Por Alberto Handfas
[NOTA: O leitor se recordará, o jornal O Trabalho abordou, a proposta de “orçamento paralelo” ou “orçamento de guerra”, uma exceção nas regras orçamentárias para o período da pandemia. Ela foi articulada ainda em março pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM), para uma primeira votação às carreiras em 3 de abril. A Proposta de Emenda Constitucional no. 10 foi, então, cantada em verso e prosa, especialmente no aspecto do Comitê de Gestão, previsto inicialmente com participação de “representantes da Câmara e do Senado” e outros entes estatais.
O “orçamento de guerra” alimentou a especulação sobre um “parlamentarismo branco” que se sobreporia ao odiado presidente Bolsonaro, com Maia liderando. Transpirava na bancada parlamentar do PT um sentimento de que, desse modo, ela iria “governar” indiretamente. Alguns dirigentes sindicais se portavam quase como ministros, pela influência junto ao todo-poderoso Maia.
Mas malgrado a urgência absoluta da situação, a proposta rolou 5 longas semanas – longas, para o povo que sofre, mas nem tanto para os parlamentares instalados em sessões virtuais – até ser votada finalmente na Câmara, agora em maio, após idas e vindas ao Senado, ficando sem a tal “participação”. Foi aprovada pela quase unanimidade dos parlamentares: 477 a favor, 1 contra. O artigo abaixo explica quem, depois do rolo, foi o grande beneficiário. Markus Sokol]
A PEC-10, o dito “orçamento de guerra”, foi aprovada no dia 6 de maio como a Emenda Constitucional 106. Ela libera o Banco Central (BC) para alimentar especialmente o lucro dos especuladores financeiros, salvando-os de prejuízos durante a pandemia. A grande novidade por ela trazida é essa, pois a suspensão do limite de gastos – propagandeada no Congresso Nacional como uma benevolência – já estava garantida por um Decreto Legislativo no Congresso, logo no começo da pandemia (DLG-6 20/03/2020).
Aquele DL já liberara gastos públicos – inclusive para folha de pagamentos e contratações – do limite imposto pelo famigerado “teto de gastos” (EC 95), e pela “regra de ouro” da Lei de Responsabilidade Fiscal. O DL se baseava, aliás, no próprio artigo 65 da LRF, que permite a suspensão dos limites em caso de “calamidade”. Portanto, não era necessária uma emenda constitucional para isso.
Esta nova EC-106, somente segregou do Orçamento da União, os gastos emergenciais num “orçamento paralelo” até 31/12. O objetivo contábil é evitar “impacto fiscal” no orçamento geral (anual).
Então, a verdadeira novidade da EC-106, que explica um certo barulho na imprensa e no Congresso, é autorizar o Banco Central (BC) a comprar títulos e ações de empresas privadas nos mercados. O argumento é o de injetar “liquidez” no mercado e, assim, supostamente “ajudar” empresas em dificuldade.
Mas ao comprar títulos ou ações no mercado secundário (*), o BC não empresta nem repassa dinheiro às empresas. Elas captam empréstimos ou se capitalizam apenas no mercado primário, quando emitem títulos (ou ofertam ações), comprados por instituições financeiras, bancos etc. Estes, por sua vez, revendem esses ativos sucessivas vezes nos mercados secundários. Assim, ao invés de ajudar empresas produtivas, o BC vai ajudar mais aos especuladores.
Hoje, as ações e títulos de empresas privadas estão altamente desvalorizadas, já que elas estão endividadas e com as receitas em queda. As instituições financeiras que as carregam em suas carteiras terão, portanto, problemas em seus balancetes e com os acionistas.
Agora, o BC anunciou compras de até R$ 972 bilhões destes ativos. Essa “injeção de liquidez” no mercado secundário – dinheiro despejado de helicóptero, se diz nos EUA (**) -, servirá para limpar esses ativos, chamados “tóxicos” devido ao enorme risco de inadimplência para as instituições financeiras.
