Dossiê Afeganistão

Dossiê reproduzido pelo CILI (Comitê Internacional de ligação e intercâmbio) e publicado em Informations ouvrières (jornal do Partido Operário Independente, na França) de 26 de agosto, redigido dois dias antes dos atentados de Cabul, que são uma trágica confirmação do que escrevemos. Informations ouvrières retomará a questão.

“O grande jogo”

Por Lucien Gauthier

É nesses termos que, em seu romance “Kim”, Rudyard Kipling descreve as rivalidades entre o império britânico e o império czarista do século 19 no Afeganistão. Esse grande jogo é a guerra, a pilhagem contra os povos. Algumas comparações podem ser enganosas, como as repetidas na imprensa sobre a fuga dos estadunidenses do Vietnã em 1975 e a evacuação do aeroporto de Cabul.

Não é a mesma coisa. No Vietnã, depois de décadas de combate pela libertação nacional, um povo se levantou, expulsando o imperialismo dos Estados Unidos do seu país, e isto em ligação com a mobilização de milhões de estadunidenses que marcharam sob a palavra de ordem “Tragam os meninos para casa!”

Mas, não estamos mais no século 19 nem no século 20, a situação mundial e a crise imperialista são de outra natureza. No caso do Afeganistão, são os próprios líderes do imperialismo que decidem abandonar o regime fantoche que sustentavam há vinte anos.
Desde 2010, os representantes do imperialismo estadunidense têm negociado com os líderes talibãs no Catar, onde estava refugiado o escritório político do Talibã.

Em fevereiro de 2020, eles assinaram um acordo que previa a retirada completa das tropas em 31 de maio de 2021; em troca, os talibãs prometeram não atacar as tropas dos EUA nesse período. Alguns meses depois, os Estados Unidos pediram ao Talibã um adiamento para 31 de agosto, com o que eles concordaram. Eles tinham feito o mesmo no Iraque, onde, após ter destruído o país, saíram deixando o Iraque entregue às gangues criminosas.

Como indica uma longa análise publicada pelo diário Le Monde, “o desastre da retirada afegã não veio como um raio em um céu azul: o fiasco da invasão do Iraque em 2003, sua série de excessos trágicos e o caos em que mergulhou permanentemente o Oriente Médio parecem, em comparação, mais graves em termos de consequências”.

A queda de Cabul é uma expressão da crise de todo o sistema de dominação imperialista mundial e do lugar do imperialismo estadunidense na escala global. Obrigados a redobrar as suas forças para enfrentar a concorrência a que estão sujeitos os seus monopólios no mercado mundial supersaturado, a rivalidade com a China e, por outro lado, confrontados a uma resistência crescente dentro dos próprios Estados Unidos, os dirigentes do imperialismo estadunidense consideraram que não dispõem, a esta altura, dos meios para “estabilizar” a situação no Afeganistão. O artigo já citado do Le Monde aponta que Biden “afirma estar deixando o Afeganistão para poder se concentrar em questões mais estratégicas, essencialmente a rivalidade com a China” (24 de abril).

Com a retirada das tropas do Afeganistão, fica evidente a incapacidade do imperialismo mais poderoso de “estabilizar” o caos que causou ao submeter o povo afegão, assim como a todos os povos do mundo, às reivindicações de sobrevivência de um sistema que os condena todos à miséria e à privação. Neste sentido, a queda de Cabul marca a passagem de uma nova etapa, que fecha aquela que se instaurou em 1945 e que viu os antigos impérios ruírem, um após o outro, sob a pressão combinada da resistência dos povos que eles oprimem e da classe trabalhadora de seu próprio país.

A decisão dos Estados Unidos, há cinquenta anos, anunciando o fim da convertibilidade do dólar em ouro, desorganizou todos os acordos globais decorrentes dos Acordos de Bretton Woods de 1944 e, a partir do momento em que o dólar se tornou a moeda mundial, os EUA concentraram em si todas as contradições da economia capitalista. Da mesma forma, com a queda da URSS em 1991, o imperialismo estadunidense teve que assumir todas as tarefas da contrarrevolução.

