“Você não pode esconder um cadáver da família por 50 anos”

Eliana Paiva, fala a “O Trabalho”. Ela é a segunda dos cinco filhos de Eunice e Rubens Paiva, deputado cassado e assassinado pela ditadura militar, cuja história é mostrada em “Ainda Estou Aqui”

Eliana Paiva tinha apenas 15 anos, em janeiro de 1971, quando agentes da ditadura militar brasileira chegaram à casa de sua família, no Rio de Janeiro, e levaram embora seu pai, o ex-deputado Rubens Paiva (PTB), então com 41 anos. Ela nunca mais o viu. No dia seguinte, ela e a mãe, Eunice Paiva, foram também levadas para o DOI, órgão da repressão ligado ao Exército, e torturadas. Eliana foi solta no dia seguinte; Eunice, 11 dias depois.

Começou então a luta pela libertação de Rubens, primeiro; pela reaparição com vida, em seguida; e depois pela recuperação do corpo e pela apuração do crime e punição dos criminosos, que nunca cessou. Eunice se manteve firme frente aos militares e ao Estado. Esses são fatos retratados no filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, que recebeu inúmeros prêmios nos últimos meses, culminando com o Oscar 2024 de Melhor Filme Internacional, em 8 de março último. O filme provocou forte impacto no Brasil. No momento da entrevista, já havia sido visto por mais de 5 milhões de brasileiros e provocado 75 milhões de interações nas redes sociais.

Tal como seus irmãos Vera, Marcelo, Ana Lúcia e Beatriz, Eliana cresceu em meio ao desaparecimento do pai e num ambiente de resistência à opressão. Entrou na Escola de Comunicações e Artes da USP, em 1976, e integrou-se à tendência Liberdade e Luta. Foi da redação deste jornal “O Trabalho” no final da década de 1970. Ela deu essa entrevista remotamente, de Itacaré (BA), em 10 de março de 2025.

Eliana – Está sendo tudo muito emocionante. Eu vi o filme em Londres (pré-estreia). Eu já chorava antes, chorei na hora em que aparece a Fernanda Montenegro – que fica mais próxima à última Eunice que eu vi, minha mãe já mais velha –, saí do filme e disse: “Não vejo mais”.

A maioria dos meus amigos está me escrevendo textos grandes, vários que não imaginavam a história toda que a gente viveu. Estou muito impressionada, e ao mesmo tempo não, porque o filme em si é muito bom.

Eliana – Eunice e Rubens eram pessoas excepcionais. Meu pai era um sujeito muito alegre, muito bom, muito tranquilo, muito engraçado, e ao mesmo tempo muito sério. Os dois tinham relações sociais muito fortes. Isso ajuda bastante. O próprio Waltinho (Walter Salles) conheceu a casa aos 12 anos. Ele era amigo da minha irmã do meio, a Ana Lúcia, e isso sempre ficou na cabeça dele. Naturalmente, o filme tem aspectos ficcionais, mas a sua força vem dos fatos que mostra e que realmente aconteceram.

Eu escrevi, na época, uma carta que foi publicada no “New York Times” e na revista “Newsweek” denunciando a situação. Ela também foi para a França, a Itália e a Inglaterra. Acho que foi essa carta que “soltou” a mamãe. A carta foi articulada pelo Raul Ryff, amigo de papai e ex-secretário de imprensa do João Goulart. Papai não era comunista.

Eu já estava fazendo pesquisa em jornalismo com ele, porque – não podiam contratar o Ryff como jornalista – ele foi encarregado do departamento de pesquisa do Jornal do Brasil. E eu comecei lá a ver imagens informativas, eu tinha 13/14 anos. Eu fiquei fascinada. Meu pai então me mandou para os Estados Unidos, e eu fiquei três meses estudando isso lá, antes dos 15 anos. Então, quando eu cheguei na ECA em 1976 já estava meio preparada.

Eunice era uma pessoa doce. No filme, ela me dá um tapa. Ali tem uma carga de dramaturgia grande – e que tem que ter! Ela jamais faria isso. A Fernanda Torres é uma Eunice um pouco bruta; ela mesma era bem mais doce.

Eliana – Parece que está conseguindo mudar um pouco a direção da direita maluca. Agora o Eduardo Bolsonaro ataca o Walter Salles dizendo que ele é um psicopata, e que todo mundo sabe que meio pai foi morto pela VPR (grupo armado de oposição ao regime militar, segundo versão da farsa montada pelo regime, NdE). Fala isso com a maior tranquilidade, como se fosse uma verdade. E parece que tem gente que acredita. Mas se o filme vai conseguir tirar apoio do Bolsonaro, isso vamos ver.

Eliana – Ele foi morto por pancadas. O tal Lobo (médico Amílcar Lobo, ligado à ditadura), que atendeu o meu pai, disse que ele estava muito ruim, e em vez de levarem ele para o hospital, ou executaram ou deixaram ele morrer.

Os guardas da prisão haviam todos sido trazidos do Sul, eram bem jovens e não entendiam como eu, uma menina de 15 anos, poderia estar presa. Começaram a conversar comigo. Eu perguntava da minha mãe e do meu pai. Minha mãe estava duas celas na frente. Ela estava deitada, dura, na cela, porque não sabia o que tinha acontecido com a filha. Então, estava tentando ouvir algum ruído meu. Eu disse a um eles: “Vai lá e diga à mamãe que eu estou bem”. Uma certa hora falei a eles: “Meu pai também está preso. Vocês sabem alguma coisa?” Aí ficaram meio atarantados; eram dois ou três meninos, de uns 18/19 anos… Um deles voltou e disse: “Alguém foi levado daqui arrastado durante a noite”…

Agora, se você junta os testemunhos todos, vai ver que ele foi executado.

