O discurso censurado durante a Grande Marcha dos Negros sobre Washington

A data de 28 de agosto de 1963 lembra o célebre discurso “I have a dream” (“Eu tenho um sonho”) do pastor Martin Luther King, durante a Grande Marcha dos 250 mil negros sobre Washington. Mas essa jornada não se resume a isso, porque outro discurso estava previsto durante a manifestação: censurado, não pôde ser pronunciado. Lembremos desse episódio pouco conhecido.

Para isso, publicamos abaixo dois artigos da época extraídos do semanário dos trotsquistas estadunidenses do Socialist Workers Party (SWP) [Partido Socialista dos Trabalhadores], “The Militant” (1): um aborda as condições dessa censura, e o outro traz integralmente o discurso censurado. Uma página da história que explica com força a situação atual.

Por que o discurso de John Lewis foi censurado?

O melhor discurso da Marcha sobre Washington nunca foi pronunciado. Era o discurso preparado por John Lewis, presidente do Student Nonviolent Coordinating Committee (SNCC) (Comitê de Coordenação Não Violenta dos Estudantes), reproduzido em sua totalidade nestas colunas.

O arcebispo católico de Washington D.C., O’Boyle (2), que havia sido convidado para a invocação, leu antes uma cópia do discurso e ameaçou deixar a tribuna se ele fosse pronunciado.

Para a sua vergonha eterna, os altos dirigentes do movimento pelos direitos civis, entre os quais Walter Reuther (3) – que aparentemente teria tido um papel de primeiro plano –, censuraram partes do discurso do líder da SNCC e impuseram uma reescritura de outras partes.

Se os dirigentes da marcha tivessem coragem, coragem que será necessária para obter a plena igualdade do povo negro deste país, não teriam cedido à exigência arrogante do arcebispo O’Boyle.

A objeção invocada
O relato de “The New York Times” sobre a censura do discurso de Lewis, que reflete sem dúvida a versão que O’Boyle e os culpados dirigentes dos direitos civis desejavam ver circular, indica que a principal objeção era uma analogia com a marcha de Sherman pelo Sul (4). Trata-se de evidente subterfúgio. A objeção dizia respeito às críticas brutais feitas por Lewis a Kennedy e ao Partido Democrata. Foi por isso que a sua declaração, segundo a qual os republicanos e os democratas haviam “traído”, foi suprimida, assim como a sua declaração de não apoiar os projetos de lei de Kennedy sobre os direitos civis.

A SNCC, organização dirigida por Lewis e pela qual ele intervinha, está na principal linha de mira da batalha dos direitos civis. Os membros da SNCC, saídos em sua maioria das 102 universidades negras do Sul, estão entre as pessoas mais corajosas e mais devotadas do país.

Eles foram objeto, para sua honra, de provavelmente mais detenções e penas de prisão pela causa do que todas as outras organizações de defesa dos direitos civis reunidas. Arriscaram suas vidas inúmeras vezes.

Seus corpos estão cobertos de cicatrizes da luta. Eles ganharam o direito de que o seu porta-voz possa dizer o que eles querem que diga, sem nenhuma ingerência.


O discurso que o dirigente da SNCC havia previsto fazer na Marcha sobre Washington

Discurso que John Lewis, presidente da SNCC (5), foi impedido de pronunciar durante a Marcha sobre Washington

“Nós nos manifestamos hoje pelo emprego e pela liberdade, mas não temos por que estar orgulhosos, já que centenas e milhares de nossos irmãos não estão aqui. Eles não têm dinheiro para vir, porque recebem salários de miséria, ou não recebem nenhum salário.

Com toda a consciência, não nos é possível apoiar sem reservas o projeto de lei governamental sobre os direitos civis, porque é muito pouco e muito tarde. Não há uma única coisa nesse projeto de lei que protegerá o nosso povo contra a brutalidade policial.
Esse projeto de lei não protegerá as crianças e as mulheres idosas dos cães policiais e dos jatos d’água quando participarem de manifestações pacíficas. Esse projeto de lei não protegerá os cidadãos de Danville, na Virgínia, que vivem com um medo constante em um estado policial. Esse projeto de lei não protegerá as centenas de pessoas que foram presas com base em acusações forjadas de toda espécie. O que dizer dos três jovens de Americus, na Geórgia, que estão arriscados a uma condenação à pena de morte por terem participado de uma manifestação pacífica?

A parte desse projeto relativa ao voto eleitoral não ajudará os milhares de cidadãos negros que querem votar. Não ajudará os cidadãos do Mississippi, do Alabama ou da Geórgia que estão habilitados a votar, mas não puderam ir à seção eleitoral. “UM HOMEM, UM VOTO” é o grito dos africanos. É também o nosso. Ele deve ser o nosso.

Pessoas foram forçadas a deixar as suas casas porque ousaram exercer o seu direito de se inscrever nas listas eleitorais. O que há nesse projeto de lei que proteja os sem-casa que morrem de fome neste país? O que há nesse projeto de lei que assegure a igualdade de uma doméstica que trabalha por 5 dólares por semana na casa de uma família cuja renda é de 100 mil dólares por ano?