Os prazos estão se esgotando. O slogan de Biden, “América is back” (“A América está de volta”), foi expresso com brutalidade durante a cúpula da OTAN: os pedidos dos europeus para prolongar sua presença no Afeganistão foram secamente rejeitados pelos representantes dos EUA, indicando assim a verdadeira natureza das relações estabelecidas entre a União Europeia e os Estados Unidos.

O governo Macron foi avisado, pois o que vale para o imperialismo mais poderoso se aplica a imperialismos de segunda categoria como o imperialismo francês, atolado na guerra do Sahel (região da África- NdT).

É preciso insistir: a situação no Afeganistão é uma expressão da crise generalizada do sistema imperialista. Como assinala o diário Le Monde, “o fim do ciclo de intervenções pós 11 de setembro não significa necessariamente a retirada dos Estados Unidos dos assuntos mundiais”. Em crise e agonizante, este sistema pode e vai provocar novas desordens.

A dominação imperialista causa guerras, mortes, dezenas de milhões de migrantes, a fome que mata 9 milhões de pessoas todos os anos, a destruição das conquistas da classe trabalhadora, e esta é também a razão pela qual, desde 2019, iniciaram-se processos revolucionários no Maghreb (Norte da África – NdT)), no Oriente Médio, na América Latina e na Ásia e que ocorreram importantes movimentos de luta de classe nos Estados europeus e nos Estados Unidos.


E agora?

Cabul caiu sem lutar. O regime e seu exército fantoche desmoronaram imediatamente. Caiu diante da indiferença geral de uma população exausta por décadas de guerra e pelos grupos mafiosos.

Durante vinte anos, os Estados Unidos despejaram no Afeganistão 2 trilhões e 261 bilhões de dólares, ampliando de forma desproporcional a corrupção do regime e de seus cúmplices.

A população, por sua vez, foi lançada na miséria. De acordo com o Banco Mundial, em 2007, 37% dos afegãos viviam abaixo da linha de pobreza e em 2020 eram 55%.

A guerra, durante vinte anos, custou oficialmente a vida de 240 mil pessoas, muitas delas civis, destruindo aldeias inteiras, obrigando a população a fugir.

Vários milhões de afegãos se refugiaram no Paquistão, Irã e Turquia. A “modernidade” do regime fantoche alardeada pela mídia internacional só pode ser vista em relação à capital, Cabul. A maioria dos afegãos vive em áreas rurais, montanhosas e isoladas, sem qualquer ajuda do governo central, sobrevivendo do cultivo de papoula. São conservadores e rígidos e não veem no Talibã nada de contraditório a seu modo de vida. Eles até veem nas suas políticas repressivas um meio de diminuir a insegurança, expulsar os ladrões e destruir o poder dos pequenos chefes locais.

Obviamente, a reação não é a mesma para uma parte da população urbana, mais instruída, e em particular as mulheres que sabem muito bem o que significa o retorno dos talibãs.

O mulá Abdul Ghani Baradar, cofundador do Talibã com o mulá Omar, deixou sua luxuosa estadia no Catar para voltar ao Afeganistão. Na sua comitiva, os líderes do Talibã deram muitas declarações garantindo que serão tolerantes, que não vão impor a burca, que as meninas poderão ir à escola, as mulheres trabalhar…

É a influência de seu novo patrocinador, o Qatar, que os ensina a apresentar um verniz democrático para discutir com os ocidentais. A volta do cofundador do Talibã tem o motivo oficial de ajudar a formar um governo “inclusivo” que envolva todas as partes da sociedade. Essas negociações começaram com a chegada, para participar, de Khalil Haqqani, um dos terroristas mais procurados pelos Estados Unidos, e principalmente de Gulbuddin Hekmatyar, líder de um grupo jihadista independente do Talibã e chamado de “açougueiro de Cabul”, que bombardeou pesadamente a cidade durante a guerra civil de 1990.

