Artigo publicado na revista A Verdade, órgão teórico da 4ª. Internacional nº 29-30 – edição em português – julho de 2002
Os acontecimentos revolucionários na Argentina lançaram uma nova luz sobre um fenômeno real do movimento operário do Cone Sul da América do Sul, a crise do morenismo, embora secundária no plano mundial. A rebelião Argentina abalou o continente e voltou para lá os olhos dos povos do mundo. Afinal, se tratava do levante de um povo, numa situação extrema, contra a política de destruição do FMI e Bush, ainda mais nas condições posteriores ao 11 de setembro.
Aos militantes que conhecem um pouco a história do movimento operário da região, também chamava a atenção na farta cobertura do auge dos acontecimentos durante a segunda quinzena de dezembro de 2001, a ausência das bandeiras – quaisquer que fossem – das organizações políticas dos trabalhadores. Essa ausência é tanto mais significativa quanto há uma larga, mais que centenária, tradição de organização operária e democrática na Argentina, o mais “europeu” dos países do continente.
Ausência, em particular, dos grupos e organizações oriundos da crise do morenismo. Afinal, há uma década, o Movimiento Al Socialismo (MAS) ainda reivindicava alguns milhares de militantes, e seu poder de convocatória reunia várias dezenas de milhares em manifestações públicas.
Mas a maior parte dessa militância está hoje fragmentada – calcula-se em até 38 diferentes siglas reivindicando o trotskismo na Argentina! – e não jogou um papel no momento da explosão revolucionária. E não foi um dia ou uma noite de espontaneidade, mas três semanas de ação política de massas, ininterrupta, que derrubaram sucessivamente dois governos. O surgimento das “assembleias populares”, em toda fase inicial, se deu à sua margem. Esta curta nota mostrará, na intenção de contribuir para uma clarificação necessária para a IV Internacional, que isso não foi casual, na região e na Argentina em especial.
Dois meses antes
Dois meses antes do levante que derrubou o governo centro-esquerda de De La Rúa, em outubro, realizaram-se eleições para a Câmara e o Senado.
O resultado era mais que uma “recuperação” do peronismo, que fora alijado da presidência na eleição do ano anterior. Dessa vez, o traço principal de longe era um gigantesco fiasco das instituições. Dos 25 milhões de eleitores, 10 milhões votaram branco, nulo ou se abstiveram.
Um jornalista calculou que todas as listas de esquerda, incluindo votos em certos candidatos de listas que não se poderia dizer de esquerda, tudo beirava 1 milhão de votos.
Com razão, a imprensa destacou, preocupadíssima, os 40% de abstenção. Um recorde secular sem que houvesse qualquer campanha organizada por uma força política, e chamou-o de “voto bronca” – em Buenos Aires, centro do país, ele foi majoritário.
Na Argentina isso foi um terremoto institucional, em relação aos hábitos políticos da história nacional, à diferença, por exemplo, do Brasil, que por outras razões conviveu a maior parte do tempo com taxas relevantes de abstenção. Qualquer organização política séria deveria tirar daí uma conclusão.
Uma organização que reivindica o programa da revolução proletária, deveria tirar deste fato central da abstenção uma conclusão fundamental na sua ação para ajudar as massas no terreno direto da luta de classe. A questão era ajudar a realizar a unidade contra um regime insuportável – que, literalmente, não se podia aguentar mais, ainda mais que as urnas mostravam a precária situação das classes dominantes que não se entendiam – isso para por fim ao pagamento da dívida externa que baseava as políticas ditadas pelo FMI através do governo De La Rúa, como antes no governo do peronista Menem. Era o que jogava o povo num ciclo de crescente desemprego, miséria e fome, face ao qual as instituições, os “políticos”, não se diferenciavam. Note-se que os saques a comércios e supermercados que depois se generalizariam, já tinham, não obstante, se iniciado bem antes das eleições.
As organizações da esquerda, mais ou menos radicais, estavam todas submersas na expectativa de acumular mandatos. E continuaram!
