Representantes da categoria relatam decepção, indignação e revolta
Em 30 de junho, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento, que havia sido iniciado no final de 2022, sobre o Piso Nacional dos Trabalhadores da Enfermagem, Lei 14.434 de 2022. A corte, em vez de tomar uma decisão que garantisse a aplicação da legislação votada no Congresso Nacional e sancionada pelo governo federal, decidiu reescrever toda a lei, assumindo o papel de legislador.
Na prática, as mudanças atingem frontalmente a própria existência de um piso nacional, pois, ao invés de um patamar mínimo salarial, o STF decidiu que cada caso é um caso e, em cada lugar, vai ser de um jeito diferente. Apenas para os servidores públicos federais aquilo que foi definido pela lei está assegurado.
A decisão fechou uma semana, na qual os trabalhadores da enfermagem, em todo o país, haviam realizado uma jornada de lutas e greves. O Trabalho conversou com três dirigentes sindicais que relatam decepção, indignação e revolta nas suas categorias.
Rede pública e conveniados do SUS
Para os trabalhadores do serviço público (à exceção dos federais), a diferença entre o salário que é pago hoje e o valor do piso dependerá de complementação financeira por parte da União. Se esta deixar de ocorrer, não será exigido o pagamento do piso. O mesmo se aplica a hospitais e serviços de saúde privados que atenderem, no mínimo, 60% de seus pacientes pelo SUS.
Além disso, em ambos os casos, o valor expresso na lei só valerá para jornadas de 44 horas semanais, carga horária que não é adotada em quase nenhum lugar. Geralmente, adotam-se jornadas de 36 horas, 30 horas, etc., e, nesses casos, o valor será proporcional – na prática, valores bem inferiores aos estabelecidos na lei e abaixo daquilo que já é pago em vários lugares.
“Há muita indignação do funcionalismo. A decisão do STF é cruel e esculhamba o piso. Em nosso município, nossa jornada é de 36 horas. Então, o piso não vai nos atingir,” explica Rosane Nascimento, presidente do Sindicato dos Municipários de Estância Velha, o Simev, no Rio Grande do Sul.
Para Jefferson Caproni, presidente do Sindicato dos Auxiliares e Técnicos de Enfermagem e dos Trabalhadores de Estabelecimentos de Serviços de Saúde de São Paulo (SinSaúde-SP), se o STF queria aplicar proporcionalidade, o correto seria aplicar o Piso Nacional na jornada de trabalho de 30 horas, que é a exercida pela sua categoria, e aumentar o valor à medida que aumentasse a jornada, e não o contrário, aplicar o piso sobre uma jornada máxima, que não é realidade, reduzindo o valor para os demais.
Segundo Alindai Santana, representante do Fórum Nacional da Enfermagem e dirigente da CUT, “a avaliação dos trabalhadores é péssima, a pior possível”. Diretora do Sindicato dos Trabalhadores Federais em Saúde, Trabalho, Previdência e Assistência Social no Estado da Bahia, o Sindprev-BA, ela afirma: “o STF está ferindo todo um projeto aprovado pelo Parlamento, está legislando em cima disso”.
Serviços de saúde privados
Para os trabalhadores da iniciativa privada em geral, o STF subordina a aplicação de um piso à existência de um acordo coletivo negociado entre sindicato de trabalhadores e patrões. Apenas quando não houver acordo, incidirá a Lei nº 14.434/2022, desde que decorrido o prazo de 60 dias.
“A decisão contribui para que o patronal negocie para menos”, explica Jefferson Caproni. Ainda assim, a Confederação Nacional de Saúde, entidade sindical patronal, emitiu um comunicado oficial, contestando a decisão, e é possível que ela entre com um recurso.
Relembre o imbróglio
A lei 14.434, de autoria do Senador Fabiano Contarato, então na Rede e agora no PT, foi sancionada em agosto de 2022, estabelecendo o piso salarial de R$4.750,00 para enfermeiros, tanto celetistas, quanto servidores da União, estados e municípios, de autarquias e fundações. Para técnicos em enfermagem, o valor seria de 70% desse montante. Para auxiliares e parteiras, 50%.
Três dias depois da sanção, a Confederação Nacional de Saúde ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra a lei e foi atendida com uma liminar concedida pelo Ministro Luis Barroso, que suspendeu a aplicação do piso salarial.
Em abril, o Congresso aprovou a abertura de um crédito especial proposto por Lula, no valor de R$7,3 bilhões, para viabilizar o pagamento do piso salarial. Logo em seguida, Barroso suspendeu a liminar. Foi no bojo dessa ADI, que o plenário do STF criou essa série de regras que inexistem na lei.
Categoria não vai parar
“A enfermagem está decidida a lutar. A gente sempre soube do nosso valor, mas nos ver reconhecidos pela população nos deu a dimensão de ir à luta”, nos contou Rosane, de Estância Velha. “Dentro dos serviços públicos, temos trabalhadores terceirizados que recebem um salário menor que o nosso. Então, estamos na briga para que essa parte da categoria receba o piso.”
Ela e Alindai, dirigente da Bahia, lembram ainda que há a defasagem do valor do piso, que precisa ser reajustado. Então, está na pauta a data-base “para o piso não virar teto”.
O Senador Fabiano Contarato, ainda no dia 5 de julho, logo após a publicação da decisão do Supremo, apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição, que proíbe a redução do piso salarial da enfermagem por meio de convenção ou acordo coletivo de trabalho.
Em São Paulo, Jefferson e a diretoria do SinSaude mobilizam a categoria para uma assembleia no dia 17. “A luta dos trabalhadores da enfermagem por melhores condições de trabalho e salários justos continua.”
“A categoria da enfermagem está muito revoltada e com muita disposição para continuar na luta. Não vai parar”, conclui Alindai.
Priscilla Chandretti
com colaboração de João Batista e Maíra Gentil
Edit: uma versão diferente deste texto havia sido publicada. Ela não trazia informações incorretas. Essa é a versão final que foi publicada na edição 919 de O Trabalho
12×36: STF valida alteração de jornada sem acordo coletivo
Também no dia 30 de junho, o Supremo impôs outra derrota aos trabalhadores da Saúde – e a toda a classe. Uma ação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) pediu a declaração de inconstitucionalidade quanto ao texto da Reforma Trabalhista, no trecho em que autoriza que a jornada seja organizada com 12 horas de trabalho seguidas e 36 de descanso a partir de um acordo individual. Ou seja, o empregador propõe que o trabalhador assine o acordo de jornada, e quem tem juízo obedece.
A Constituição é bem explícita ao definir que a duração do trabalho normal (ou seja, daquele que não é hora extra) não pode ser superior a oito horas diárias, salvo compensação de horas mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho. O STF referendou a lei, contra à Constituição.
Gilmar Mendes libera terceirizações. Placar: patrões 3 x trabalhadores 0
Poucos dias antes, em 20 de junho, o ministro do STF Gilmar Mendes cassou uma decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª região que proibia a Avon de contratar uma empresa terceirizada para realizar suas atividades-fim. A decisão de Mendes, que fixa tese de repercussão geral, é a de que a terceirização de todas as atividades de uma empresa é um recurso legal. O argumento é o “contexto global de flexibilização das normas trabalhistas”.
No Brasil de 2023, depois de várias denúncias de trabalho análogo à escravidão, ninguém pode fingir não saber aonde isso vai dar. Segundo a desembargadora aposentada do TRT4 Magda Barros Biavaschi, em debate para o Sintrajufe-RS, os recorrentes casos estão vinculados, 90% das vezes, a empresas terceirizadas. Foi o caso das vinícolas, para ficar em um único exemplo.