Mas a situação é tensa em Cabul, os britânicos e os alemães pediram oficialmente o adiamento (com o apoio da França) da retirada das suas tropas, por não poderem garantir as evacuações até 31 de agosto. A princípio, Biden não fechou a porta a esse pedido.

O porta-voz do Talibã lembrou que o acordo assinado vence em 31 de agosto e deixou claro: “É uma linha vermelha”. E acrescentou: “Se os Estados Unidos ou o Reino Unido estão pedindo mais tempo para continuar as evacuações, a resposta é não e haverá consequências”.

Um porta-voz dos EUA garantiu que os estadunidenses poderiam garantir a evacuação até 31 de agosto. O jornal Les Echos de 24 de agosto escreveu: “Joe Biden mais uma vez deu garantias sobre a evacuação de cidadãos americanos, repetindo que ‘todo americano que quiser voltar para casa irá para casa’. Mas é menos positivo sobre o destino dos afegãos que ajudaram os americanos – ou aliados da OTAN – durante os vinte anos de conflito.”

Soldados Americanos no aeroporto de Cabul em 21 de agosto de 2021

Os talibãs, de onde vêm, quem são?

Para responder a essa pergunta, devemos retornar muito brevemente à história do Afeganistão.

Alguns pontos de referência, até o estabelecimento da república

Por séculos e séculos o Afeganistão foi um lugar de passagem, até porque fazia parte da Rota da Seda. Montanhoso, íngreme, atrasado, esteve submisso aos senhores locais, aqueles senhores da guerra que governavam sua região sob base étnica, apoiando-se nas relações tribais. Esses chefes da guerra lutavam entre si regularmente. Eles combateram contra reinos indianos, mas também contra os persas, os russos e os ingleses.

Em 1898, os britânicos invadiram o Afeganistão para torná-lo um Estado-tampão. Eles fizeram isso para conter a ofensiva do czar, que queria consolidar seu domínio sobre a Ásia Central, e para proteger o reino da Índia, sob controle britânico, na fronteira com o Afeganistão (lembremos que naquela época os territórios que compõem o Paquistão estavam no Reino da Índia).

Diversas guerras vão opor os britânicos aos vários senhores da guerra afegãos. Em 1893, após a derrota dos afegãos, os ingleses organizaram a partição de certos territórios do Afeganistão e, em particular, a separação das populações pashtun, parte das quais permaneceu no Afeganistão e a outra parte integrou a Índia (hoje esses territórios pashtun estão no Paquistão).

Com a saída dos britânicos no início do século 20, uma monarquia foi estabelecida. Ela se apresenta como “modernista”, mas não tem como controlar os senhores da guerra e suas tribos. Será uma longa lista de assassinatos e golpes de estado que marcarão a história do Afeganistão.

Em fevereiro de 1973, um golpe de estado derrubou a monarquia e estabeleceu a república. O novo governo procura ter boas relações em equilíbrio com os Estados Unidos e a URSS. A burocracia do Kremlin apoia o Afeganistão contra o Paquistão, a ponta de lança estadunidense na região.

Um novo golpe de estado ocorreu em 1978 por iniciativa do Partido Comunista Afegão que, apesar de sua liderança stalinista subserviente à URSS, viu moradores da cidade, jovens, funcionários públicos e trabalhadores utilizarem o Partido Comunista em seu desejo de soberania nacional para acabar com a corrupção e os chefes da guerra.

Mas, ao chegar ao poder, o governo estabelece uma política stalinista: emancipação pela força das mulheres (retirada do véu) e coletivização forçada das terras, causando a revolta dos camponeses. Imediatamente, o regime, ao estilo da boa escola stalinista, denuncia essas revoltas como fundamentalistas, islâmicas, contrárias à modernidade e organiza uma repressão massiva.