Ele foi atacado porque tentou defender duas mulheres. Uma delas era a dona Cecília, nossa professora de história, e que levou anos inclusive para contar essa história. Parece que, na sala de tortura, eles estavam nus, em posição de ficar só com os dedos apoiados na parede. Eram circunstâncias muito degradantes, e o papai teria começado a ficar bravo com aquilo. Parece que a dona Cecília bambeou, e o papai a segurou. Bambeou pela segunda vez, ele ajudou e tomou uma porrada. Na terceira vez, os dois foram agredidos. Foi essa a sequência que eu soube. Aí ele virou e falou: “Eu sou deputado. Vocês não podem fazer isso.” Parece então que um, dois ou três dos torturadores, enlouqueceu e começou a agredi-lo com extrema violência.

O médico que o examinou depois disse que o tórax dele estava em condições de quem estava com uma grande hemorragia interna. Ele já estava estirado. Isso foi na Aeronáutica. Ele foi levado para o DOI no chão do carro, junto com a dona Cecília. Ele ali já estava muito ruim, mas poderia ser tratado num hospital. Só que quem fez isso, um ato de uma estupidez enorme, decidiu dar um fim naquilo.

Eliana – Sim. Sou testemunha no processo. Tive acesso a documentos, a fotos nas quais reconheci pessoas, e a Procuradoria sempre cruzou os depoimentos com os fatos apurados. Eu não sei quem matou o papai diretamente, mas esses cinco fazem parte, como executores ou mandantes.

Eliana – Você não pode esconder um cadáver de uma família. Temos de seguir nesta trilha. O aspecto jurídico de que não é uma anistia “continuada” é interessante. E é simples: você não pode esconder um cadáver de uma família durante 50 anos.

A história do filme é muito importante, em primeiro lugar, porque a minha família era muito boa, muito legal. Era um pessoal muito amoroso, e muito do sucesso do filme é porque fala de família. Aquela cena em que os agentes da repressão entram e escondem as armas realmente aconteceu. Minha mãe falou: “Escondam suas armas porque vocês estão numa casa de família”. Agora, pegando na coisa do STF e do Rubens Paiva, esse pai de família foi não só brutalmente assassinado, como o seu corpo sumiu.

Eliana – No caso do meu pai, podemos entrar pela questão da ocultação de cadáver. Eles não podem dizer que isso foi “sem querer”. Não, é uma realidade: não podem ocultar um cadáver.

Eliana – Só da Libelu. Fiquei meio aflita de participar de uma organização clandestina pela minha história anterior e não quis. Quem me aproximou da Libelu foi o (Elias) Salomão. Eu estava tomando um café e ele começou a conversar comigo. Depois, teve o Mario Sergio Conti, que era o presidente do Centro Acadêmico. Gostava muito das falas dele. Comecei então a fazer o grupo de teatro da ECA, comandado pelo Carlos Calado. Em seguida, participei do Avesso, um dos melhores jornais que a USP já teve, que foi editado por mim – fiz a produção gráfica, mudei o projeto, botei em standard, pus imagens – e pelo Caio Túlio (Costa), o Mário Sérgio, o Demétrio (Magnoli), o (José) Arbex, a Teresoca, o Rodrigo Naves. Vendia feito água. A Libelu se formou nesta época, né?

O jornal Avesso deu certo. Meus irmãos, ligados a outras tendências políticas, detonaram o jornal, e eu defendi. Aí passei a fazer parte da Libelu. O Avesso era ligado ao DCE-Livre da USP.

Eliana Paiva (ao centro) participa de encontro de Liberdade e Luta, em 1980.

Eliana – Participei de todas. Lembro especialmente de uma na qual paramos em cima do viaduto do Chá (5 de maio de 1977, NdE). Estávamos logo atrás da primeira faixa. A polícia soltou uma bomba de gás contra nós. Aí, todo mundo sentou no chão, pois era a praxe de segurança, mas o Rodrigo Naves teve um ataque de fúria e começou a xingar os policiais que estavam ali na frente, e eu, ou alguém, abraçou-o por trás para contê-lo.

Lembro de outra na qual corremos por todo o centro da cidade, nos dispersávamos e depois nos reuníamos (15 de junho de 1977, NdE). Esta foi ótima! A gente se dividia em duplas ou trincas.

E lembro da primeira passeata (30 de março de 1977, NdE), saindo dali da Economia e da ECA, e que foi muito emocionante, porque a gente foi até o Largo de Pinheiros. Estava todo mundo muito feliz, tranquilo e emocionado. Foi muito legal!

Eliana – Então, fui presa na invasão da polícia na PUC-SP. A gente foi para o Dops. Chegando lá,  foram separando as pessoas em salas para dar depoimentos. Me lembro de ter visto o Josimar (Melo). Eu estava numa mesa, prestando depoimento, e vi a minha irmã Analu em outra mesa perto. De repente, vejo o escrevente muito bravo com ela, pois se recusava a dizer o próprio endereço. Ao final, ligaram para a minha mãe. Ela foi buscar a gente lá. Entrou, com aquela carinha dela como se nada estivesse acontecendo, pisando firme, cumprimentando todo mundo. Pegou a gente, botou no carro e fomos embora. Ela não nos falou nada. Foi apenas pegar a gente.

Eliana – Depois, fui diagramadora do jornal “O Trabalho”. Junto com o Valdir (Mengardo), redimensionei “O Trabalho” quando passou a semanal. Fiquei alguns meses, mas o Marcelo sofreu o acidente nesta época (no qual ficou paraplégico), e aí eu não pude mais. O acidente causou um impacto muito forte na minha família toda.

Paulo Zocchi

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