A 17 de janeiro de 2014, em Lavapés, bairro de Madri, o movimento Podemos apresenta-se na continuidade dos Indignados, que surgiram nas manifestações realizadas em toda a Espanha a 15 de maio de 2011, razão pela qual este movimento se chamou também 15-M.
por Jesus Bejar, Angel Tubau, Luís Gonzalez
Este novo movimento que acaba de se constituir em organização saiu, nomeadamente, de uma cisão da Esquerda Unida (coligação dirigida pelo Partido Comunista Espanhol) em Madri, e recebeu o apoio desde o início de outros agrupamentos do mesmo tipo, em particular da Esquerda Anticapitalista (ligada ao NPA, de Besancenot, em França), embora não lhes tenha sido permitido ter postos de direcção aquando das eleições para a Assembleia Cidadã, por recusarem a dissolver-se.
Com um forte apoio mediático (imprensa e televisão), o Podemos participou nas eleições europeias de 25 de maio de 2014 e, para surpresa geral – numa situação de 54% de abstenção do eleitorado –, obteve 1.245.000 votos e cinco eleitos para o Parlamento Europeu.
Imediatamente após as eleições de maio, o núcleo dirigente – chamado “equipa de trabalho”, dirigida por um professor da Universidade de Madri, Pablo Iglesias – decidiu constituir-se em organização política.
Convocou um congresso, chamado “Assembleia Cidadã”, que teve lugar de 18 de outubro a 15 de novembro. As últimas sondagens oficiais previam para o Podemos, nas próximas eleições legislativas, um resultado equivalente aos do Partido Popular e do PSOE (Partido Socialista).
Os redactores deste artigo, membros da secção no estado espanhol da 4ª Internacional, querem fornecer à vanguarda operária de todos os países os elementos de análise sobre os pormenores desta nova organização, nomeadamente porque – após o impacto internacional dos Indignados – o Podemos quer se estender a outros países, em particular na Europa, como alternativa aos partidos tradicionais da classe operária, apresentando-se como uma organização nova, honesta, tendo como eixo a luta contra a corrupção e pela regeneração democrática.
Sem juízos preconcebidos, nas discussões que conduzimos com numerosos militantes nas universidades, nas fábricas, nos locais de trabalho, e com os quais partilhamos por vezes os combates – produtos da luta de classes –, devemos apresentar uma caracterização, resultante da experiência, e responder à questão: esta organização responde ao combate necessário para uma representação política fiel aos interesses dos trabalhadores e dos povos, põe no centro a luta para acabar com o regime monárquico, pela instauração da República, pela união livre das repúblicas soberanas, emancipadas de qualquer exploração e opressão?
Esperamos que este artigo sirva para responder a estas questões, numa atitude de diálogo e de combate, a partir das necessidades profundas dos trabalhadores e dos povos do nosso país. A isto se junta a necessidade de esclarecer – em relação à União Europeia, às suas directivas e às suas instituições – uma questão que diz respeito a todo o movimento operário internacional, assim como ao movimento de emancipação dos povos: a questão da dívida. A este respeito colocamos em anexo o extracto de um documento que explicita a posição do Podemos sobre a dívida num país, a Espanha, no qual esta atinge os 100 % do PIB.
I – O aparecimento do Podemos, produto da decomposição da IU (Esquerda Unida), da crise do PSOE e das instituições do regime
O Podemos aparece como uma revolta no interior da Esquerda Unida (IU) sem o objectivo de se transformar naquilo que é hoje. O Podemos aparece no seguimento de um debate interno na IU de Madri, em 2013. Eles pediam primárias, com listas abertas. O seu nome é o slogan utilizado por Obama na sua campanha eleitoral, “We can” (em castelhano, Podemos).
O programa do Podemos é mais moderado que o da IU. A única coisa que trazem é a cantilena antiorganizações e o nome 15-M (15 de Maio). Cantilena que retomam em parte dos Estados Unidos.
A vantagem do Podemos é de não ser identificado com a corrupção, nem com os cortes orçamentais, e beneficiar sobretudo da rejeição aos outros partidos, todos eles implicados, de uma maneira ou de outra, nos escândalos, e todos ligados à crise.