Um movimento de resistência armada se desenvolve. Obviamente sob o patrocínio dos Estados Unidos, os serviços secretos do Paquistão armam e financiam esses movimentos para dar-lhes um colorido islâmico e não de uma revolta social e política.

O Afeganistão é composto por várias etnias com diferentes idiomas. Existem quatro grupos principais: os pashtuns, que constituem 38% da população (no vizinho Paquistão também vivem pashtuns que constituem 15% da população do Paquistão). Os tajiques, que representam 25% da população do Afeganistão (e a maioria da população tajique vive na vizinha República do Tajiquistão), Os hazaras representam 19% e os uzbeques 6% (a maioria dos uzbeques vive no Uzbequistão) Os pashtuns, tajiques e uzbeques são sunitas. Os hazaras que falam dialeto persa são xiitas e sempre foram oprimidos.

A intervenção das tropas do Kremlin, em 1980
Em janeiro de 1980, diante da incapacidade de lidar com a situação por parte do governo afegão, tropas da burocracia do Kremlin intervieram no Afeganistão.

Mas a verdadeira razão não era tanto ajudar o governo afegão e sim tentar conter, com a aprovação tácita dos Estados Unidos, a revolução de 1979 no Irã, que derrubou o Xá e que de fato ameaçava toda a região. A burocracia estava particularmente preocupada com as repúblicas soviéticas da Ásia Central, onde a população é predominantemente muçulmana.

Nessas condições, os Estados Unidos decidem passar a um estágio superior. Com a ajuda dos serviços secretos dos paquistaneses, eles vão armar, supervisionar e treinar o que a imprensa, na época, chamava de mujahidim. Os Estados Unidos vão recorrer à Arábia Saudita e aos países do Golfo para contribuir financeiramente para o esforço de guerra. É assim que um membro de uma numerosa família saudita da nobreza, Bin Laden, vai contribuir, em conjunto com o Paquistão e os Estados Unidos, para o financiamento desses grupos de oposição.

Mas, devido ao sucesso da guerra de contraguerrilha levada a cabo pelos soviéticos usando vários helicópteros que matariam os mujahidins nas montanhas, os Estados Unidos decidem fornecer mísseis Stinger para abater os helicópteros.

Soldados da URSS deixam o Afeganistão


Em 1989, a burocracia do Kremlin decidiu retirar-se do Afeganistão. O governo apoiado pelos soviéticos entra em colapso, enquanto os diferentes grupos de mujahidins continuam a lutar entre si (o que já acontecia na era soviética). Intelectuais franceses da época, como Bernard-Henri Lévy, apresentavam esses mujahidins como “combatentes pela liberdade”. Esses diferentes grupos baseados em etnias e tribos eram todos islâmicos mais ou menos fundamentalistas, com nuances. Em abril de 1991, o comandante Massoud, chefe da Aliança do Norte, baseada na população tajique, entrou em Cabul.

Ele é celebrado em todo o mundo como um democrata, particularmente na França por falar francês, tendo estudado no colégio francês em Cabul. Mas em sua fortaleza de Panshir, é verdade que as meninas têm o direito de ir à escola, mas é a lei do clã e da tribo que se aplica.

O líder Hekmatyar, um fundamentalista islâmico, apoiado pelas milícias pashtun, se torna primeiro-ministro após o acordo entre as várias facções de líderes dos movimentos guerrilheiros. Em 1992, ele introduziu a lei Sharia (uso da burca obrigatória para mulheres, música proibida no rádio). No entanto, o Afeganistão não é unificado. Os diferentes chefes de clãs e das tribos, continuam a se opor e a lutar entre si.

