A Comuna de Paris de 1871: a tradição histórica dos conselhos da democracia operária

Há 150 anos o movimento operário erguia pela primeira vez na História um órgão próprio de poder e de governo. Apesar do seu pouco tempo de existência, a Comuna tornou real e verdadeiro o sonho de que a classe trabalhadora seria capaz de governar – derrubando a burguesia e o capitalismo – a partir dos seus próprios interesses e necessidades. A comuna de Paris constituída em 18 de março de 1871 foi o primeiro governo operário da História e deixou muitos caminhos para o futuro. Nas poucas semanas de sua existência os militantes operários de Paris, isolados, atacados pela burguesia francesa unida ao exército prussiano que acabara de invadir e derrotar a França, reagiram e combateram, criaram normas, decretos e marcas para os futuros militantes operários sobre inúmeras questões. O exemplo da Comuna de 1871 serviu como exemplo concreto para a elaboração de Marx e Engels e depois Lênin, Trotsky e tantos outros revolucionários posteriores. As futuras revoluções proletárias contaram desde então com uma perspectiva para impulsionar a derrota dos estados burgueses baseados na experiência dos órgãos de poder e auto-soberania das massas baseadas na democracia operária.

Essa história faz parte da luta da classe trabalhadora e é importante ser conhecida. Assim se iniciava a História da Comuna de 1871, escrita pelo militante operário Prosper-Olivier Lissagaray em maio de 1896: “a História da Comuna de 1871 foi fabricada por escamoteadores. Desconhecer ou odiar a classe que tudo produz é característica da atual burguesia outrora grande, hoje enlouquecida com as revoluções que vem de baixo”.

O surgimento da Comuna
O cerco militar à França após a guerra franco-prussiana de 1870 e a rendição final do governo imperial francês ao primeiro-ministro Von Bismarck foi o estopim de uma crise política da burguesia francesa que abriu caminho para a ação independente das massas. Nos dias 1 e 2 de setembro de 1870 o imperador Napoleão III (sobrinho de Napoleão Bonaparte) e mais 80 mil soldados franceses foram feitos prisioneiros. Isso provoca uma crise política que derruba a monarquia e no dia 4 de setembro ocorre uma revolução em Paris e é proclamada a República. Forma-se um governo de defesa nacional que não aceita a derrota militar e continua a resistir.

Mas a burguesia francesa, temendo uma insurreição de massas, capitula, trai a resistência nacional e assina um tratado com os exércitos invasores da antiga Prússia (que logo se tornaria a Alemanha unificada) em 26 de fevereiro de 1871. Com isso, se facilita que os soldados prussianos cerquem a cidade de Paris. Ninguém ousa – nem o governo francês derrotado nem os prussianos que venceram a guerra – entrar na capital e enfrentar os batalhões operários da Guarda Nacional. O governo burguês se retira de Paris e abandona a capital. No dia 8 de março há uma tentativa para desarmar a guarda nacional de sua artilharia e a cidade se mobiliza contra o governo. Se estabelecia na prática uma situação de duplo poder na França: um governo burguês comandado por A. Thiers e sediado no palácio de Versalhes e a cidade de Paris cercada e dirigida pela guarda nacional. A rebelião se espalha pelo país e há tentativas de se erguer outras comunas que são quase todas derrotadas por tropas leais à burguesia e aos proprietários rurais.

No dia 26 de março de 1871 são eleitos representantes e dois dias depois é proclamada a Comuna de Paris. Era expressão da consciência coletiva do operariado parisiense, do amadurecimento crescente de instituições e organismos políticos operários já existentes como sindicatos, partidos e conselhos operários do século XIX. Pode-se afirmar que o movimento histórico que dera origem aos primeiros sindicatos e partidos operários paralelamente à Revolução Industrial, ganhou impulso com a onda revolucionária internacional de 1848, concentrou-se, ainda que com limites e muitas dificuldades, na ação revolucionária de 1871.

A Comuna de Paris nos seus pouco mais de dois meses de governo se levantou como uma de suas preocupações centrais a necessidade de criação de novas instituições políticas baseadas na democracia direta e na soberania das massas, constituindo uma nova perspectiva de governo democrático que iluminará as lutas operárias e populares do século XX. A Comuna desenvolveu o princípio republicano da gestão municipal e o mandato revogável dos representantes do povo. Todos foram eleitos por sufrágio universal direto, com mandato responsável perante seus eleitores e revogável a qualquer momento. Ela se dedicou com prioridade aos problemas cotidianos do povo, criou normas e iniciativas ligadas a defesa dos trabalhadores e à produção. Tornou-se uma instituição que executava e legislava ao mesmo tempo como governo direto do povo trabalhador. Foi uma experiência inédita na história.