Essa percepção é favorecida pelo qualificativo de “casta”, por meio do qual os dirigentes do Podemos se referem ao PSOE e ao PP.
Este projecto foi mais longe do que pensavam devido ao grande impacto mediático de Pablo Iglesias, que obteve 8 % dos votos nas eleições europeias e tem actualmente uma intenção de voto superior a 20%.
Embora os programas da IU e do Podemos sejam similares, os eleitores e aderentes preferem a juventude e a frescura do Podemos em relação a certos aspectos da política de IU: a participação no governo de Andaluzia, apoiando os cortes orçamentais, o apoio ao governo do PP na Extremadura, sem falar da quantidade de escândalos nos quais a IU esteve comprometida e de que o último foi o da Câmara de Parla (Comunidade autónoma de Madri).
Além do mais, a IU, concebida sobretudo como uma aliança eleitoral, apostando tudo na presença nas instituições, encontra-se numa encruzilhada. De um lado, os partidários da aliança com o Podemos, com o deputado Garzón à cabeça, ganham terreno. Conseguiram que haja primárias e vão colocar vários dos seus em posição favorável. A companheira de Pablo Iglesias poderia ganhar nas primárias madrilenas de 30 de novembro. Mas isso seria contraditório, porque, se há acordo com o Podemos, deveria ser sobre a base de novas primárias e de um reagrupamento de eleitores, no qual o Podemos tem a firme intenção de colocar as suas gentes e o seu programa, sob a designação “Gañemos”.
Os que estão à cabeça da linha de unidade com o Podemos são denunciados como “liquidadores” pelos sectores que querem manter a designação IU.
O Podemos tira vantagem igualmente da política da direcção do PSOE. Após o seu último Congresso (julho 2014) com primárias (na moda em todos os partidos), a direcção do PSOE ficou firmemente ligada aos seus compromissos com a Coroa e a UE, o que não lhe deixa nenhuma margem de manobra. Mesmo após ter votado contra a grande coligação europeia e ter se oposto a Juncker, e após ter recusado a possibilidade de um acordo com o PP para governar se fosse necessário, a direcção do PSOE continua a ser a muleta do regime na sua política contra a Catalunha, o que a conduziu a destruir metade do PSC (Partido Socialista da Catalunha). Por outro lado, afunda-se nas sondagens e é abandonado por numerosos aderentes.
As medidas que a direcção do PSOE toma ao estilo do Podemos (como as primárias etc.) não modificam o essencial da sua política. Só o total afundamento do PP faz com que o PSOE apareça à cabeça em certas sondagens, mas longe dos seus últimos resultados, e as suas possibilidades de governar são fracas.
O Podemos tira igualmente vantagem dos votos provenientes de partidos como União, Progresso e Democracia (UPyD) – partido de defesa da pátria e “antiterrorista”, constituído por antigos militantes do PSOE e do PP. A política de Iglesias de constituição de um partido “agarra tudo”, apagando as linhas de demarcação entre esquerda e direita, conduz certos eleitores desses partidos a virarem-se para ele. E sobretudo o Podemos tira vantagem da crise do regime, crise à qual nenhum dos partidos tradicionais quer dar uma saída positiva, porque esta saída implica a ruptura com o regime da Monarquia, com a União Europeia e a Nato (Organização do Tratado do Atlântico Norte).
Os escândalos quotidianos sobre a corrupção amplificam o apoio ao Podemos que, hoje, se concretizam em várias dezenas de milhares de aderentes, mesmo se na realidade estão inscritos através da Web, e várias centenas de núcleos criados nas cidades e alguns outros sectores profissionais.
Deste ponto de vista, é importante distinguir entre os diferentes dirigentes de Podemos. Os seus dirigentes – a casta do Podemos, círculo reduzido de 5 pessoas, todos professores na Universidade Complutense de Madri – querem uma reforma do regime mantendo-o através de um pacto institucional com as principais instituições do regime e uma série de mudanças de fachada. É pois mais das muitas tentativas para reformar o regime com novos acordos de transição, tal como em 1978. Assim, a despeito de uma voluntária ambiguidade e de mudanças surgidas à medida da progressão nas sondagens, não parece que a política de Pablo Iglesias vá no sentido das aspirações das massas e dos seus aderentes.