Pela primeira vez em cem anos, esta nação tomou consciência de que a segregação é um mal e que deve ser destruída sob todas as suas formas. A presença de vocês hoje prova que estão dispostos a agir.

Estamos agora engajados em uma revolução séria. Esta nação é ainda o lugar de dirigentes políticos medíocres que constroem suas carreiras com base em compromissos imorais e aliam-se a formas evidentes de exploração política, econômica e social. Que dirigente político aqui pode se levantar e dizer: “Meu partido é o partido dos princípios”? O partido de Kennedy é também o partido de Eastland (6). O partido de Javits (7) é também o partido de Goldwater (8). E nós, onde está o nosso partido?
Em certas regiões do Sul, trabalhamos nos campos desde o amanhecer até o pôr do sol por 12 dólares por semana. Em Albany, na Geórgia, nove de nossos dirigentes foram acusados não pelos Dixiecratas (9), mas pelo governo federal, por terem protestado pacificamente.

Mas o que fez o governo federal quando o xerife adjunto de Albany espancou e deixou quase à morte o advogado C. B. King (10)? O que fez o governo federal quando agentes da polícia local agrediram e atingiram com chutes a mulher grávida de Slater King, e ela perdeu o seu bebê?

Parece-me que a acusação de Albany faz parte de uma conspiração do governo federal e de políticos locais desejosos de uma medida sumária.

Além do mais, fomos informados, e vocês precisam saber – porque estamos aqui pelo emprego e pela liberdade –, de que nos últimos dez dias, durante uma reunião secreta ocorrida antes do comitê que redigiu o projeto de lei sobre os direitos civis, um porta-voz do governo se opôs, com extrema violência, a uma disposição que teria garantido, pela primeira vez, um juiz de distrito federal equitativo nos processos relativos às eleições. E eu poderia acrescentar que esse projeto de lei governamental, ou qualquer outro projeto de lei sobre os direitos civis, como a lei de 1960 sobre os direitos civis, será totalmente inútil se for aplicada por juízes racistas, muitos dos quais foram sistematicamente nomeados pelo presidente Kennedy.

Eu quero saber de que lado se encontra o governo federal.

A revolução está ao alcance das mãos, e devemos nos libertar das correntes da escravidão política e econômica. A revolução não violenta diz:

“Não esperaremos que os tribunais ajam, porque esperamos há centenas de anos. Não esperaremos o presidente, o Ministério da Justiça nem o Congresso, mas tomaremos as coisas em mãos e criaremos uma fonte de poder, fora de toda a estrutura nacional que poderá nos assegurar uma vitória”.

Aos que dizem: “Sejam pacientes e esperem”, devemos dizer que “a paciência é uma palavra suja e desprezível”. Não podemos ser pacientes, não queremos ser livres aos poucos. Queremos nossa liberdade, e a queremos já. Não podemos depender de nenhum partido político, porque tanto os democratas quanto os republicanos traíram os princípios básicos da Declaração de Independência.
Todos nós compreendemos que, se mudanças sociais, políticas e econômicas radicais devem ocorrer em nossa sociedade, o povo, as massas devem provocá-las. Na luta, devemos procurar mais do que nunca os direitos civis. Devemos trabalhar por uma comunidade de amor, de paz e de verdadeira fraternidade. Nossos espíritos, nossas almas e nossos corações não poderão repousar enquanto a liberdade e a justiça não existirem para cada um de nós.

A revolução é séria. O senhor Kennedy tenta expulsar a revolução das ruas para submetê-la aos tribunais.

Escute, senhor Kennedy. Escutem, senhores membros do Congresso. Escutem, caros concidadãos. As massas negras estão em marcha pelo emprego e pela liberdade, e devemos dizer aos políticos que não haverá prazo para reflexão.

Devemos todos juntar-nos à revolução. Saiam e permaneçam nas ruas de cada cidade, de cada vila e de cada lugarejo desta nação até que a verdadeira Liberdade chegue, até que a revolução seja completa. No delta do Mississippi, no sudoeste da Geórgia, no Alabama, no Harlem, Chicago, Detroit, Filadélfia e em toda esta nação, as massas negras estão em marcha!

Não nos deteremos agora. As forças de Eastland, de Bamett, de Wallace e de Thurmond (11) não deterão essa revolução. Chegará o tempo em que não limitaremos nossas manifestações a Washington. Marcharemos pelo Sul, no coração de Dixie (12), como Sherman (13) fez. Prosseguiremos nossa própria política de “terra arrasada” e reduziremos Jim Crow (14) a cinzas – de maneira não violenta. Fragmentaremos o Sul em mil pedaços e os reuniremos em seguida à imagem da democracia. Daremos um caráter mesquinho à ação desses últimos meses. E eu digo a vocês: “ACORDE, AMÉRICA!””


