Sérvia: “Não voltaremos para casa!”

Desde o primeiro caso de Covid-19 no país (7 milhões de habitantes, na região dos Bálcãs na Europa – NdOT), em 6 de março, dois dias depois da convocação das eleições, o governo começou a manipular informações sobre o vírus. Mais tarde, um dos membros do Comitê de crise, dr. Darija Kisic Tepavcevic, anunciou que o primeiro caso tinha sido registrado em 1º de março. O governo permaneceu calado até ter convocado as eleições.

A versão oficial passou de “vírus mais esquisito do mundo que só existe no Facebook” (de acordo com um membro do Comitê de crise, dr. Branko Nestorovi) à afirmação de que “os cemitérios serão muito pequenos para todos os aposentados que morrerão da Covid-19 se as restrições de circulação e o toque de recolher não forem respeitados” (declaração de Aleksandar Vučić, presidente do país), tudo conforme as necessidades políticas quotidianas e o interesse dos grandes capitais. O estado de urgência e um toque de recolher foram decretados, mas foram repentinamente suspensos antes das eleições, enquanto dados falsos sobre o número de mortos e de contaminados foram usados como justificativa. O professor de epidemiologia, dr. Radovanovic, deu um exemplo, em 2 de julho: seis casos de mortes foram divulgados, enquanto o número real era 52.

A crise
A crise agravou-se pela primeira vez em Novi Pazar, Tutin e Sjenica, cidades de maioria muçulmana, onde os hospitais estavam superlotados, enquanto os pacientes eram enviados para outras cidades, ou os dados sobre os casos de morte eram claramente subnotificados (nas pequenas cidades todo mundo se conhece, então as pessoas sabem quem morreu a cada dia).

O governo tentou, então, impor novas restrições, mas ninguém confiava mais nele. Isso também foi causado pelo comportamento e o discurso desrespeitoso do presidente Vučić, sobre a volta do toque de recolher e o fechamento das residências universitárias. Ao ser perguntado “para onde os estudantes irão?”, ele respondeu: “que vão para casa!”.

Manifestações estudantis se seguiram em frente às cidades universitárias, estendendo-se rapidamente a outras residências, com a palavra de ordem: “Não voltaremos para casa!”.

O recuo do regime
Vučić logo retirou sua declaração, alegando que embora ele fosse a favor do fechamento das residências universitárias, o governo e o ministro da saúde eram contra, portanto, elas permaneceriam abertas. Assim, o regime foi obrigado a recuar, mas isso não foi suficiente em face da revolta dos estudantes, que fizeram uma manifestação em frente ao Parlamento para exigir garantias escritas.

Houve tentativas de canalizar o movimento estudantil para uma política anti-imigração e chauvinista, mas os estudantes frustraram essa tentativa.

Em 7 de julho, após o anúncio oficial de novas medidas pelo Comitê de crise, entre as quais um toque de recolher no período de 10 a 13 de julho, ocorreram manifestações espontâneas, reunindo milhares de cidadãos em Belgrado, enquanto milhares de pessoas se reuniram em Novi Sad, Nis e em toda a Sérvia.

Enquanto isso, o governo aprovou uma ajuda de um bilhão de dinares (cerca de 855 milhões de euros) à Igreja ortodoxa sérvia para a construção do templo de Saint-Sava.

Repressão policial
Em Belgrado, diversos grupos de extrema direita, ainda que não muito numerosos, levaram para as manifestações demandas chauvinistas, anti-imigrantes e fascistas, provavelmente instigados pelo regime, como provocadores. Em Novi Sad, Nis e, ao que parece, em outras cidades também, esses grupos foram imediatamente isolados, enquanto em Belgrado isso só foi conseguido no terceiro dia de protesto, quando os manifestantes usaram a tática de sentar-se e exigir que os provocadores fizessem o mesmo.

Essas provocações forneceram ao regime o pretexto para utilizar a força e o gás lacrimogêneo nas ruas da capital, pela primeira vez em vinte anos. O ataque das forças policiais foi intenso, assim como a resistência dos jovens. Dezenas, até centenas (não há dados oficiais), foram feridos e presos.

Em Novi Sad, Miran Pogacar, (uma das lideranças dos protestos, NdE) acusou, desde o primeiro dia, os responsáveis por enganar a opinião pública a respeito da epidemia e de colocar em perigo a saúde pública, exigindo sua demissão (inclusive do presidente Aleksandar Vučić e do Comitê de crise) e a dos responsáveis pela violência policial injustificada (principalmente Nebojsa Stefanovic e Vladimir Rebic, ministro do Interior chefe da polícia), a publicação de informações completas sobre as pessoas contaminadas e mortas pelo Covid-19, o emprego em tempo integral dos profissionais de saúde, a recontratação dos trabalhadores que perderam seu emprego durante a pandemia… Miran Pogacar foi preso logo depois sob acusação de violência, mas foi libertado depois de 48 horas. Essas reivindicações foram aceitas na maioria das cidades no terceiro dia de manifestações, depois que nos primeiros dois dias as ruas foram palco de confrontos entre policiais e manifestantes.

A polícia foi reforçada pela cavalaria e cães policiais, bem como veículos blindados das unidades especiais, e utilizou gás lacrimogêneo. Os manifestantes usaram pedras, garrafas, fogos de artifício e tochas. Após o isolamento dos provocadores, no terceiro dia as manifestações ocorreram sem maiores conflitos. Eu vi um jovem, provavelmente torcedor de futebol, acender uma tocha, mas foi imediatamente cercado por pessoas que o fizeram sentar-se e apagar a tocha.

A Nova Televisão anunciou, citando fontes não oficiais, que a 63ª brigada de paraquedistas do exército sérvio recusou-se a sair às ruas de Nis no segundo dia de manifestação para a ajudar a polícia, cujas forças tinham sido deslocadas para Belgrado. Destacar as forças armadas numa situação como esta é uma violação da Constituição da Sérvia.

As manifestações continuam. Ontem à noite (9 de julho NdE), elas foram engrossadas pelos trabalhadores dos hospitais que tratam o Covid. Políticos da oposição não foram autorizados a falar nas manifestações, muitos foram expulsos, alguns até foram espancados. O regime mostrou sua cara ao ordenar a intervenção da polícia. Será difícil para ele conter a onda de insatisfação.

O povo já está cansado, tanto do governo quanto da oposição, cansado da exploração, da pobreza, das mentiras. Cansado do capitalismo. É a oportunidade para os trabalhadores e os grupos de esquerda se unirem, formular as reivindicações e apresentá-las aos manifestantes, contra o regime e seus serviçais, os extremistas de direita.

Correspondente
(artigo de 10 de julho publicado no jornal francês Informações Operárias, edição 613. Tradução Adaias Muniz)

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