Os partidários de Podemos e os cidadãos esperam realmente uma mudança radical. Eles procuram no Podemos a ferramenta para varrer o antigo regime. No que respeita aos seus partidários, Pablo Iglesias conseguiu neutralizá-los graças à ciber-política e aos votos pela Internet. O que teria sido realmente democrático era que os diferentes círculos debatessem e decidissem sobre tudo. Nos ciber-debates ninguém pode debater seriamente e ninguém pode pôr em causa o líder.
Cedo ou tarde, isto cair-lhe-á em cima. Pablo Iglesias não consegue dispor de uma organização, o que o conduz a desconfiar dos seus círculos de aderentes, muito heterogéneos e com muitos oportunistas. Isso faz com que não se apresente sob as suas próprias cores às eleições municipais. O choque terá lugar, de qualquer maneira, porque um grande número dos que se organizam em Podemos procuram realmente mudar as coisas pela raiz, e não apenas tornar mais humano e democrático este regime.
Os defensores do regime estão à procura de uma segunda transição e fazem pressão para moderar a linguagem e as propostas de Podemos. Só assim se pode explicar o apoio contínuo das cadeias de televisão e dos jornais a Pablo Iglesias. Numa entrevista, num momento de grande audiência, na cadeia TV SEXTA, Pablo Iglesias veio falar de um Exército moderno para o qual, se necessário fosse, seria preciso aumentar o orçamento, e do seu desejo de se encontrar com a rainha.
II – Qual é o programa de Podemos?
Não é fácil responder a esta questão. O manifesto “Moviendo ficha”, que conduziu ao nascimento da organização, não corresponde já às posições que exprimem agora os seus principais porta-vozes. A Assembleia Cidadã aprovou um documento de princípios políticos, que não explica nada sobre esses “princípios políticos”. O documento fala muito sobre a crise do regime de 1978, embora não diga por qual o substituiria ou como se reformaria. Pablo Iglesias disse repetidamente que “o nosso programa é a Declaração Universal de Direitos do Homem”. Um programa que – pelo menos no papel – o Podemos pode partilhar com muitas outras organizações, e que, evidentemente, não pressupõe nenhum compromisso concreto, porque não tem uma aplicação prática directa na situação concreta do nosso país.
A estratégia do Podemos é uma estratégia basicamente eleitoral. O atrás citado documento de Princípios Políticos, aprovado na Assembleia Cidadã, deixa-o bem claro: a crise de regime “produz-se no quadro de um Estado do Norte, integrado na União Europeia e na Nato, que não viu abalada a sua capacidade de ordenar o território e monopolizar a violência (…), que não conhece brechas importantes nos seus aparelhos e que não parece dever sucumbir em breve a arremetidas de mobilização social mais ou menos perturbadora.” Por conseguinte, “as batalhas eleitorais ocupam hoje o centro do confronto político”. Esta posição tem uma tradução prática imediata: o respeito escrupuloso pelo calendário eleitoral do regime, que permitiria a Rajoy continuar, pelo menos mais um ano, o seu programa de destruição social e política, e que se opõe a uma necessidade imperiosa para as massas: a mobilização para acabar com o governo de Rajoy, já.
O que foi decidido na Assembleia Cidadã
Para nos orientarmos, temos de voltar às resoluções aprovadas na Assembleia Cidadã, cuja linha em geral corrobora a estratégia de viragem à direita, “de procura de uma posição ao centro”.
O Manifesto de fundação, “Moviendo Ficha” e o próprio programa das eleições europeias do Podemos propunham, a propósito da dívida, uma “auditoria cidadã” que distingue entre dívida “legítima “ e “ilegítima”. A resolução aprovada diz que “é necessário ultrapassar o discurso de que não queremos pagar as dívidas” e que “o objectivo não é não pagar a dívida. O objectivo é recuperar um nível de endividamento e um caminho de sustentabilidade da mesma.”
A resolução acrescenta: “Renegociação de taxas de juro e, se for caso disso, períodos de carência; alargamento dos prazos de vencimento e amortização da mesma; e finalmente resgates parciais.”