As primeiras medidas da Comuna
As medidas políticas e econômicas tomadas pela Comuna eram demonstração concreta de para quem se governava: foi estabelecido um salário máximo para os membros da Comuna com a proibição de acúmulo de cargos. Foi abolido o exército permanente e substituído por milícias populares, ou seja, o povo armado como coletivo. No dia 2 de abril foi decretada a separação entre igreja e estado, com a eliminação de qualquer símbolo religioso das repartições públicas e a nacionalização dos bens das igrejas. A igreja era uma poderosa instituição a serviço dos privilegiados e grandes proprietários. A guilhotina é queimada em praça pública no dia 6 de abril. As fábricas abandonadas pelos patrões passam a ser assumidas por conselhos de operários e a jornada de trabalho é limitada a um máximo de 10 horas. No dia 30 de abril as chamadas “casas de penhora” que exploravam os trabalhadores com empréstimos abusivos são fechadas. O pagamento de alugueis é suspenso.

Uma nova escola para um homem novo
Aqueles homens com pouca instrução começaram a colocar em prática uma nova concepção de educação. Na educação, as elaborações da Comuna mantêm toda a atualidade. A Comuna de Paris de 1871 se propôs a aplicar um novo modelo pedagógico e educativo para unir o trabalho produtivo e a instrução, rompendo com concepção abstrata e idealista da educação burguesa. Uma reforma no ensino começa a ser debatida, propondo pela primeira vez o ensino público, gratuito, laico e universal. Os princípios de uma escola socialista são enunciados pela Circular Vaillant, de 17 de maio de 1871, e que propunha uma educação integral que ligasse a cultura física e intelectual.

A Comuna propôs a formação de “homens completos” através da unidade do trabalho produtivo e do estudo. Se previa a criação de escolas de um novo tipo, nas quais houvesse uma ampla preparação profissional e uma forte instrução científica. Também no âmbito da educação foi dada uma atenção especial à proposta de criação dos “abrigos” onde as crianças teriam uma educação completa.

Um decreto do dia 2 de abril de 1871 tirava qualquer finalidade religiosa da educação e proibia a instrução religiosa nas escolas. Como lembrou Lissagaray: “os padres são os mais poderosos agentes de propaganda. Foram de fato os mais poderosos instigadores contra a Comuna, os mais implacáveis na repressão”.

Ao lado desta defesa de uma educação laica afirmava-se que “o filho do camponês” devia receber “a mesma instrução que o filho do rico, e além disso, gratuitamente”. Reconhecia-se pela primeira vez o direito de educação às mulheres em igualdade de condições dos homens.

De fato, a Comuna buscava colocar em prática pela primeira vez algumas das ideias formuladas por Marx e Engels. Nas “Instruções aos delegados” de 1866-1867 e na depois na “Crítica ao programa de Gotha” de 1875. Ou seja, em relação à questão da educação uma perspectiva pedagógica da classe operária estava em elaboração. Para Marx, a sociedade socialista deve levar à formação de um homem novo que supere a divisão entre trabalho manual e intelectual mantida sob o capitalismo, permitindo a formação de uma personalidade completa com o fim da alienação do trabalho – a escola politécnica – unificando o trabalho produtivo e a instrução.

A burguesia contra a Comuna
O conjunto de medidas da Comuna desafiavam o núcleo da burguesia francesa, que decidira romper qualquer negociação e pediu que a Prússia devolvesse parte dos soldados feitos prisioneiros para ajudar a esmagar o novo governo operário que surgia. No final de abril e começo de maio a ofensiva das tropas burguesas consegue romper as defesas da Comuna com apoio das tropas prussianas. No dia 20 de maio essas tropas conseguem penetrar no coração de Paris e apenas os bairros operários resistem na luta em barricadas que bloqueiam ruas e avenidas. No dia 25 de maio ocorria a última reunião da Comuna. No dia 29 de maio caiu a última barricada revolucionária. Eram mais de 4 mil mortos. Nas semanas seguintes a burguesia fuzila mais de 10 mil trabalhadores. As prisões lotam com mais de 26 mil presos comunardos. Milhares são deportados ou sofrem penas diversas. A burguesia tentou em vão enterrar para sempre a experiência do primeiro governo operário da História.

Mas a Comuna de Paris sobreviveu e inaugurou um caminho comum que provêm da essência da luta de classes sob o capitalismo. Os conselhos operários surgindo a partir das reivindicações concretas das massas e das suas tradições de luta. A classe operária, pelo seu lugar no processo de produção capitalista, que segue necessitando da extração da mais-valia para continuar existindo, ocupa o lugar central nas lutas revolucionárias. Nos grandes processos revolucionários dos séculos 20 e 21 em que surgiram momentos de dualidade de poderes, entre os quais podemos mencionar sem tentar esgotar uma longa lista as revoluções russas de 1905 e 1917, a espanhola de 1936, a revolução chinesa de 1949, a revolução boliviana de 1952, a revolução cubana de 1959, a Comuna de La Paz de 1971, a revolução portuguesa de 1974 etc, a democracia direta, os conselhos como órgãos de poder das massas, sob diferentes e variadas formas locais, não deixaram de germinar. É a linha de continuidade histórica da Comuna, da democracia operária.

