Em 2021, a Editora Veneta lançou o Kanikosen – O Navio dos Homens, adaptação em mangá de Gõ Fujio para o livro de Takiji Kobayashi.
Kobayashi foi um nome destacado da chamada literatura proletária japonesa das primeiras décadas do Século XX. Esta corrente literária se caracterizou por registrar a difícil transição do Japão a uma economia industrial e urbana que se dará, como observa Ciro Seiji Yoshiyasse, na apresentação da obra, “no interior da mesma aristocracia secular”.
Um dos ramos onde o pior de dois mundos (os métodos pré-capitalistas de opressão e a moderna exploração do capital) se projetava era o da pesca de caranguejos gigantes nos mares gelados do Norte, na fronteira marítima do Japão com a URSS. O ciclo da pesca, beneficiamento e embalagem do caranguejo se completava inteiramente nos navios que, por isso mesmo, abrigava diferentes categorias de trabalhadores, pescadores, operários, etc., além do corpo de comando da embarcação. A hierarquia naval, contudo, tinha papel apenas formal, uma vez que os feitores e gerentes das empresas proprietárias é que ditavam as cruéis regras trabalhistas em vigor. Importante observar que as incursões aos limites marítimos da Rússia tinham também o objetivo de ameaçar a nascente república soviética.
Os navios-fábrica passaram à história como palcos das piores condições de trabalho e exploração a que trabalhadores eram submetidos naquele período. Os vínculos de trabalho beiravam o escravismo, com pescadores e operários pagando por tudo que usavam no seu ofício, de forma que não chegava a se pagar um salário real ao final do mês. Em grande parte, eram jovens, inclusive estudantes, aliciados sob falsas promessas.
Em Kanikosen – O Navio dos Homens, Takiji Kobayashi narra a primeira greve de trabalhadores destes navios, neste caso, no navio Hakuko Maru. Submetidos a condições desumanas, vivendo por meses em meio à podridão dos porões da embarcação, assombrados pelo iminente risco de morte, enquanto os oficiais, funcionários do Império e representantes das empresas se refestelavam em banquetes no convés do Capitão, aqueles jovens trabalhadores descobrem sua força numérica e a necessidade de sua organização. A força do mangá de Gõ Fujio, advinda da potência dramática do clássico de Takiji Kobayashi, reside justamente no registro vivo da trajetória de tomada de consciência da classe e da luta que se segue.
Takiji Kobayashi começou a reunir os materiais de pesquisa para Kanikosen em 1926, e escreveu o livro ao longo do ano de 1928. O realismo da obra e sua narração que usa técnicas de vanguarda (por exemplo, a montagem de tipo cinematográfico) a serviço de uma vigorosa denúncia da exploração daqueles trabalhadores teve enorme impacto entre os leitores japoneses, quando do seu lançamento em 1929. A censura e proibição de circulação que o livro sofreu não diminuiu sua popularidade e influência. Takiji Kobayashi, que se filiará ao PC do Japão, se projetou como um ativista nos círculos culturais, com audiência nas camadas proletárias e jovens. Por isso pagou com seu sequestro e morte pela temida Kempeitai, o braço policial-militar do Exército Imperial Japonês, de 1881 a 1945. A adaptação de Gõ Fugio incorpora o destino de Kobayashi na narrativa de Kanikosen, com sua morte abrindo e fechando o mangá.
As férias escolares são ocasião para conhecer Kanikosen – O Navio dos Homens, que além de ser um grande momento dos quadrinhos, nos traz este episódio do movimento operário japonês que conhecemos tão pouco.
Eudes Baima