Aquela quarta-feira chuvosa de 8 de agosto, com vento cortante e frio de 8 a 11 graus entrou para história argentina. A mobilização das mulheres tomou Buenos Aires para exigir a aprovação do projeto que legalizava a interrupção voluntária da gravidez até a 14ª semana, com o aborto seguro e gratuito garantido como direito pelo Estado. Nem o frio, nem a chuva, nem a ofensiva da Igreja Católica arrefeceu a disposição de luta de milhares de pessoas (a maioria adolescentes e mulheres jovens) que ficaram mais de 24 horas em vigília na Praça do Congresso. Vinte e oito quadras foram totalmente ocupadas pelos lenços verdes, símbolo da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito, cujo lema é “Educação sexual para decidir, contraceptivos para não abortar, aborto legal para não morrer”. Separados por barreiras policiais, estavam os lenços celestes, com forte inclinação religiosa, portando cruzes, fetos de plástico e bandeiras argentinas.
Após quase 17 horas de sessão, o Senado rejeitou, por 38 votos x 31 e duas abstenções, o projeto de iniciativa popular, aprovado antes pela Câmara dos Deputados em 14 de junho. Uma das intervenções mais contundentes foi da senadora Beatriz Mirkin: “Pergunto a todos e pergunto a mim: Que vamos fazer amanhã? Vamos seguir penalizando a mulher quando chegar ao hospital com um aborto provocado em situação de risco?”.
Outro discurso veemente foi do senador Fernando Solanas: “Acabemos com a hipocrisia de uma classe dominante que, sabendo que as mais ricas podem acudir aos abortos seguros, condenam as mais pobres à infecção ou à morte”.
A senadora e ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner, que votou a favor do projeto, ressaltou: “Não é questão de convicções ou crenças, mas de dar respostas como legisladores a um problema que existe”. Já o líder da bancada justicialista Miguel Pichetto embasou seu voto na separação entre religião e Estado. “A religião não pode impor ao país as normas que são de natureza civil de um Estado laico”.
Com a conclusão da votação na Câmara Alta, o país continua com a lei penal de 1921, em que o aborto é permitido somente nos casos de estupro ou risco de morte da mãe. Fora isso, gestante e médico que fizerem aborto poderão ficar até quatro anos presos. O projeto deverá ser reapresentado em 2020, após as eleições gerais na Argentina.
Maré verde mobilizou milhões de pessoas
Apesar da derrota legislativa, as organizações que compõem a Campanha Nacional conseguiram, após 13 anos de luta, pautar o debate em todo o país. E ganharam um forte impulso de renovação: o engajamento de adolescentes que se organizaram nas escolas e nas ruas pelo direito de decidir sobre seus corpos.
Nos dias que se seguiram à votação, podia-se ver nas ruas, no transporte público, em todos os lugares, mulheres com seus lenços verdes amarrados às bolsas, no pescoço, no cabelo. “Não há ganhadores quando as gestantes de nosso território seguem abortando na clandestinidade”, reafirmaram as mulheres na carta de balanço da Campanha.
Duas semanas depois da votação, centenas de argentinos fizeram uma renúncia coletiva ao catolicismo e um apelo em favor do Estado laico. “Tirem seus rosários dos nossos úteros” e “Não em nosso nome” foram algumas das palavras de ordem contra o posicionamento da Igreja Católica.
Em outubro, as organizações voltarão a se reunir no Encontro Nacional de Mulheres em Chubut para debater e definir estratégias, inclusive sobre a eleição de 2019. Uma coisa é certa: vão seguir lutando até que o aborto legal, seguro e gratuito seja lei.
Renina Valejo, de Buenos Aires
No Brasil, retomar a luta pela Legalização!
No mesmo 8 de agosto, cerca de 5 mil jovens e mulheres se manifestaram em São Paulo, em frente ao consulado argentino. Naquela semana, o Supremo Tribunal Federal havia realizado duas audiências públicas sobre a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), movida pelo PSOL, para que abortos até a 12a semana não sejam enquadrados no Código Penal por ferir direitos fundamentais das mulheres.
Chama atenção o grande número de convidados representando religiões numa audiência como essa, e é notória a oposição da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil. Para a professora Maria José Rosado Nunes, do movimento Católicas pelo Direito de Decidir, “a legalização do aborto é uma questão de justiça social e racial, mas também uma questão democrática em um Estado que deve ser laico”.
4.455 mulheres mortas em 16 anos
Estes números são baseados apenas nos dados oficiais, segundo o Ministério da Saúde. A comparação com Portugal fala por si: o país legalizou o aborto em 2007 e desde 2011 não houve nenhuma morte em decorrência do procedimento. Mortes que também poderiam ser evitadas no Brasil. Um exemplo cruel: em maio, Ingriane Barbosa, de 30 anos, morreu após fazer um aborto em casa, em Petrópolis (RJ). Em um ato de desespero, ela inseriu um talo de mamona no útero e morreu com infecção generalizada. A criminalização do aborto matou Ingriane e deixou órfãos seus três filhos de 9, 7 e 2 anos.
Legalizar o aborto é questão urgente
A discussão sobre a descriminalização e a legalização diz respeito à vida de milhões de mulheres. A Pesquisa Nacional de Aborto de 2016 mostra que 1 em cada 5 mulheres aos 40 anos já abortou. Questão urgente, essa reivindicação é mais uma que dificilmente consegue transpor a barreira do Congresso Nacional como ele é hoje, com baixa representação das mulheres trabalhadoras e das camadas populares, sob domínio de interesses como os da bancada da Bíblia.
É uma luta que se combina com a necessária saída política para o país, num momento em que os direitos das mulheres são atacados abertamente: é fundamental que Lula seja eleito presidente e chame uma Constituinte para mudar as instituições políticas. Mas, desde já, as candidaturas do PT ao Congresso precisam assumir seu compromisso com as mulheres trabalhadoras, negras e pobres do nosso país.
Priscilla Chandretti