Marx e a Comuna
A maioria dos militantes operários da Comuna eram blanquistas, dirigidos por Louis Blanqui, e que defendiam uma ação conspirativa de luta política contra o capitalismo. Uma minoria estava ligada a AIT (Associação Internacional dos Trabalhadores) conhecida depois como 1ª Internacional, mas dirigidos principalmente pelo líder anarquista Pierre Proudhon, que defendia um socialismo dos pequenos camponeses e artesãos. Marx e Engels, vivendo exilados na Inglaterra, tiveram pouca influência direta sobre a Comuna ou condições de orientar os militantes mais de perto.

O balanço político da Comuna fortaleceu a corrente marxista nos anos seguintes. E uma batalha política acabou por fazer praticamente desaparecerem ou perderem muita força as correntes políticas de Blanqui e Proudhon no movimento operário. O informe escrito por Marx para a AIT sobre a Comuna de Paris – o livro A Guerra Civil na França – demarcou na época a base política do agrupamento dos marxistas no movimento operário. Marx definiu a Comuna como a experiência mais acabada do novo regime a ser criado para substituir o capitalismo e sua suposta democracia, lhe permitindo formular o conceito de ditadura do proletariado como ampliação da democracia. Frente à ditadura da burguesia, minoria que se utiliza do estado para controlar a maioria e impor seu domínio, a ditadura do proletariado é o domínio político, econômico e social da maioria, uma ampliação da democracia em todos os seus sentidos e que instaura uma nova soberania política. A Comuna mostrou esse caminho.

Da Comuna de Paris à Revolução Russa de 1917
A Comuna de Paris não apenas forjou o primeiro governo operário da História, como serviu de exemplo para construção de futuros órgãos de democracia operária opostos à democracia burguesa. A criação dos sovietes, primeiro na revolução russa de 1905 e depois a partir de fevereiro de 1917, se deu na continuidade da busca pela auto-organização das massas populares em luta. Através dos sovietes (palavra russa para conselhos), a revolução levou a classe operária, aliada aos camponeses pobres e soldados (“camponeses“ de uniforme”, como dizia Trotsky), a tomar o poder, expropriar a burguesia e a nobreza semi-feudal de suas propriedades e iniciar a construção de um estado operário, baseado na propriedade coletiva dos grandes meios de produção.

O surgimento dos sovietes em 1905 se deu numa Rússia em que o movimento operário nascente enfrentava dura repressão policial e a proibição da formação de sindicatos e partidos (obrigados a serem clandestinos), logo após a derrota russa na guerra com o Japão em 1904. Contraditoriamente, essa situação forçou a busca de alternativas para a organização direta das massas em luta, abrindo caminho para os primeiros sovietes, cujos embriões foram comitês de fábricas surgidos na luta por reivindicações e contra a repressão.

O primeiro soviete de São Petersburgo foi formado por delegados eleitos nas fábricas para organizar uma greve. Mas logo transformou-se em centro do movimento operário revolucionário. Evoluiu de comitê de greve a “parlamento operário”, tomando posição sobre todas as questões da vida cotidiana. Os delegados, também chamados de deputados, tinham mandatos revogáveis a qualquer momento pela base que os havia elegido e o soviete se apresentava como órgão de unidade de toda a classe, acima das divisões de caráter político, sindical ou regional.

Everaldo Andrade

Cronologia:
-1870 – guerra entre França e Prússia
-1 e 2 de setembro – derrota da França com prisão de Napoleão III
-4 de setembro – declarada república em Paris
-31 de outubro – sublevação dos trabalhadores de Paris

-1871 – 28 de janeiro – burguesia de Paris capitula, batalhões da guarda nacional se negam a entregar as armas e resistem
-26 fevereiro – governo burguês de Thiers assina tratado com prussianos
-8 de março – fracassa tentativa de desarmar guarda nacional
-26 de março – eleita a Comuna de Paris
-30 de março – abolição do exército permanente
-8 de abril – decretada separação entre Igrejas e Estado
-23 de abril – Thiers rompe negociações e pede ajuda aos prussianos para esmagar a Comuna
-30 de abril – fechamento das casa de penhoras que extorquiam os trabalhadores
-17 de maio – circular Vaillat pelo ensino público, gratuito, laico e universal
-21 de maio – tropas burguesas conseguem entram em Paris
-25 de maio – última reunião da Comunardos
-29 de maio – queda da última barricada revolucionária

Leituras recomendadas:
– Karl Marx – A revolução antes da revolução, volumes 1 e 2, editora Expressão popular. (inclui os livros Guerra civil na França, 18 Brumário de Luis Bonaparte e As lutas de classes na França).
– Karl Marx – A guerra civil na França, editora Boitempo.
– Prosper-Olivier Lissagaray – História da Comuna de 1871, editora Ensaio

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