A partir de 1994, o Talibã (literalmente: estudantes de teologia) foi formado por iniciativa do mulá Omar. Ele lutou contra os russos, é também um companheiro de Bin Laden, mas não é igual. Para o Talibã, a questão central é o estabelecimento de um califado islâmico em todo o Afeganistão. Em 1996, ele controlou o Afeganistão e estabeleceu uma ordem repressiva e austera. Essa restauração da ordem levou, em 27 de setembro de 1996, Madeleine Albright, Secretária de Estado dos Estados Unidos, a dizer: “Este é um passo positivo”.

A confissão de Hilary Clinton em 2009: A Al-Qaeda, o Talibã, somos nós
Em 11 de setembro de 2001, os ataques às torres gêmeas em Nova York, reivindicadas por Bin Laden e pela Al-Qaeda, provocaram a reação dos Estados Unidos que conhecemos. Eles decidiram atacar o Afeganistão porque Bin Laden estava refugiado lá.

Todos os especialistas explicam que os talibãs não estiveram particularmente envolvidos neste atentado. Eles se concentravam no Afeganistão e não buscavam se encaixar na nebulosa terrorista internacional, embora tenham permitido que a Al-Qaeda operasse no Afeganistão.

Quanto a Bin Laden, que havia trabalhado com os Estados Unidos e os paquistaneses, ele se radicalizou. Após a partida dos russos, os EUA se desligaram em grande parte da situação no Afeganistão. Eles queriam apagar esse período, incluindo Bin Laden. Por isso, este último, ameaçado na Arábia Saudita pela monarquia saudita, teve que deixar este país para se refugiar no Afeganistão (quando os americanos entram no Afeganistão, Bin Laden iria se refugiar no Paquistão, obviamente com o apoio de uma fração do exército e serviços paquistaneses). O regime talibã seria derrubado. Um novo regime, a serviço dos EUA, seria estabelecido: a República Islâmica do Afeganistão.

Em 24 de abril de 2009, Hillary Clinton, secretária de Estado de Obama, participou de uma audiência no Congresso dos Estados Unidos sobre o Afeganistão. Ela fez uma confissão surpreendente:

“A Al-Qaeda e o Talibã, fomos nós que os criamos”. Ela explicou detalhadamente aos congressistas: “As pessoas que combatemos hoje, nós os financiamos há vinte anos e fizemos isso porque estávamos empenhados na luta contra a União Soviética. Eles tinham invadido o Afeganistão e não queríamos vê-los controlando a Ásia Central, por isso começamos a agir. O presidente Reagan, em acordo com o Congresso liderado pelos democratas, disse: “vamos negociar com o ISI” (serviço militar secreto paquistanês, NdR) e os militares paquistaneses recrutaram esses mujahidins. É ótimo que eles venham da Arábia Saudita e de outros países trazendo seu islã wahhabi para que possamos vencer a União Soviética. Os soviéticos se retiraram, perderam bilhões de dólares e isso levou ao colapso da União Soviética. Quando nos desvinculamos daquela região, dissemos aos paquistaneses: “cuidem dos mísseis Stingers que deixamos em seu país”.

E esses Stingers foram usados ​​contra as tropas estadunidenses.
Está aí a origem do Talibã. Como muitas vezes acontece, o monstro se volta contra o seu criador.


China, Rússia, Irã…

Esses três países mantiveram suas embaixadas em Cabul abertas, reconhecendo de fato o regime do Talibã. China e Rússia, nesta ocasião, destacaram a fraqueza dos EUA, o Irã saudou o fiasco estadunidense. Obviamente, no contexto da crise da liderança do imperialismo mais poderoso, essas potências estão tentando jogar sua carta. Mas não só. A China e a Rússia também ambicionam as significativas riquezas minerais do Afeganistão. Mas é a China que está na frente nesta matéria.

O Departamento de Defesa dos EUA estimou as reservas afegãs de lítio em um trilhão de dólares em 2010. Desde então, o valor triplicou: com a generalização do carro elétrico o lítio é essencial. Mas no Afeganistão, ele praticamente não é explorado. Para isso é necessária a instalação de infraestruturas especializadas que só podem ser fornecidas por uma parceria estrangeira, neste caso, a China.

