Os 50 anos da “Revolução dos Cravos”

No dia 25 de abril de 1974 um golpe militar derrubou a ditadura de Salazar e Caetano em Portugal. A revolução portuguesa que se iniciara a partir das mobilizações da classe operária foi capaz de derrotar uma ditadura, que durava há 48 anos, e conquistar rapidamente aumentos de salários, terras, moradias, saúde e educação. Hoje, quando a direita e extrema direita ganham terreno em Portugal após os governos do Partido Socialista – depois do povo ter dado a maioria absoluta no Parlamento − traírem o voto popular, a história da revolução portuguesa mantém toda a sua atualidade.

A ditadura militar durou 48 anos, de 1926 a 1974. Estava baseada na igreja católica tradicional, nas forças armadas e no nacionalismo. Portugal integrou a OTAN – a aliança militar liderada pelos EUA – em 1949. E mantinha brutalmente o antigo império colonial português na Ásia e na África, inventando um tal de “lusotropicalismo”, inspirado nas ideias do intelectual reacionário brasileiro Gilberto Freyre, afirmando que Portugal era uma “nação-império” para justificar e defender a exploração das colônias. No ano de 1968, o velho ditador Salazar foi substituído, sem alterar o regime, pelo seu pupilo Marcelo Caetano.

Mas desde 1961 começou uma guerra colonial em que as forças armadas portuguesas lutaram contra as milícias independentistas em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. As lutas anticoloniais e as mobilizações crescentes da classe operária portuguesa levaram a uma crise e ao esgotamento do regime. Isso se combinou com a crise mundial de 1971-1973 que não poupou nenhuma economia, a começar pelos Estados Unidos que ia sendo derrotado na guerra no Vietnã. 

As despesas da guerra colonial representavam mais de 40% do orçamento em 1973, quebraram as finanças nacionais e provocaram uma crise econômica no país. Uma onda de mobilizações da classe trabalhadora alimentou um grande movimento grevista. Entre outubro de 1973 e abril de 1974 ocorreram greves em 200 empresas envolvendo mais de 100.000 trabalhadores, só na zona de Lisboa. Foi nesse contexto que se constituiu o movimento militar dos capitães do exército, um movimento que queria, sobretudo que houvesse uma solução que acabasse com a guerra colonial. Como o regime e o governo de Caetano se opunham ao fim da guerra colonial, o movimento dos capitães (corpo intermediário do Exército) decidiu organizar um golpe de Estado para, pela força das armas, substituir Caetano por um governo “democrático” que aceitasse uma solução política para a guerra colonial. 

Em Portugal, começava uma revolução proletária
O movimento dos capitães, posteriormente designado por MFA (movimento das forças armadas), liderou o golpe de estado do 25 de abril, entregando o poder à Junta de Salvação Nacional, que assumiu o poder e em 15 de maio nomeava o general António Spínola como Presidente da República. Para a burguesia portuguesa, a ditadura, esgotada, já não era capaz de defender os seus negócios (quer na metrópole, quer nas colônias). Por isso, ela buscava um caminho político que fosse capaz de preservar os seus interesses, identificando-se com a solução de um golpe de Estado, defendida pelo general Spínola para dar uma roupagem “democrática” às instituições do regime. A burguesia continuava, como todas, a precisar de um Estado que servisse e protegesse os seus interesses de classe da mobilização cada vez mais intensa das massas trabalhadoras e da juventude.  

O MFA e a Junta militar, a quem o MFA entregou o poder, não visavam a nenhuma ruptura, mas a remodelar as antigas instituições fascistas do regime. Porém, no dia 25 de abril, as massas populares confraternizaram-se com os soldados e aproveitaram a brecha aberta pelo golpe para invadirem, ocuparem e desmantelarem as instituições do regime fascista, a começar pelas mais odiosas: a PIDE (polícia política que controlava todos os órgãos públicos e mantinha uma rede com milhares de agentes e delatores), a censura de imprensa, as prisões onde estavam os presos políticos exigindo a sua libertação. Frente à avalanche popular, os antigos responsáveis do regime fugiam apavorados, deixando vazias as instituições do regime. O Estado estava sendo desmantelado pela ação das massas. Isso é a Revolução.

E a revolução de fato começou a destruir os planos iniciais do MFA. Nos quartéis, comícios de soldados se sucediam pelo fim imediato da guerra nas colônias e pelo retorno dos soldados. Em Moçambique, soldados chamam a confraternização com os guerrilheiros da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique). O velho império português de onde a burguesia sugava muitos recursos se desmoronava. Nos meses seguintes, os soldados passaram a se recusar a partir para as colônias. Isso se combinou com a mobilização das populações das colônias e dos movimentos de libertação, que iriam libertar Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe do jugo colonial e conquistar a independência.