Ora bem, a reestruturação da dívida é um processo pelo qual passaram muitos países da África e da América Latina: pressupõe que os nossos bisnetos continuarão a pagá-la, submetendo assim os futuros governos – pelo menos até duas gerações – às políticas impostas pelos credores, e que o montante total dos pagamentos pode atingir dez vezes o valor nominal da dívida. Não é de estranhar que, como diz a própria resolução, o que propõem “é defendido, por exemplo, por instâncias tão pouco suspeitas de favorecer os interesses dos devedores como o próprio FMI”.
A Assembleia Cidadã aprovou também uma resolução sobre habitação e uma resolução sobre saúde – em que propõe “acabar com os processos de privatização anteriores e considerar a recuperação para o sector público dos centros privatizados” (observemos que não é o mesmo “considerar a recuperação” e “recuperar”) – e uma resolução sobre corrupção que propõe diversas medidas jurídicas, as quais, na nossa opinião, não podem resolver o problema, porque a corrupção é a essência do regime.
Finalmente, foi aprovada uma resolução, “Defender a educação pública como um direito e não um negócio”, na qual são retomadas reivindicações expressas nas mobilizações, como a “paragem imediata da Lomce (Lei Orgânica para a Melhoria da Qualidade Educativa, NdT) e a sua ulterior revogação” e ainda o “restabelecimento imediato dos recursos básicos que assegurem o acesso, universal e sem discriminação económica, a uma educação de boa qualidade”, mas na qual chamam a atenção duas questões: a referência à laicidade limita-se a uma frase sem nenhuma concretização, tanto que não se diz nem uma palavra sobre os milhares de milhões de euros entregues às escolas privadas (a maioria da Igreja)! Como financiar adequadamente a Escola Pública se, em cada ano, 6.000 milhões de euros são consagrados a pagar o negócio dos padres? Convém tomar nota que uma segunda resolução, que defendia o ensino laico, o fim das aulas de religião nas escolas e do financiamento das escolas religiosas não foi aprovada.
Sobre a questão catalã
É difícil imaginar hoje um problema político que possa distinguir com mais clareza os que querem defender o regime da Monarquia de 1978 dos que querem acabar com esse regime, do que o direito do povo catalão a decidir livremente sobre o seu futuro.
Que diz o Podemos a este propósito? Nada de claro. O manifesto “Mover ficha” e o programa para as eleições europeias defendiam o direito do povo catalão a decidir. Mas um dos membros do núcleo duro de Pablo Iglesias, Carolina Bescansa, interrogada por Pepa Bueno na cadeia SER, esquivou a pergunta uma vez e outra. Como a jornalista insistiu, Carolina Bescansa terminou por dizer: nós, os espanhóis, “temos que dar opinião sobre muitas coisas, naturalmente sobre o modelo territorial, mas não unicamente sobre se alguém se quer tornar independente ou não”. Quer dizer, o mesmo que disse Rajoy, que o direito de decidir não pertence aos catalães, mas a “todos os espanhóis”.
O antigo procurador Carlos Vilallarejo – um dos 61 propostos pelo grupo de Iglesias para a direcção de Podemos – publicou no “El País” um artigo sobre a consulta de 9 de novembro com o título “Uma consulta antidemocrática”. Nesse artigo, Villarejo defende a ideia de que “se está a manipular a consciência cidadã, já que se reclama a sua participação com um objectivo, o de votar, que é manifestamente falso” e que “o governo catalão não respeita em absoluto os princípios que deveriam presidir a este processo”. Conclui dizendo: “Qualquer que seja o ângulo que se examine, o 9-N é incompatível com as exigências de um Estado democrático de direito”.
É verdade que, no mesmo jornal, Inigo Errejón e Gemma Ubasart publicaram recentemente um artigo no qual dizem que “Podemos apoia o direito a decidir do povo catalão”, embora descartem várias possibilidades de exercer esse direito, e acabem por defender “o terceiro cenário [que] seria o de uma abertura democrática e constituinte que mude a relação de forças em favor das maiorias empobrecidas. A irrupção do Podemos a nível do Estado vai nesta direcção, mas ainda falta muito caminho a percorrer na articulação deste largo consenso necessário para a mudança política.” Portanto, os catalães não têm o direito de decidir agora e deveriam esperar pelo menos até que se realizem as eleições gerais.
