Referendo no Chile: como entender o 4 de setembro?

Um balanço do resultado do referendo no Chile deve partir de onde tudo começou.

No último 4 de setembro o povo estava chamado a votar Sim (Apuebro) ou Não (Rechazo) à nova Constituição elaborada pela Convenção Constitucional, instalada em julho de 2021.

A instalação da Convenção Constitucional tem sua origem na vigorosa mobilização que tomou conta do país em outubro de 2019.

O “estallido” de 18 de outubro iniciado contra o aumento de 30 pesos na passagem de metrô ampliou-se com as demandas reprimidas desde o fim da ditadura, o que foi sintetizado na frase “não é por 30 pesos, é por 30 anos”, com amplos setores em mobilização. “Por 30 anos” significava o rechaço do povo chileno aos governos que, após a queda da ditadura, coabitaram com a Constituição herdada de Pinochet. O arcabouço constitucional que preservava o ataque aos direitos mais elementares do povo, como saúde e educação públicas e direito a uma aposentadoria digna.

É daí que surge nas ruas do Chile a exigência de uma Assembleia Constituinte Soberana que enterrasse a Constituição pinochetista.

Depois do 18 de outubro, em 12 de novembro a classe trabalhadora entra com força, numa greve geral de norte a sul do país.

Três dias depois, em 15 de novembro, na calada da noite, o governo apresenta um Acordo de Paz, numa tentativa de conter o movimento. O Acordo tem a proposta de uma Convenção Constitucional para elaborar uma nova Constituição. Foi uma manobra na tentativa de contenção da mobilização que colocava o governo em xeque, Acordo que contou com o apoio da maioria dos setores de oposição a Piñera.

Os militantes identificados com a 4ª Internacional no Chile, registrando a tentativa de manobra do governo (e a necessidade de uma Assembleia Constituinte Soberana, o que a proposta de Convenção não era) participaram do plebiscito previsto no Acordo, defendendo o Apuebro (a uma nova Constituição), buscando se apoiar nas brechas abertas pela forte mobilização popular e avançar a luta.

No plebiscito de 25 de outubro de 2020 o Apuebro sai vitorioso, com quase 5 milhões e 900 mil votos (o voto não era obrigatório), Neste plebiscito a maioria votou também para que a Convenção Constitucional fosse 100% composta por deputados eleitos para este fim (e não por membros Congresso Nacional).

A crise dos partidos tradicionais –manifesta em particular na rejeição aos 30 anos de Concertación, que ecoou no “estallido” – expressou-se também na eleição para os deputados convencionais.

A maioria dos eleitos vinham dos candidatos independentes, sem vinculação partidária. Convencionais identificados com pautas identitaristas, oriundos dos chamados movimentos sociais (inclusive movimentos feministas que traduzem a questão da luta contra a opressão da mulher como uma questão de gênero e não de classe). Na Convenção Constitucional, que se instalou em julho de 2021, como disseram nossos camaradas chilenos, um componente esteve ausente: o mundo do trabalho (a classe trabalhadora).

Mais de um ano depois, com a chegada à presidência de Boric (candidato da Frente Ampla e que em 2019 apoiou o Acordo de Paz), derrotando a direita que fez campanha contra a nova Constituição o que se passou?

O governo Boric (hoje reprovado por 58% dos chilenos) se instala buscando a conciliação com a ex-Concertación e sem atender nenhuma das demandas concretas e urgentes levantadas em 2019. Enquanto a Convenção Constitucional estava instalada o Congresso Nacional (eleito sobre a base da herança pinochetista, seguia seu poder).

A proposta de nova Constituição que é elaborada ali, embora trouxesse algumas conquistas, fundamentalmente não expressou a agenda levantada em 2019 e era dominada por questões identitaritas, com as quais a maioria do povo trabalhador não se identifica. É nestas condições que se realiza o referendo. Nossa posição foi votar a favor, mesmo reconhecendo os limites da nova Constituição, pois seria a expressão da vontade majoritária do povo de enterrar a de Pinochet.

No referendo de 4 de setembro (agora, com voto obrigatório), com uma participação muito superior ao plebiscito de 2020 e na eleição dos deputados convencionais, 62% votaram pelo “rechazo” à nova Constituição (o apruebo à nova Carta teve cerca de um milhão de votos a menos que o plebiscito de 2020).

Uma derrota, e também um alerta.
Isto significa que o povo chileno votou por manter a Constituição pinochetista? Não! Significa que na nova Constituição apresentada ele não se sentiu representado!

A Convenção Constitucional não era uma Constituinte Soberana. Fazia seus trabalhos enquanto, primeiro Piñera e depois Boric, assim como o Congresso, mantinham seus poderes, alheios às demandas levantadas em 2019.

Um alerta também aos partidos tradicionais e aos candidatos independentes e identitaristas: “vocês não nos representam”, foi o que disse a grande maioria do povo chileno.

Uma situação que pede uma reflexão e uma discussão, pois o que se passou e se passa no Chile diz respeito a problemas que a luta de classe enfrenta para além dos Andes e dos oceanos que separam a classe trabalhadora em seus respectivos países.

Reflexão necessária pois o impacto dos resultados no Chile se fará sentir no nosso continente (onde a questão da Constituinte Soberana colocada em vários países, incluindo o Brasil). Vozes tentarão traduzir – em particular os aparelhos contrarrevolucionários que obstaculizam a luta independente da classe trabalhadora e das maiorias oprimidas – o resultado do Chile na política de obstaculizar a soberania do povo, buscando a conciliação à perspectiva de uma ruptura democrática, que dê voz ao povo.

Nós partimos do fato de que no Chile, a Convenção Constitucional que redigiu a nova carta, não era uma Assembleia Constituinte Soberana, portanto onde a soberania do povo não se expressou, eque a crise dos partidos tradicionais é o que marca a luta de classe.

No Chile, as demandas levantadas em 2019 voltarão a eclodir, e com mais força, quanto mais a classe sentir confiança para lutar, se sentir representada.

A discussão prossegue. Mas a lição principal do 4 de setembro chileno é que dar a palavra ao povo passa por um processo de construção política onde ele sinta-se representado.

A 4ª Internacional prepara seu 10º Congresso Mundial colocando no centro a questão de como ajudar a classe trabalhadora a se colocar, com confiança, a questão do poder e interromper a barbárie capitalista.

No Chile em 4 de setembro o que estava em votação não era Socialismo ou Barbárie, mas o caminho para avançar a luta para colocar fim à política de guerra e exploração oferecida pelo capitalismo. E o caminho é uma representação que realmente fale em nome da classe trabalhadora.

A derrota de 4 de setembro deve ser absorvida como um alerta. A política de conciliação, a dissolução dos interesses de classe em política identitarista não é o caminho para resolver a crise, cada vez mais brutal, pela qual passa a humanidade.

Misa Boito

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