A principal organização egressa da tradição morenista é hoje o MST (Movimiento Socialista de los Trabajadores), que se apresentou nas eleições na coligação Izquierda Unida, basicamente o MST com o Partido Comunista Argentino. Lembremos que esse PCA sustentou a ditadura do general Videla nos anos 80 (ver abaixo). Deputados, mais deputados!
O jornal do MST publicado após o pleito faz seu balanço, tira suas conclusões.
O central é o deputado eleito do partido, outro deputado da coligação, mais os avanços entre representantes provinciais, mais números e comparações em eleições anteriores e com outras forças da esquerda neste pleito. Para concluir estamos bem, e melhoramos.
De fato, um deputado a mais ou menos para uma força minoritária, isso tem um lugar. Mas as massas, o que elas manifestaram globalmente por sua própria ação, mesmo nas condições deformadas de uma eleição, isso haveria que procurar nas páginas do jornal.
E se encontra, na forma de uma apreciação dos votos brancos, nulos e abstenção, que diz mais ou menos o seguinte: – Que tontos, 10 milhões, nem imaginam quantos deputados poderiam ter eleito!
Dispostos dessa forma, estavam na verdade não apenas uma organização, mas os partidos no seu conjunto. Assim não apareceram como partidos – embora seus militantes estivessem presentes com certeza – nos acontecimentos revolucionários, cujo traço central era a espontaneidade, semana após semana. As “assembleias populares” por todo o período inicial se fizeram sem essas organizações.
A posteriori, diferentes depoimentos dão conta inclusive de uma hostilidade que havia aos partidos em dezembro, e não apenas nos bairros de classe média. Com efeito, uma palavra de ordem central das manifestações era “Que se vayam todos! ”, dirigida aos “políticos”, juízes, enfim, às instituições.
E porque distinguir, ou melhor, como a ampla massa poderia distinguir “essencialmente” os partidos que tinham só um ou dois deputados, do bagaço geral das instituições venais e corruptas a serviço do imperialismo?
No momento em que a Câmara de Deputados estava reunida para discutir a sucessão de De La Rúa, em certa medida as atenções populares se voltaram para ela.
Ali, uma deputada, Elisa Carrio, que fora dissidente do partido do presidente deposto, pôs o dedo na ferida denunciando o fracasso de todos, do parlamento. Mas tampouco se atrevia a tirar alguma conclusão sobre seu próprio mandato ou a participação naquela sessão (transmitida pela TV), por exemplo. Seguia o jogo.
A esquerda falava pela voz do deputado Zamora, ex-deputado no auge do MAS, hoje uma popular liderança independente (que a boa parte da esquerda quis que se apresentasse a sucessor de De La Rúa). Num longo e duro discurso, formalmente correto na denúncia dos crimes dos principais políticos radicais ou peronistas ali presentes, ele termina, não obstante sem abrir qualquer saída.
Nas condições argentinas, pareceria que terminada uma eleição, alguns discursos radicais, e prepara-se a próxima eleição. Cai um presidente, preparemos a próxima eleição. Enfim, um hábito que as massas exploradas não podem assimilar.
Pode-se negar que, qualquer que possam ser as “boas-intenções”, eram todos sustentáculos do jogo político que dá uma impressão de vida a um regime que, na verdade, é um apêndice das decisões tomadas em Washington?
Na Argentina – e não apenas lá! – não é preciso ser mãe de um preso político desaparecido para gritar, como Hebe de Bonafini (Madres de la Plaza de Mayo), que são todos a mesma merda. Nem por isso, precisamos concordar com as conclusões que ela tira para a ação política.
Uma década antes
O morenismo – e seria necessário que incluir no panorama do nacional-trotskismo do Prata a formação Partido Obrero, de Jorge Altamira, e suas cisões – não foi sempre só isso, nem chegou a essa impotência por casualidade.
Há cerca de dez anos, a LIT se afundava numa crise. Uma discussão bastante confusa, mesmo para quadros experimentados na luta interna, levava a divisões sucessivas.