O movimento revolucionário das massas populares

O movimento revolucionário mais profundo se expressou na ocupação das fábricas, assembleias e eleição de delegados, formação de Comissões de Trabalhadores, a reconstrução dos sindicatos livres, a redação dos cadernos de reivindicações e a conquista de aumentos salariais.

Em todo o país se aprofundou o movimento para retomar os sindicatos do controle corporativo do estado. O estado português considerava qualquer greve ilegal e os operários podiam ter pena de prisão de 2 a 8 anos. A sindicalização era obrigatória. O impulso revolucionário desse movimento transbordava os limites aceitos pelos partidos da esquerda stalinista. Em 20 de janeiro de 1975, o Partido Comunista pressiona e faz aprovar uma Lei de Unidade Sindical para tentar controlar o movimento revolucionário nas fábricas.

Cansados de esperar pelas promessas do governo provisório de uma reforma agrária que tardava, os camponeses do sul de Portugal – onde existem os latifúndios (grandes propriedades agrícolas) tomam terras, formam cooperativas eleitas pelos trabalhadores, iniciando, pela sua ação, uma reforma agrária, que se generaliza a partir de fevereiro de 1975. Comissões de Moradores ocupam prédios e casas desabitadas. Nas prefeituras, a classe trabalhadora expulsa os salazaristas. Tal como nas empresas, nos ministérios se formam Comissões de Trabalhadores (comissões de delegados eleitos e revogáveis a todo o momento), que passam a controlar as funções dos serviços públicos. O movimento revolucionário das massas constituía seus próprios órgãos democráticos de representação, verdadeiros órgãos de duplo poder, de fato, pilares embrionários de uma nova sociedade socialista.

Até 1975 mais de 80 empresas haviam sido nacionalizadas, 140 tinham participação direto do estado, refletindo a enorme energia revolucionária em curso. Uma expressão da revolução foi a crescente dissolução da disciplina do exército, quando soldados e oficiais subalternos confraternizam diretamente nas ruas com o povo, realizam assembleias e ignoram as hierarquias militares. O MFA (Movimento das Forças Armadas) era uma camuflagem para ajudar a manter a estrutura militar, mas era também penetrado pela revolução. 

A Assembleia Constituinte

Em torno das sucessivas cinco Juntas de governo entre abril de 1974 e dezembro de 1975, em meio a tentativas de golpes contrarrevolucionárias, a burguesia buscava se reagrupar e lutar contra a revolução proletária em curso. Não havia um setor democrático e progressista dessa burguesia, como afirmavam o Partido Comunista e o Partido Socialista. Tratava-se para a burguesia de restabelecer as condições normais de exploração da força de trabalho e reconstruir o estado burguês. 

As eleições para a Assembleia Constituinte ocorrem em 25 de abril de 1975. O Partido Socialista obteve 37,87% dos votos, o Partido Popular Democrático (de direita) 26,38%, o Partido Comunista 12,53%.  As massas trabalhadoras ao mesmo tempo que agiam no sentido da revolução, mantinham ainda laços históricos com os tradicionais partidos da esquerda, o PS e o PCP. A autoridade desses dois partidos foi decisiva para conter a revolução nos quadros de uma reconstrução democrática e travar a ruptura revolucionária. Isso permitiu que o aparelho de estado burguês fosse se recompondo. Em agosto e setembro de 1975 formam-se o quinto e o sexto governo provisórios e em 25 de novembro de 1975 um novo golpe de estado faz os partidos assinarem um pacto com as forças armadas.

A nova Constituição portuguesa foi aprovada em 2 de abril de 1976, expressando a contradição entre o avanço das reivindicações populares de um lado, mas de outro também era um instrumento para bloquear a revolução. Isso teve um preço para a burguesia. O texto da Constituição consagrou as liberdades e garantias fundamentais democráticas, direitos econômicos como a nacionalização dos setores estratégicos da economia: bancos, seguros, água, eletricidade e transportes. Os direitos sociais: habitação, saúde e ensino públicos. Os direitos trabalhistas: de fazer greve e proibição de locaute pelos patrões, direito de manifestação, de reunião e organização de trabalhadores em sindicatos e comissões de trabalhadores. A Constituição estabelecia a transformação de Portugal numa “sociedade sem classes” e afirmava que teria “por objetivo assegurar a transição para o socialismo”, mediante “o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras”. 

A adesão de Portugal à União Europeia permitiu à burguesia, com apoio dos partidos a seu serviço, atacar o serviço nacional de saúde, a seguridade social e o ensino público, que foram sufocados com cortes de verbas, além de um processo de privatização das empresas públicas. Ainda hoje, a classe trabalhadora portuguesa busca se agarrar aos direitos, liberdades e conquistas ainda inscritos nessa constituição, conquistas revolucionárias da sua luta, para se reagrupar no terreno da independência de classe e retomar o caminho aberto em abril de 1974. 

Everaldo Andrade

Artigos relacionados

Últimas

Mais lidas