Desde janeiro, e ainda mais com o avanço da crise em março, as instituições financeiras já não conseguiam vender esses ativos – mesmo com deságio (descontos) – e teriam, portanto, enormes prejuízos. O BC, ao impulsionar a demanda por tais ativos elevará seus preços, garantindo lucro ou evitando prejuízo aos especuladores. Para disfarçar, a EC proíbe bonificações da gerência de instituições financeiras com lucro daí advindo.
Se mais adiante estes papéis voltarem a se desvalorizar, porque algumas empresas vão falir e outras terão dificuldades por um bom tempo, é o BC (a Nação) quem ficará com todo o prejuízo!
E se, de fato, quisesse preservar empregos “salvando” empresas produtivas, o BC poderia emprestar diretamente à elas (como permite a lei 11.882, promulgada após a crise de 2008), ou ainda usar os bancos públicos para isso, ou, melhor, usar o BNDES-Par para estatizar de fato várias delas.
O governo Bolsonaro e o atual Congresso não farão isso.
No Congresso, as “ressalvas” introduzidas na EC-106 pelos parlamentares são cosméticas: a) o ativo a ser comprado pelo BC precisa de classificação “BB – ou superior” em uma agencia de risco (mas em 2008 se viu que as agencias davam nota máxima a ativos tóxicos); b) a “prioridade” dada às micro e pequenas empresas é inócua (elas não emitem títulos ou ações, quanto mais com nota de agências). E, por fim, como tudo que é ruim pode piorar, a Câmara dos Deputados, excluiu da PEC- 10 tal como veio do Senado, a obrigação de empresas beneficiadas “manterem os empregos”, ali colocada pela bancada do PT.
Outra política de emergência pede um outro governo
Àquele quase R$ 1 trilhão (972 bilhões), se juntarão outros 1,2 trilhões já disponibilizados aos bancos: 400 de liberação de depósitos compulsórios (que os bancos são obrigados a fazer para basear seus créditos) e mais 800 em linhas de crédito lastreado em ativos duvidosos.
Mas até agora (25/05), com todo esse mar de liquidez dado aos bancos, não houve aumento de crédito a empresas produtivas ou à famílias. Ao contrário, os bancos ficaram mais rigorosos na concessão de empréstimos, mantendo altos spreads (taxas de juros) e usando o dinheiro despejado pelo BC para especular, ao invés de recuperar a economia.
Alguns deputados do PT criticaram, mas a maioria da bancada acabou aceitando essa EC que libera o BC para operar no mercado secundário de ativos financeiros.
Vários economistas “keynesianos de esquerda” (Belluzzo, Ricardo Carneiro etc.), com influência no PT e no PSOL, defenderam essas medidas (“salvar bancos para evitar quebradeira sistêmica”).
Uma corrida bancária traria, de fato, um efeito dominó devastador para correntistas e milhões de empregados. Mas outro governo, um governo soberano que não trabalhe para os bancos, teria alternativas: se o BC liberar crédito aos bancos, exigir também o seu repasse a taxas baixíssimas de juro para empresas e famílias; e mais ainda, face à uma quebradeira ou paralisação dos negócios, estatizar o sistema financeiro ao invés de salvar os especuladores.
Mas essa já é uma outra conversa, que muitos economistas e parlamentares “progressistas”, além, de obviamente, o ministro Guedes, não querem encarar.
(*) simplificando, o mercado primário é como numa feira o produtor vender diretamente um produto, o mercado secundário já é um tipo de revenda pelos atravessadores de produtos, mais especulativos.
(**) a EC-106 permitirá ao BC fazer aqui uma Expansão Quantitativa de moeda (Quantitative Easing), similar ao que o FED estadunidense e outros bancos centrais fizeram em 2008-12; mas ela só manteve artificialmente a especulação financeira postergando a crise com a queda da taxa de lucro.