Outra razão muito importante para a China é a questão da minoria muçulmana uigur na própria China, que é severamente reprimida pela burocracia de Pequim. Os uigures estão lutando nas tropas do Talibã e este, até agora, apoiou os muçulmanos na China. Mas parece que foi alcançado um acordo no qual os talibãs deixarão de apoiar os uigures

Para Putin, a questão é da mesma natureza. Ele se manifestou contra a proposta dos Estados Unidos e da União Europeia de acomodar refugiados afegãos nas antigas repúblicas da URSS na Ásia Central, com o objetivo de impedir a infiltração terrorista. Na realidade, o medo de Putin é que uma situação de crise se abra na região com consequências diretas para a Rússia.

O Irã, que iniciou um combate muito forte ao narcotráfico em seu país, preocupa-se com o trânsito de uma parte significativa da produção de papoula vinda do Afeganistão (que, lembremos, produz 80% da papoula em escala mundial). A situação preocupa o Irã, que já hospeda milhões de afegãos e divide uma fronteira de mais de 900 quilômetros com o Afeganistão.

De acordo com o diário libanês L’Orient-Le Jour, “a situação no Afeganistão está gerando temores no Irã sobre um possível ressurgimento no país vizinho de movimentos jihadistas filiados ao grupo do Estado Islâmico”.

De fato, como a China e a Rússia, o Irã está preocupado com a formação de um califado sunita que desestabilizará toda a região. No Irã, a população sunita já é de 10% e muito controlada e reprimida em nome da luta contra alguns grupos terroristas sunitas. Na realidade, para as três partes, há o medo de uma desestabilização generalizada na região, com consequências globais.


A causa das mulheres afegãs, uma instrumentalização que nunca cessou

Publicado no jornal online Mediapart (trechos)

Usadas como pretexto pelas potências estrangeiras por quarenta anos, as mulheres afegãs mais uma vez enfrentarão o rigor do Talibã, num país onde seus direitos já faziam água de todos os lados (…).

A “proteção” e a “libertação” das mulheres afegãs fizeram parte, após os ataques de 11 de setembro nos Estados Unidos, dos argumentos invocados por todas as potências ocidentais para justificar a intervenção das forças da OTAN no país. Por isso muitas se sentem descartadas e fortemente ludibriadas (…).

“A causa das mulheres afegãs foi uma desculpa esfarrapada desde o início! “, Analisa Carol Mann, historiadora e socióloga, especializada na questão de gênero e de conflito armado (…).

Abandono escolar, aumento de casamentos forçados, violência doméstica, imolações e suicídios… Este quadro grave levantado em 2007 pela pesquisadora iraniana Elaheh Rostami-Povey em seu livro “Afghan Women: Identity and Invasion (Mulheres afegãs: Identidade e Invasão) continuou piorando. “A modernidade é que as mulheres falam e denunciam o que estão sofrendo”, observa Carole Mann (ver sobre isso o documentário A Thousand Girls Like Me – NdR).

As políticas de desenvolvimento, às vezes sem base na realidade, visando a “emancipação” das mulheres afegãs, muito rapidamente tropeçaram no impensado: um país ocupado por potências estrangeiras, associado a um governo fantoche.

“As mulheres no Afeganistão há muito tempo são retratadas como mulheres passivas à espera de libertação”, escreveu Elaheh Rostami-Povey em 2007. “Depois do ataque de 11 de setembro, Washington, apoiado por Londres, usou-as como argumento para bombardear o país. Milhares foram mortas sob este tapete de bombas. Hoje como ontem, as mulheres se sentem alienadas diante do patriarcado, mas também por falta de segurança social e econômica.”


Recepção dos refugiados?