Podemos e os sindicatos
Falou-se muito, na comunicação social, do possível aparecimento de uma opção sindical relacionada com Podemos. Seria uma resposta no terreno sindical aos escândalos nos quais estão implicados os sindicatos Commisionnes Obreras e UGT e a sua política de “diálogo social”. Em Madri, um “círculo sindical” do Podemos organizou uma reunião, mas por agora os membros deste círculo não parecem querer abandonar as Commisionnes Obreras nas quais estão filiados. A direcção de Podemos nega estar implicada numa qualquer aventura sindical. Mas, surgiu um grupo chamado “somos sindicato”, que agrupa empregados do sector público que se identificam com as formas e a liturgia de Podemos. Querem forjar um sindicato ”sem ideologia” e respeitador da Constituição…
III – O desenrolar do Congresso de Podemos
“A Assembleia Cidadã” e a democracia em Podemos
O Podemos realizou a sua Assembleia Cidadã, equivalente a um congresso, praticamente durante um mês, de 18 de outubro a 15 de novembro. A Assembleia começou por reunir em Madri milhares de pessoas, prosseguiu com votações pela internet – em primeiro lugar, sobre os documentos e as resoluções e, em seguida, para a eleição dos órgãos de direcção e de controlo. Em teoria, esta assembleia deveria realizar as propostas de “ciberdemocracia” ou da “democracia 2.0” do 15-M: listas abertas, cibervotações abertas a toda a gente, plebiscitos, assembleias cidadãs…
Mas os resultados foram muito diferentes do que propunham os defensores do método. De facto, impôs-se uma liderança indiscutível e absoluta, a de Pablo Iglesias, que não deixa nenhum espaço às minorias ou às ideias diferentes.
Em junho, Pablo Iglesias e os seus colaboradores mais próximos afastaram um funcionamento baseado nos círculos, organismos de base de Podemos nos bairros ou nas profissões ou formados sobre a base de interesses temáticos. Uma estrutura baseada no poder dos círculos teria dado o controlo da organização aos militantes, aos que trabalham, discutem, difundem as propostas e se reúnem. Iglesias e os seus impuseram uma direcção de facto, sob o nome de “Comissão Técnica”.
Essa Comissão Técnica vai dominar todo o processo da Assembleia Cidadã que devia constituir Podemos. Para a eleição, utilizou-se um processo de plebiscito electrónico e de lista fechada. Não foi previsto nenhum tipo de eleição proporcional das possíveis listas em presença. A lista que obtivesse um voto a mais ganhava todos os lugares. O resultado foi o que se podia esperar: Iglesias e a sua equipa foram eleitos como direcção provisória do Podemos e responsáveis pela organização da Assembleia Cidadã de Podemos, seu congresso de fundação. Outras opções ou grupos foram totalmente excluídos desta nova direcção, mesmo se representavam largos sectores da base.
O método do plebiscito electrónico e do voto pela Internet origina uma grande desigualdade entre dirigentes oficiais de Podemos e os outros membros. Com este método, organizou-se a discussão sem reuniões de debate, sem locais onde os futuros votantes possam comparar as opiniões. Pelo contrário, os dirigentes “oficiais” – Pablo Iglesias, Inigo, Carolina Bescansa etc. – tinham todo o tipo de meios para dirigir-se aos votantes, por meio dos debates e dos encontros nas cadeias de televisão, na imprensa etc. Na prática os militantes devem escolher uma massa de documentos, ou escolher o que dizem os dirigentes na televisão.
Qualquer círculo de Podemos podia propor documentos, mas não havia nenhum quadro de debate para além daqueles que alguns círculos organizaram, por sua livre iniciativa, para expor e discutir estas propostas. É verdade que todas as propostas foram publicadas no site de Podemos, mas cada um que queria votar devia pronunciar-se sobre 15 documentos possíveis (sobre 3 questões distintas: documento ético, documentos políticos e documentos organizacionais) e quase 100 resoluções. É evidente que a maioria dos votantes não pôde materialmente ler tantos documentos. A quem beneficiou isto? À lista Claro que Podemos-Equipo Pablo Iglesias, cujas propostas eram acessíveis a todos através das cadeias de televisão ou nos debates mediáticos.
