Pagu: revolucionária na arte, na política e na vida

Há 111 anos, em 9 de junho de 1910, nascia Patrícia Galvão, mulher que gravou uma obra artística, crítica e militante através de 4 décadas, entre os anos de 1920 e sua morte, em 1962, de intensa presença na arena pública.

Escritora de vanguarda, crítica de arte e literatura de pena implacável, militante comunista, que, rompida com o partido stalinista, se aproxima dos trotskistas (pagando por isso nas prisões de Vargas, tanto apanhando dos esbirros do Estado quanto dos membros do PCB), seguiu vida afora sem nunca abandonar suas convicções socialistas.

Patrícia, que se eternizou como Pagu, um apelido nascido de um poema de Raul Bopp onde a chamava assim por pensar que seu nome era Patrícia Goulart, surge na vida literária no final dos anos de 1920 como colaboradora da segunda e mais radical fase da Revista de Antropofagia, animada por Oswald de Andrade. Já neste momento, sua obra poética se destacava pela radicalização do modernismo literário, uma forma de fidelidade à atitude artística inaugurada pela Semana de 22 e que, pouco a pouco, foi abandonada pelos seus principais representantes, que foram se acomodando esteticamente às formas artísticas mais comportadas.

A colaboração artística e teórica com Oswald se converte por um breve período em um casamento. A união dos dois coincide com a aproximação e filiação do casal ao Partido Comunista Brasileiro. Neste período, Oswald e Pagu editam um jornal de agitação política e artística chamado O Homem do Povo (1931), onde Pagu escrevia uma página intitulada A Mulher do Povo. Oswald e Pagu tentam conciliar em O Homem do Povo sua liberdade criativa e a militância política no PCB. O jornal durou apenas 8 edições, sendo fechado depois de escaramuças com estudantes de Direito ligados à reação e com a polícia. O PCB fingiu que não era com ele.

Oswald de Andrade logo se enfastia da militância e se retira da cena política após o episódio, mas Pagu se engaja a fundo, sendo figura presente nas lutas proletárias, em especial entre os estivadores de Santos. Sua ruptura com o PCB se precipitará quando, numa manifestação, ainda em 1931, em defesa da vida de Sacco e Vanzetti, Pagu enfrenta a Polícia a Cavalo para recolher o corpo do estivador negro Herculano de Souza, morto no confronto. O PCB não se solidarizará e não a reconhecerá como militante, afirmando ser Pagu “uma agitadora individual, sensacionalista e inexperiente”. O fato a levou à prisão, fazendo dela a primeira mulher presa política na história do Brasil.

Pagu não foi membro da Oposição de Esquerda, mas se aproximou dos trotskistas, a partir de seu afastamento do PCB (Pagu, contudo, só se desfiliará do partido oficialmente em 1945). O resultado literário de sua experiência militante será o romance Parque Industrial, escrito em 1932 e publicado sob o pseudônimo de Mara Lobo, em 1933, chamado por ela mesma de “romance proletário”. Parque Industrial é um exercício ousado de renovação temática e formal do romance brasileiro, aparentado do experimentalismo de Oswald de Andrade em Memórias Sentimentais de João Miramar e em Serafim Ponte Grande, mas muito mais mergulhado na temática política. Distinto do chamado romance social, para o qual a abordagem da temática política e social implicava um recuo na inovação formal, Parque Industrial combina a denúncia social com a recriação da linguagem e da narrativa tradicionais. Passado na região do Brás, então coração operário da cidade de São Paulo, o romance “detém-se no comportamento do proletariado urbano feminino. Criticando a sociedade burguesa, de um ângulo socialista, é levada a ferroar a aristocracia paulista, ferindo velhos círculos sociais frequentados pelo modernismo de 22. Concentrando-se nas mulheres operárias (…), satiriza o feminismo burguês”, nos diz Augusto de Campos.

Parque Industrial foi vítima do silêncio da crítica, inclusive de figuras do modernismo, considerado escandaloso, por não se furtar a explicitar a violência, inclusive sexual, contra a mulher operária. Geraldo Galvão Ferraz, filho de Pagu e igualmente crítico literário, observa que o livro “deve ter desagradado também aos comunistas, em estado de policiamento moralizante”.

Como resultado da rebelião militar encaminhada pela Aliança Nacional Libertadora, frente política animada pelo PCB, e esmagada por Vargas, Pagu, como centenas de militantes foi novamente presa, desta vez por 5 anos. Libertada, incursionou pelo extremo oriente. Curiosamente, nesta viagem, entrevistou Sigmund Freud, presente no mesmo navio que a levava à China. Depois se exilou na Europa, onde amargou uma crise depressiva, mas não se afastou da luta contra o nazi-fascismo, se filiando ao PC Francês, sob o codinome de Leone, mas se ligando a artistas que com ele tinham rompido mais ou menos pelos mesmos motivos pelos quais ela se afastou do PCB: André Breton, Benjamin Péret. Acabou presa pelo Governo Laval e ameaçada de ser deportada ou para a Itália ou para a Alemanha, destino do qual acabou sendo salva pela interferência da diplomacia brasileira.

De volta ao Brasil, retoma a atividade literária e desenvolve intensa militância crítica, tanto na imprensa independente, como no caso de sua colaboração no jornal Vanguarda Socialista, ao lado de Mário Pedrosa e Geraldo Ferraz, como na grande imprensa.

Pagu perseverará na luta por uma arte e uma literatura independentes, denunciando tanto a tentativa da burguesia de institucionalizar o fazer artístico quanto o chamado “realismo socialista” com que o stalinismo pretendia regulamentar a arte.

Na sua atividade crítica se enfrenta com o conservadorismo literário, ao qual se converteu boa parte dos rebeldes de 22, e com o autoritarismo burocrático que caracterizava a linha cultural do stalinismo. Colocará em circulação no meio nacional nomes decisivos da vanguarda literária nacional e internacional, como Stéphane Mallarmé, Paul Valéry, James Joyce (foi a primeira tradutora no Brasil de fragmentos do Ulysses), e será uma das principais representantes, mesmo que quase espontaneamente, das ideias contidas no Manifesto por Uma Arte Independente e Revolucionária, de Breton e Trotsky.

Pagu desapareceu em 1962, em plena atividade como artista e como crítica. Augusto de Campos resumiu a importância de sua figura em nossa história política e cultural de uma forma que segue atual neste seu 111º aniversário: “Mas nada de homenagens póstumas. Deixemos isso para os literatti ávidos de comemorações acadêmicas. O que conta é a homenagem viva. A que reconhece as implicações políticas, estéticas e culturais de uma vida militante. Porque Pagu foi revolucionária na arte, na política e na prática da vida”.

Eudes Baima

Para saber mais:
-CAMPOS, Augusto (Org.). Pagu: vida-obra. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
-GALVÃO, Patrícia (como Mara Lobo). Parque Industrial. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2006.
-Filme: Eternamente Pagu, de Norma Bengell (1988). Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=MFylqrCYB_U

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