A propaganda na mídia mostra os estadunidenses e europeus fazendo a evacuação dos afegãos. Mas isso é feito a conta-gotas, porque há milhares e milhares de afegãos fora do aeroporto, presos entre as tropas americanas que os impede de entrar e os talibãs que filtram os acessos ao aeroporto. Durante uma debandada, sete afegãos foram pisoteados até a morte. Em uma imagem de desespero, vemos uma mulher afegã, impedida de entrar no aeroporto, entregando seu bebê a um soldado estadunidense para que pelo menos ele pudesse escapar da barbárie.

O que será desses milhares de evacuados do Afeganistão? Os Estados Unidos e a União Europeia vão acolher uma pequena parte. Mas a linha desenvolvida por Joe Biden e apoiada, é claro, pela União Europeia, é colocar esses refugiados em “países seguros” que não sejam os da Europa e dos Estados Unidos, por exemplo, na Ásia Central.

Como primeiro alvo, a Turquia reagiu com uma declaração do presidente Erdogan: “Uma nova onda de migração é inevitável se as medidas necessárias não forem tomadas no Afeganistão e no Irã. A Turquia, que já acolhe 5 milhões de refugiados, não pode suportar um fardo adicional”. Imediatamente, a Turquia construiu um muro em sua fronteira com o Irã. A Grécia construiu um muro de 40 quilômetros em sua fronteira com a Turquia.

De um lado discursos, de outro a realidade: a barbárie imperialista. E a França? “Vamos ser, outra vez, o país europeu que não aceitou praticamente ninguém”, disse à France Info, Marie-Laure Malric, membro do Coletivo por uma Nação Refúgio, uma associação de ajuda a refugiados.


Há 20 anos: Os atentados de 11 de setembro de 2001, prelúdio à guerra do Afeganistão

Editorial do nº 504 de Informations Ouvrières, semana de 12 de setembro de 2001 (extratos)

Este 11 de setembro marcará uma virada na história mundial. No momento em que este artigo foi escrito, é muito cedo para ter um quadro exato das causas e consequências dos atentados que ceifaram milhares de vidas ontem em Nova York, Washington e Pensilvânia. Mas é certo que isso abre uma nova situação, à qual teremos que voltar em nossas próximas edições.

Milhares (ou talvez mais) de cidadãos estadunidenses, em sua grande maioria trabalhadores, foram, portanto, as vítimas inocentes desses ataques. Vítimas somadas a uma lista já longa: um milhão e meio de crianças iraquianas mortas em consequência do embargo nos últimos dez anos, milhões de vítimas nas guerras nos Bálcãs, Serra Leoa, Ruanda, Somália, milhões de africanos mortos de desnutrição, fome e epidemias como resultado da economia da dívida e dos planos estruturais. E quantos outros mais?

A nova ordem mundial, anunciada há dez anos como a da democracia e da paz, mostra-se cada vez mais a cada dia como portadora de guerras, desolação e sofrimentos inéditos para todos os povos.

Logo após os ataques ocorridos na costa leste dos Estados Unidos, vozes se levantaram para exigir cortes drásticos nos orçamentos sociais, para inflar os orçamentos do exército e dos serviços de informação. Ao mesmo tempo, a derrocada das bolsas em todo o mundo vem agravar uma recessão galopante, que já havia causado milhões de cortes de empregos.

O aumento no preço do petróleo, o aumento meteórico no preço do ouro … novamente, o significado deste ponto de inflexão na história mundial não pode ser devidamente avaliado neste ponto. Mas ninguém pode duvidar que esta nova situação aumenta as ameaças que pesam sobre a situação dos trabalhadores e dos povos de todo o mundo (…).

Neste momento decisivo da situação mundial, a ação política operária independente é a única forma de defender as conquistas da civilização, indissociáveis ​​da democracia e da paz. Informations Ouvrières está, todas as semanas, ao serviço desta ação política pela paz, pela democracia e pela justiça social.

A Redação

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