalhadores, agrupamento que luta por uma representação política da classe trabalhadora na Venezuela.

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