Nota da redação: Quando esta edição da revista “A Verdade” estava sendo concluída, soubemos da morte de John Lewis, em Atlanta, nos Estados Unidos, em 17 de julho de 2020, com 80 anos. Vários artigos saíram na imprensa para saudar o seu combate pelos direitos civis. Mas muito poucos – ao que soubemos – fizeram referência à censura de seu discurso de 28 de agosto de 1963.
O historiador estadunidense Howard Zinn, entretanto, havia citado este episódio de uma maneira particularmente clara. A propósito da Grande Marcha de 28 de agosto de 1963, ele escreveu: “Foi nesta ocasião que Martin Luther King fez, diante de 200 mil estadunidenses negros e brancos, seu famoso discurso ‘I have a dream…’. Discurso soberbo, com certeza, mas totalmente desprovido dessa cólera que sentiam numerosos negros. John Lewis, um jovem dirigente do SNCC, originário do Alabama, que já havia sido preso e espancado numerosas vezes, tenta exprimir esse sentimento de indignação. Ele foi impedido pelos organizadores da Marcha, que insistiram que ele renunciasse a certas críticas muito duras contra o governo e a seus apelos à ação direta” (Howard Zinn, “Uma história popular dos Estados Unidos, de 1492 a nossos dias”, ed. Agone, 2002, pág. 518).

NOTAS
1 – “The Militant”, “Publicado no interesse do povo trabalhador” (“Published in the Interest of the Working People”), vol. 27, nº 31, segunda-feira, 9 de setembro de 1963, página 2. Lembremos que, em julho de 1963, a convenção nacional do SWP aprovou o texto “Freedom Now” [“Liberdade Já”], “A nova etapa no combate pela emancipação dos negros e as tarefas do SWP” (veja “A Verdade” nº 90, de agosto de 2016, págs. 51 a 94).
2 – Patrick O’Boyle (1896-1987), arcebispo católico de Washington de 1948 a 1973. O papa Paulo 6º o designou cardeal em 1967.
3 – Walter Reuther (1907-1970), dirigente sindical no setor automobilístico, vice-presidente da central sindical AFL-CIO de 1955 a 1968.
4 – Alusão à “Marcha de Sherman para o Mar” (Sherman’s March to the Sea). É o nome dado em geral à campanha de Savannah, relativa às manobras militares desenvolvidas no território da Geórgia de 15 de novembro a 21 de dezembro de 1864, pelo major-general nortista William Tecumseh Sherman, durante a Guerra Civil dos EUA.
5 – Student Nonviolent Coordinating Committee (SNCC – Comitê de Coordenação Não Violenta dos Estudantes), uma das principais organizações do movimento negro estadunidense dos direitos civis dos anos 1960.
6 – James Eastland (1904-1986), então senador democrata do Mississippi, conhecido por seu anticomunismo, sua oposição ao movimento pelos direitos civis e sua defesa da segregação racial nos estados sulistas.
7 – Jacob Javits (1904-1986), membro da ala liberal do Partido Republicano, foi sucessivamente deputado, procurador-geral e senador no estado de Nova York.
8 – Barry Goldwater (1909-1998), membro da ala conservadora racista do Partido Republicano, foi o candidato do partido à eleição presidencial de 1964.
9 – Dixiecratas: os democratas conservadores do Sul, em referência ao States’ Rights Democratic Party (Partido Democrata pelos Direitos dos Estados), facção dissidente do Partido Democrata, constituída em 1948, a favor da manutenção da segregação racial e da supremacia branca nos estados sulistas.
10 – Chevene Bowers (C. B.) King (1923-1988), advogado pioneiro negro estadunidense, líder dos direitos civis na Geórgia durante o movimento pelos direitos civis.
11 – Ross Barnett, George Wallace e Strom Thurmond eram, em 1963, respectivamente governador democrata do Mississippi, governador democrata do Alabama e ex-governador democrata, depois senador, da Carolina do Sul. Ferrenhos defensores da segregação racial, são conhecidos pela oposição que fizeram à admissão de estudantes negros nas universidades do Mississippi e do Alabama e nas escolas públicas da Carolina do Sul.
12 – Dixie, ou Dixieland: os antigos estados escravagistas dos Estados Unidos. O “Coração de Dixie” (Heart of Dixie) designa o Alabama, sede da ex-capital dos estados confederados, Montgomery.
13 – William Sherman (1820-1891), general nortista da Guerra de Secessão, conhecido por sua marcha pela Geórgia e as Carolinas e por sua política de guerra total e de terra arrasada contra os estados confederados.
14 – Jim Crow: cognome pejorativo dado aos negros nos Estados Unidos. As leis Jim Crow, aplicadas a partir de 1876 e elemento central da segregação racial, impunham uma segregação legal em todos os lugares e serviços públicos dos estados do Sul dos EUA. Elas foram abolidas pelas leis sobre os direitos civis e sobre o direito de voto de 1964 e 1965.

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