Morto Nahuel Moreno, que com suas fraquezas e qualidades assegurara a corrente, o morenismo integra plenamente as consequências da Queda do Muro de Berlim, que levava à explosão da própria URSS.
A crise da burocracia estalinista alimenta crise da LIT.
Uma certa perplexidade aparece na discussão. O que está acontecendo?
Entre as várias “tendências” da luta interna aparecem balanços de que “Trotsky elaborou um programa e uma teoria justa, mas suas previsões e prognósticos tinham certas lacunas…”.
Logo, já começam a se perguntar se a URSS era mesmo o que se dizia, “um estado operário degenerado, a ser defendido, apesar da burocracia”.
Numa homenagem póstuma a Moreno publicada nessa época pelo MAS, na verdade os morenistas fazem uma revisão de Moreno. Recorde-se que Moreno tinha combatido o pablismo, dentro do SU, é verdade, mas combatido a ponto de se retirar no final dos anos 70.
Por exemplo, nessa revisão se “explica” que as revoluções pós-segunda guerra se deslocaram para países secundários, especialmente fora da Europa.
É um “terceiro mundismo” que pode servir ao seu nacional-trotskismo, acreditando que “táticas” tortuosas os colocariam em condições de tomar o poder na Argentina em curto prazo, como diziam, aliás. Mas é também um esforço para apagar o movimento da revolução política, então essencial na revolução mundial, e que aflorou em Berlim 1953, Budapeste 1956 e Praga 1968, sob o stalinismo. Moreno, ao contrário, valorizara estes movimentos.
É assim que, finalmente, o jornal do MAS no fim de 1991, face ao significado da unificação da Alemanha conclui que “em outros termos, o Estado operário (a RDA, Alemanha Oriental) cessou de existir…Foi absorvido pelo Estado capitalista-imperialista (RFA, Alemanha Ocidental) e foi desta forma que se consumou a restauração capitalista na Alemanha Oriental. Um fato se produziu que aparentemente contradiz uma tese central do marxismo. A burguesia, pacificamente, chegou à restauração capitalista no país sem precisar temer a resistência das massas trabalhadoras, e mesmo com sua aprovação”.
Na época, um artigo de A Verdade (n. 5 de março 1993), então órgão da QI-CIR (Quarta Internacional – Comitê Internacional de Reconstrução), ressaltava: “O estado operário cessou de existir…que fórmula! A RDA é um ‘estado operário’ sem mais! Quando Trotsky caracterizava o Estado onde a burocracia tinha usurpado o poder político, destruído todos organismos de poder democrático da classe (sovietes) como sendo um estado operário degenerado, não eram ‘defeitos’, mas a própria definição do Estado controlado pela burocracia como camada burguesa, aparelho de Estado que a própria classe operária deveria destruir”. Ou seja, nunca se tratou de defender tal Estado a seco, ignorando a burocracia, partidários da revolução política que somos.
Está claro que sem um claro critério de classe – que instituições de classe se defende, e o que se defende nessas instituições de classe – sem isso é a desorientação total. Multiplicaram-se na LIT diferenças sobre questões ou táticas ou “estratégicas”, mas sem um critério comum para resolvê-las, ou pelo menos estabelecer uma hegemonia sólida.
Justiça seja feita, na polêmica interna da LIT não se tratava de um grupo fazer a revisão contra outro assumir a defesa de programa. Senão, um cenário onde, por debaixo de dúzias de diferenças entre diversas tendências, aparece aqui e ali, tanto entre uns como entre outros, esse questionamento de fundo sobre a questão do Estado operário. Nunca verdadeiramente resolvida, por outro lado. Enquanto se vai de divisão em divisão.
Duas Décadas Antes
De Moreno dissemos qualidades e fraquezas.