Aquando da reunião inaugural da Assembleia Cidadã, no pavilhão dos desportos de Vistalegre, houve possibilidade de debate: cada um dos grupos que apresentaram documentos teve entre 3 e 4 minutos para expor as suas posições. Em teoria, o acesso era igual para todos – inclusive para o grupo de Pablo Iglesias –, se não se tivessem em conta as semanas em que as posições de Pablo Iglesias tinham sido difundidas através dos grandes meios de comunicação. A própria Assembleia foi aberta e concluída por discursos… de Iglesias. Portanto, quem queria votar sem se submeter à preponderância mediática de Iglesias devia dispor do tempo e da paciência necessária para ler e comparar os 115 documentos apresentados. E, para cúmulo, Pablo Iglesias anunciou que se os documentos que a sua lista apresentava não fossem adoptados, ele “retirar-se-ia” e não participaria na direcção.
Finalmente, no último momento, a equipa técnica mudou as modalidades de voto: quem apoiasse um documento apresentado por “Claro que Podemos” não podia apoiar outro documento “dissidente”. Resultado? 80,71% dos votos a seu favor.
112.070 pessoas (num total de 208.828 inscritos em Podemos) intervieram no processo de “participação electrónica”, quer dizer, cerca de 54% dos inscritos. Num processo em que cada um podia participar comodamente a partir de sua casa, ao longo de uma semana, é surpreendente que quase 46 % dos “associados” (e não militantes) do Podemos não se tenha dado ao incómodo de votar.
Além do voto sobre os documentos, era preciso pronunciar-se sobre 97 resoluções, das quais somente 5 foram aprovadas. Para as resoluções, só votaram 38.279 pessoas (18% dos inscritos e 34% dos votantes). As resoluções aprovadas foram as seguintes:
- Defender a educação pública: o nosso direito e não o seu negócio (17.289 votos – 45,17%)
- Medidas urgentes anticorrupção – Carlos Jimenez Vilarejo (16.186 votos – 40,28%)
- Ganhar o direito à habitação e acabar com a impunidade financeira (14.889 votos – 38,9%)
- Pelo direito à saúde: saúde pública de todos para todos (12.129 votos – 31,69%)
- Auditoria e reestruturação da dívida: proposta para Podemos (8.981 votos – 23,46%)
Vejamos seis das que foram rejeitadas:
- Por uma escola pública e laica (7.320 votos – 19,12%)
- Salário “mínimo” (6.585 votos – 17,2%)
- Revogação das reformas do Código do Trabalho implantadas após o rebentar da crise: 2010, 2012 e até março de 2014 (6.253 votos – 16,34%)
21- Resolução sobre o Estado e a Igreja (2.237 votos – 5,84%)
23 – Exigir Cortes Constituintes (2.003 votos – 5,23%)
47 – Sobre a consulta do direito a decidir na Catalunha (681 votos – 1,78%)
Havia três outras resoluções sobre o direito à autodeterminação, que obtiveram ainda menos votos.
Uma vez os documentos votados, a assembleia devia eleger o secretário-geral, o Conselho Cidadão – órgão da direcção do Podemos (de 81 membros) – e a Comissão de Garantias Democráticas (de 10 membros). As listas a apresentar eram listas abertas, em que se elegiam as pessoas que tivessem mais votos do total, sem nenhuma proporcionalidade para as minorias.
Claro que Podemos apresentou uma lista com o número exacto de pessoas a eleger – as normas permitiam-lhe isso – e beneficiou de um voto em bloco. Portanto, Pablo Iglesias assegurou uma direcção monolítica.
Os 61 candidatos propostos por Iglesias foram eleitos com um número de votos que oscilou entre 91.085 e 75.131; o próprio Iglesias foi eleito secretário-geral, com 95.311 votos, equivalente a 96,87% dos votos emitidos. Notemos a elevada percentagem de abstenção (107.488 votantes de aproximadamente 250 mil inscritos na rede nesse momento).
