Bolsonaro pode sair vitorioso

Texto originalmente publicado em Folha de S.Paulo, com autoria de Conrado Hübner Mendes (Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade – SBPC)

Bolsonaro sofreu derrota eleitoral acachapante. Não pela pequena margem de votos favoráveis a Lula, mas pelo quase milagre da vitória diante do arsenal de práticas ilegais da campanha do presidente. Foi uma eleição corrupta e desequilibrada, em favor de Bolsonaro. Nem assim conseguiu a reeleição. Uma façanha mítica na história do presidencialismo.

Abuso de poder político, econômico e religioso; orçamento secreto, auxílios eleitoreiros não revogados por apatia do STF; coação pública (por lideranças locais, como no escândalo de Coronel Sapucaia, revelado por Caco Barcellos) e assédio privado (de empresários sobre empregados, por exemplo), que atualizaram o voto do cabresto; a insurreição da Polícia Rodoviária Federal para atrapalhar votos do nordeste.

Bolsonaristas atribuem derrota à “ditadura judicial”, como chamam qualquer decisão que lhes desagrade. Bolsonaro reclama da parcialidade do TSE, que exigiu, por exemplo, transporte público gratuito nas capitais do país para facilitar o voto de pessoas pobres.

Num fim patético e melancólico, Bolsonaro ficou 45 horas em silêncio enquanto suas redes incitavam arruaça de caminhoneiros pelas estradas do país. E, ao se pronunciar por 3 minutos, sem assumir responsabilidade por qualquer coisa, fez jus à biografia do covarde.

A humilhante derrota eleitoral de Bolsonaro é passo modesto diante do desafio que colocou à democracia. O líder do maior programa de delinquência política da história brasileira ganhará se sair juridicamente impune (e elegível) e politicamente vivo. E se o bolsonarismo, fenômeno que transcende Bolsonaro, tornar-se socialmente normalizado e aceitável. São múltiplas as frentes de defesa da democracia que a figura derrotada ajuda a iluminar.

Bolsonaro também pode ganhar enquanto o risco que traz à democracia continuar mal compreendido. A ciência política não autoriza nem recomenda, mas o analista Carlos Pereira, por exemplo, participa desse debate por meio do abuso retórico (“democracia risco-zero”), da ironia e da caricatura.

“Ih… a democracia brasileira não ruiu”, em janeiro de 2020, foi sua forma de decretar vitória contra quem supostamente previa golpe com tanques na rua. Uma aposta que ninguém fez. “Ufa… A democracia foi salva!”, em novembro de 2022, serviu de chiste para explicar que “foram sofisticadas instituições” que nos salvaram.

Se Bolsonaro jamais vê instituições, mas somente pessoas (vassalos ou inimigos), esse clube da análise política parece jamais ver pessoas reais, mas somente instituições (funcionando). Assim menospreza a fragilidade dessas instituições e o papel de quem as pilota.

Que autoridades possam ser corajosas e prudentes, com maior ou menor capital político, ou corruptas e adeptas do vandalismo, não entra na análise. Pereira profetizou que Bolsonaro derrotado iria “cooperar pacificamente na transição”. Pois é. Isso se chama negacionismo político. Com uma pitada de “chuteful thinking” (primo do “wishful thinking”).

Diante da urgência da responsabilização jurídica de Bolsonaro e seus agentes, já se começam a ouvir ecos da perversa tradição brasileira da “pacificação”, que de paz nunca trouxe muito. Produziu, sim, pactos de amnésia, anistias assimétricas, acordos de cúpula empurrados a fórceps às maiores vítimas da violência.

A anistia a agentes do Estado é uma espécie de cheque pré-datado para nova conflagração. O apelo à pacificação, quando o conflito se dá entre autor e vítima de crime, disfarça irresponsabilidade e premia o criminoso. O conflito suprimido permanece latente e à espera da ocasião para nova insurgência. A impunidade de Bolsonaro não só permitirá que ele se reeleja mais adiante, como fará brotar clones tão ou mais perigosos.

Para desbolsonarizar o futuro é indispensável reparar o passado e não subestimar a ameaça do presente. Bolsonaro foi possível, entre outras coisas, pela extraordinária leniência institucional à sua conduta ao longo de 30 anos. Nunca o levaram a sério. Nem mesmo Alexandre de Moraes, veja só, que em 2018 votou por sua absolvição porque viu na frase “quilombola não serve nem para procriar” só grosseria. A história poderia ter sido diferente.

Hoje o país tem nova oportunidade. As leis, os crimes e as provas estão aí. Falta a disposição de autoridades mais vertebradas que Augusto Aras. Não haverá outra chance.

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