Entre estas últimas, esteve a ruptura unilateral por ele decidida em 1981 da Quarta Internacional – Centro Internacional, pouco tempo depois de formar, em 1979, o Comitê Paritário com a Tendência Lênin-Trotsky, saída também do SU na ocasião, e o CORQUI (Comitê de Organização para a Reconstrução da Quarta Internacional). Abandonando a QI-CI, Moreno se cobriu com acusações à OCI (Organização Comunista Internacionalista) francesa, de capitulação ao primeiro governo Miterrand. Mas era uma cortina de fumaça para deixar-lhe as mãos livres para suas operações na América Latina, em particular na Argentina, que em pouco afloraram na escabrosa aliança com o PCA, a chamada Izquierda Unida.
Este partido, o PCA, estava bastante combalido e desmoralizado, depois da década de colaboração com a ditadura em nome de argumentos como o “comércio de grãos com a União Soviética”. Não obstante, a ditadura era responsável pela brutal repressão ao movimento operário com o massacre dos “desaparecidos”. Foi Moreno quem lhes estendeu a mão e o manto, para reporem seu partido no cenário, com um cálculo eleitoral de benefícios. Então, se pode ver, que o que se manifestou hoje na explosão revolucionária – quando se mostraram afundados todos no cretinismo eleitoral – fora preparado pelas condições desorientadas da cisão dez anos atrás – depois de abandonar o critério de classe face à unificação alemã -, abandono cujas raízes deitam à guinada nacional-trotskista de 20 anos antes.
Brasil ao lado
O desenvolvimento do morenismo argentino deu-se em paralelo no Brasil.
Se a então Convergência Socialista junto com a ex-FB (Fração Bolchevique) na maioria (pois uma parte resistiu e se integrou às seções da QI-CI, inclusive na brasileira) seguiu a guinada de Moreno há 21 anos, quando explode a crise há 10 anos, aí dividiu-se a CS (Convergência Socialista). E ela mesma, já com o nome de PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado), rompeu relações com o MAS argentino que também se dividira.
Curiosamente, o espólio da sigla LIT ficou com os brasileiros do PSTU.
Mas a passagem de CS para PSTU não correspondeu só à mudança de nome. Mas sim à uma decisão de – novamente, sem qualquer critério de classe – abandonar e romper com o Partido dos Trabalhadores, onde era corrente interna. O que foi feito em acordo com a cúpula do PT – uns barulhentamente pedindo para serem expulsos (a CS), os outros operando para que um máximo de oponentes internos os seguissem e a deixasse em paz (a cúpula do PT).
É importante registrar que tal como as posições revisionistas sobre o Estado operário apareciam dentro das várias tendências em luta interna no MAS-CS-LIT, também a decisão de cindir o PT foi tomada de início em acordo pelas diferentes tendências da CS brasileira.
Mesmo se pouco depois, após a cisão da CS, a fração menor, a CST brasileira que corresponde ao MST argentino – decidiu voltar ao PT, aonde se encontra até hoje.
Pablismo
Uma palavra é necessária sobre o laço, nunca completamente cortado, entre o morenismo e o pablismo internacional. Com certeza, é o Secretariado Unificado a coluna da sobrevivência do pablismo – revisionismo do trotskismo – cujo lugar no mundo está hoje marcado pela necessidade maior do imperialismo se salvar por um dispositivo de sustentação para além dos aparelhos contrarrevolucionários tradicionais dos PCs e dos PS’s, eles próprios em crise.
É a situação que dá origem à emergência do centrismo reacionário, cuja marca internacional é o Fórum Social Mundial, onde trata de integrar as organizações independentes ao ajuste, destruí-las, “ONGuizá-las”. É sabido o lugar chave do SU nessa articulação Attac-ONGs-Governo do Rio Grande do Sul. Mas as correntes morenistas se encontraram todas aí, sem exceção, na grande missa de Porto Alegre.
Para além do fato inegável das caravanas a Porto Alegre, há a questão programática de fundo, o Orçamento Participativo (OP), que fez de Porto Alegre a vitrine desta gente.
O que é e para que serve o OP já foi demonstrado nesta revista.
Miguel Luna
Clique aqui e leia o segundo artigo sobre o morenismo.