Para a Comissão de Garantias Democráticas – encarregue de vigiar o cumprimento dos princípios éticos de Podemos – foram também eleitos os 10 candidatos propostos por “Claro que Podemos”.
IV – Dos Indignados ao Podemos: continuidade e ruptura
A secção da 4ª Internacional no estado espanhol definiu o movimento dos Indignados como uma expressão da revolta da juventude contra o regime e contra a política dos dirigentes que apoiavam o regime.
A 1º de junho de 2011, um apelo assinado por uma centena de militantes operários e de dirigentes sindicais, intitulado “Emprego com direitos, habitação e democracia”, dizia em particular:
“Desde 15 de maio, centenas de milhares de jovens, de trabalhadores e de cidadãos, mobilizam-se em todas as cidades para exigir um trabalho e um salário dignos e os seus direitos, uma habitação, uma verdadeira democracia. Eles não se reconhecem nos partidos instalados no sistema: ‘Não nos representam de todo’.
Como militantes operários, queremos abrir o caminho para que a nossa classe se una e faça com que os jovens e os cinco milhões de desempregados tenham um verdadeiro emprego, um contrato de trabalho de duração indeterminada com um verdadeiro salário. Só a classe operária unida em torno das suas organizações sindicais pode impor aos governos um plano de criação de empregos que inclua a contratação de médicos, professores e de funcionários para manter os serviços públicos. Nós, militantes operários subscritores deste texto, fazemos um apelo à acção para ajudar a nossa classe a impor a retirada de todos os cortes orçamentais, do plano de ajustamento aplicado por Zapatero, sob a imposição de Obama e da União Europeia, traindo a sua base social.”
Um artigo sobre os Indignados no nº 72 de “A Verdade” (março de 2012) indicava:
“A 10 de maio de 2010, por imposição da União Europeia e de Obama, Zapatero apresentou às Cortes um plano brutal de ajustamento que provocou, entre outras coisas, a baixa dos salários dos funcionários, e preparou toda uma série de contra-reformas, nomeadamente a das pensões de aposentação.
No dia seguinte à apresentação deste plano, o secretário-geral da União Geral dos Trabalhadores (UGT), Cándido Mendéz, declarou que esta decisão provocaria uma brecha política entre o PSOE e os trabalhadores e que o movimento sindical não iria ficar parado.
As federações sindicais da administração pública convocaram uma greve para 8 de junho, greve que não foi, na prática, apoiada pelas confederações (CCOO e UGT). Os trabalhadores do metro de Madri entraram em greve espontaneamente, a 29 e 30 de junho.
Os dirigentes confederais assinaram um acordo sem consultar os trabalhadores abrangidos.
A UGT e as CCOO lançaram um apelo conjunto a um dia de greve geral, para 29 de setembro de 2010, contra a reforma do Código do Trabalho que decorria do plano de ajustamento.
Dezenas de milhares de jovens participaram, de forma entusiasta, na preparação dessa greve, apesar de muitos deles não estarem sindicalizados.
Os secretários-gerais das confederações recusaram dar continuidade à greve de 29 de setembro e negociaram com o governo a reforma das pensões, aceitando o essencial da contra-reforma proposta, o que provocou uma divisão entre a classe operária e a juventude (…).
Todas estas circunstâncias explicam que a imensa maioria da classe operária tivesse rejeitado, quase por unanimidade, a assinatura do Pacto Social (segundo as sondagens, 70% da população) e também que a juventude operária abandonasse maciçamente os sindicatos. Segundo um relatório interno de CCOO, num ano, metade dos jovens filiados abandonaram o sindicato. Foi nesta situação – em que a classe operária estava momentaneamente bloqueada pelos aparelhos sindicais, decepcionada pela política de Zapatero e a juventude abandonada sem futuro – que surgiu o movimento dos ‘Indignados’.”
