Iniciamos uma série de artigos sobre o ano de 1968, marcado por mobilizações, greves gerais e processos revolucionários em todo o mundo. Um ano que revelou uma crise conjunta do imperialismo dominante dos EUA e da burocracia que dirigia a União Soviética, os dois pilares da “ordem mundial” estabelecida ao final da 2ª Guerra (1945), combinando a necessidade da revolução social nos países capitalistas com a da revolução política nos estados operários deformados pelo stalinismo.
Começamos pelos acontecimentos que abalaram a então Tchecoslováquia, país do “bloco socialista” dirigido por Moscou, apoiando-nos na reconstituição feita pela “Carta de A Verdade” n° 891 da seção francesa da 4ª Internacional.
Como tudo começou
Em 31 de outubro de 1967, estudantes da Universidade de Praga saíram às ruas e foram reprimidos. Durante o mês de novembro ocorrem assembleias e no dia 20 uma nova manifestação incluindo os professores se realiza. A Associação de Escritores se soma à exigência de direito à manifestação e livre discussão. O discurso de um comunista, Ludvik Vaculik, apontando a origem da situação no monopólio do poder por uma camada de burocratas circula clandestinamente.
Divergências aparecem na direção do Partido Comunista (PC), encabeçado por Antonin Novotny, chefe de Estado há 14 anos. Em 5 de janeiro de 1968, Novotny é substituído por Alexander Dubcek, que vai a Moscou justificar o que parecia ser apenas a troca de um dirigente desgastado.
Mas, o movimento que vinha de baixo não para: em 13 de março, estudantes de Filosofia publicam uma “carta aberta aos operários” denunciando a operação do governo de apresentá-los como defensores do capitalismo. Assembleias convocadas nas fábricas pelos dirigentes oficiais para condenar os estudantes acabam tendo o efeito contrário, os operários os apoiam!
O que provoca a revolta de operários e jovens é o velho sistema stalinista de mentiras para desacreditar qualquer crítica à direção do partido e do Estado. O medo de um choque frontal leva a direção a deixar que as críticas se exprimam e Dubcek anuncia um processo de democratização “com os limites necessários”.
Com uma margem maior de liberdade de discussão, os processos stalinistas dos anos 1950 são revelados, reforçando a exigência de se saber a verdade e de reabilitar comunistas que foram executados. O livro de Arthur London, “A Confissão”, que relata as sessões de tortura no processo de Rudolf Slansky (secretário do PC em 1952) é objeto de viva discussão entre estudantes, intelectuais e operários.
A questão de um congresso para reformar o partido começa a ser discutida, sem oposição de Dubcek, e ele é previsto para setembro.
Conselhos operários e democracia
Em 26 de junho, a Assembleia nacional em Praga suprime a censura e depois reabilita as vítimas dos processos stalinistas. Reivindicações operárias sobre salários, aposentadoria e licença maternidade são atendidas. É anunciado um estudo para a criação de conselhos operários. Tal como na Polônia e na Hungria em 1956, esses conselhos são concebidos pela burocracia como organismos de cogestão da empresa sob controle do regime de partido único, e não como expressão da democracia operária colocando o Estado sobre controle dos trabalhadores.
Mas a discussão sobre a natureza do Estado é inevitável. O “Manifesto das 2 mil palavras” é publicado em 27 de junho: “O principal erro e a maior manipulação desses dirigentes é que eles justificam as arbitrariedades dizendo ser a vontade dos operários”. Ele propunha a criação de comitês de defesa da liberdade de expressão.
Um setor da direção do PC denuncia esse manifesto, mas uma batalha de moções a favor e contra o mesmo demonstra o seu isolamento. O mesmo ocorre nas eleições para delegados ao congresso do partido. Situação inquietante para o Kremlin, pois o “mau exemplo” tcheco influenciava os povos dos demais países da Europa do Leste.
Dubcek é prevenido por Janos Kadar da Hungria em 17 de agosto que os russos preparam uma intervenção militar. Moscou não queria esperar o congresso do PC tcheco de 9 de setembro.
Invasão e resistência
Na noite de 20 para 21 de agosto, 600 mil soldados do Pacto de Varsóvia(1) invadem o país e tanques russos ocupam os acessos a Praga. Milhares saem às ruas e as tropas de ocupação não encontram apoio nem no exército tcheco. O comitê do partido de Praga conclama pelo rádio os delegados do congresso a virem à capital por todos os meios.
Com a sede do PC ocupada por tropas russas, os delegados se reúnem na fábrica CKD, protegidos por milícias operárias de Praga. Eles eram 1026 sobre um total de 1250 eleitos. Mas o comitê central do partido não reconhece o congresso e Dubcek é prisioneiro dos russos. Mesmo assim, uma nova direção de 144 membros é eleita e um chamado à greve geral é lançado para 23 de agosto.
Uma delegação de dirigentes do partido vai a Moscou “negociar” com Brejnev (2) e de volta no dia 28 faz com que Dubcek assine um acordo que prevê a volta à situação anterior a janeiro, apagando o congresso.
Mas a “normalização” foi difícil. Greves e manifestações ocorrem, os operários constroem sindicatos independentes. Em janeiro de 1969 o estudante Jan Palach se imola no centro de Praga, gesto de enorme repercussão na juventude em todo o mundo. O congresso dos sindicatos, no dia de seu enterro, conclama uma greve de cinco minutos seguida maciçamente.
Após manifestações em 28 e 29 de março de 1969, a repressão aumenta. Em 13 de abril, Dubcek recusa fazer uma declaração exigida por Moscou e é substituído por Gustav Husak. O herói olímpico Emil Zatopek, ministro dos esportes, não querendo participar da “normalização”, é destituído e enviado a ser lixeiro. Reconhecido na rua, uma multidão corre atrás do caminhão onde ele estava pelas ruas de Praga.
Os regimes burocráticos da Europa do Leste se alinham com a intervenção russa. Fidel Castro e Mao Tsé-Tung também a aprovam. Mas vários partidos comunistas da Europa ocidental são obrigados a condenar a intervenção, ainda que defendendo a “normalização”, e começam a girar para um “socialismo por via parlamentar”, combinado com o apoio à burocracia de Moscou.
A intervenção e repressão na Tchecoslováquia vai abrir uma crise nos partidos comunistas, confrontados em seus países, como na França, a grandes mobilizações de massa em 1968, enquanto a luta dos trabalhadores e jovens tchecos vai inspirar não só futuros movimentos de revolução política no leste europeu, mas também vai reforçar a recusa aos métodos e a política stalinistas por setores crescentes do movimento revolucionário em todo o mundo.
Lauro Fagundes
Notas
- Aliança militar entre a URSS e países europeus de sua órbita (1955-1991): Alemanha Oriental, Bulgária, Tchecoslováquia, Hungria, Polônia, Romênia e Albânia (retirou-se em 1968).
- Leonid Brejnev, presidente da União Soviética e principal líder do Partido Comunista entre 1964 e 1982, quando morreu.