Como vimos, mesmo se o Podemos diz inspirar-se no movimento dos Indignados, representa uma mudança qualitativa. A estrutura adoptada pela organização, com um núcleo dirigente eleito de maneira plebiscitária e com plenos poderes, está ao serviço de um objectivo: ganhar as eleições legislativas de novembro de 2015. Com esse fim, respeita totalmente o calendário eleitoral determinado pelo regime.
Na data em que redigimos este artigo (19 de novembro de 2014), é necessário dar nota da evolução rápida deste movimento. Em primeiro lugar, está a sua recusa de definir-se como “de esquerda”, ou simplesmente basear-se na divisão da sociedade em classes sociais. Do ponto de vista do Podemos, a “classe operária” não existe, fala “da gente”, “do povo” e do “grande capital” que já não é monopolista. A “casta” junta num mesmo saco o patronato, os partidos, os sindicatos…
Nestes últimos dias, os seus objectivos precisaram-se:
– A reunião do Conselho Cidadão de 29 de novembro terá dois pontos principais: desenhar um plano económico de choque e definir uma posição sobre aquilo que chama o problema territorial. Errejón, o seu porta-voz, declara: “O nosso programa económico não será o programa económico do Podemos, mas sim o programa dos melhores. Vamos chamar os especialistas da administração pública, das empresas privadas etc.”
– Sobre o problema territorial – que é uma maneira muito peculiar de colocar o problema dos povos oprimidos –, Errejón declara que é necessário “reconstruir as pontes e não dinamitá-las”, num momento em que o procurador-geral afirma que vai organizar uma perseguição judicial contra os organizadores da consulta “ilegal” de 9 de novembro na Catalunha.
Não vamos antecipar o que pode ocorrer na reunião de 29 de novembro. Como militantes do movimento operário, defensores dos direitos dos povos, mantemo-nos comprometidos com o combate em defesa da unidade da classe operária, garantia do exercício dos direitos democráticos e nacionais, combate que coloca no centro a necessidade para os trabalhadores e os povos de forjarem a aliança para acabar com a Monarquia, preparando as condições para uma Constituinte baseada nos direitos dos povos, quer dizer, o combate pela República.
20 de novembro de 2014
Anexo
Auditoria e reestruturação da dívida: uma proposta para Podemos
Alberto Montero Soler, Bibiana Medialdea Garcia e Nacho Alvarez Peralta
“(…) É necessário fazer uma análise do processo de endividamento público e privado e das suas consequências, a partir de critérios sociais e não exclusivamente económicos. É por isso que é preciso uma auditoria levada a cabo por peritos independentes e com um controlo social efectivo. O controlo cidadão deve garantir a transparência do processo, a escolha de critérios que privilegiem os interesses colectivos, assim como a publicação e a difusão maciça dos resultados da auditoria. Desta forma, a auditoria cidadã deveria converter-se num mecanismo de socialização popular do problema com que nos confrontamos, da sua origem e das consequências derivadas das distintas possibilidades para a sua resolução.
Por outro lado, é necessário iniciar uma estratégia para a reestruturação ordenada da dívida, tanto pública como privada. Para atingir os melhores resultados possíveis, convém que a dita reestruturação transcenda o âmbito estatal para se aplicar de forma coordenada, pelo menos, entre as economias periféricas europeias. Assim, trabalhar neste sentido deve ser uma prioridade. Em qualquer caso, é preciso não afastar a possibilidade de iniciar a reestruturação de maneira unilateral, se as condições políticas de uma solução coordenada internacionalmente não estiverem preenchidas.
Estas duas intervenções – auditoria e reestruturação – têm finalidades e um sentido diferentes, mesmo se são complementares numa perspectiva política e social. No entanto, esta complementaridade não deve entender-se como uma relação de interdependência simbiótica quanto à sua aplicação. Mais ainda, independentemente do facto de que a auditoria da dívida se realize ou não e do seu resultado, o que deve ser claro é que, com o objectivo de dar uma capacidade de transformação efectiva ao programa do Podemos, será inevitável pôr em prática uma reestruturação ordenada da dívida. É o que defende, por exemplo, uma instituição insuspeita de favorecer os devedores como é o FMI.”
Artigo originalmente publicado na edição nº 84 da revista A Verdade, orgão teórico da IV Internacional.
tradução: Joaquim Pagarete (Portugal)