A ONU vai parar a guerra? Julgue por si mesmo

Uma organização das nações pretensamente unidas

Após a “der des ders” (expressão cunhada após a Primeira Guerra Mundial que significa “a última das últimas”), em 1919, foi criada a Sociedade das Nações ou Liga das Nações, para garantir a paz; em 1945, os “vencedores” (Estados Unidos, Reino Unido, URSS, França, China) criaram uma organização que, desta vez, deveria manter a paz eterna. Os povos estavam fartos das mentiras dos senhores da guerra.

Em 1919, a criação da Liga das Nações foi um dos pontos do Tratado de Versalhes, particularmente defendido pelo presidente dos Estados Unidos, Wilson. Mas ele foi derrotado nas eleições e o tratado não foi ratificado pelos EUA. A Liga das Nações foi um local para encontros e boas maneiras em Genebra, entre os governos europeus que buscavam defender com unhas e dentes os seus interesses, e em particular a dominação colonial.

Enquanto Wilson se apresentava em sua turnê europeia como o campeão do direito dos povos à autodeterminação, suas tropas ocupavam o Haiti, massacravam os camponeses e aumentavam a pilhagem do país pelas empresas estadunidenses, que alijaram os bancos franceses. Nos próprios Estados Unidos, uma onda de linchamentos e pogroms contra os negros chegava ao auge. No verão sangrento de 1919, centenas de negros – homens, mulheres e crianças – foram queimados vivos, linchados, arrastados pelas ruas, mortos a tiros, espancados até a morte por multidões brancas, suas casas incendiadas, enquanto a polícia assistia de longe e os júris brancos condenavam negros inocentes.

Lênin chamou a Liga das Nações de “covil de bandidos”, pois sob a retórica pacifista hipócrita se escondia a repressão feroz das revoltas nos impérios coloniais, o futuro conflito na Europa sobre a partilha do mercado mundial e a guerra total para destruir o primeiro governo operário nascido da revolução de Outubro de 1917. A marcha para a Segunda Guerra Mundial selou o fim da Liga das Nações.

Hegemonia dos Estados Unidos
Diante do fracasso da Liga das Nações, a Organização das Nações Unidas (ONU) foi concebida de maneira um pouco diferente. Os Estados Unidos se beneficiaram de uma hegemonia incontestada. Os acordos de Yalta e Potsdam (entre Stalin, Roosevelt e Churchill) haviam definido as zonas de influência das grandes potências. Os impérios coloniais da França e da Inglaterra foram mantidos, sob a supervisão dos Estados Unidos.

Uma Assembleia Geral da ONU reuniu-se em Nova York e emitiu resoluções (52 países no início, 193 hoje). Foi adotada uma Carta Universal dos Direitos Humanos. O conselho de tomada de decisões é composto pelos cinco “grandes”, os membros do Conselho de Segurança, os “vencedores”. Cada um dos cinco tem o direito de veto para se opor a uma decisão. Na prática, este mecanismo deveria levar a uma busca de consenso, mas foi rapidamente varrido. Já em 1949, a revolução chinesa abalou as previsões, e o imperialismo estadunidense perdeu o controle do governo de Pequim. Foi somente em 26 de outubro de 1971 que o governo dos EUA aceitaram a entrada da China Popular na ONU. Da mesma forma, as guerras de independência nos impérios britânico, francês, holandês, belga e português romperam esse sistema.

Os Estados Unidos usam a ONU como avalista, se possível, de suas intervenções e as fazem sem ela quando o Conselho de Segurança se opõe, como no caso da Guerra no Iraque em 2003.

Um conjunto de mecanismos e regras
A apresentação do papel da ONU é muitas vezes desvinculada dos outros mecanismos que a acompanham, a fim de melhor ocultar sua natureza. Os Estados que entram na ONU também são organizados no FMI e no Banco Mundial (BM). O complemento econômico (FMI, BM) tem sua importância.

Conscientes de que a grande crise de 1929 havia provocado o caos na Europa, de onde emergiu o fascismo, os governos dos EUA prometeram evitar uma repetição dessa situação. O FMI é um banco que recebe cotizações dos Estados membros, de acordo com sua importância econômica, e cada um tem um direito de voto proporcional. Mas só os Estados Unidos têm poder de veto. Portanto, nenhuma decisão pode ser tomada sem a sua aprovação.

Os Acordos de Bretton Woods de 1944 estabeleceram o dólar como moeda mundial, e sua gestão é realizada internamente pelo banco central dos EUA (Federal Reserve) e externamente pelo FMI. O FMI empresta a um país em dificuldade, mas se a primeira parcela, equivalente à cotização, é sem condições, as parcelas seguintes do empréstimo já serão feitas sob condições cada vez mais duras.

Quando um país quer tomar empréstimos em dólares, os bancos exigem que ele tenha um acordo com o FMI. É por isso que os planos de ajuste do FMI são listas de medidas de austeridade e privatização altamente restritivas que têm mantido as relações coloniais ou semicoloniais, podendo o estrangulamento econômico substituir ou complementar a intervenção militar.

O Banco Mundial tem o mesmo caráter, mas empresta a prazos mais longos para projetos de investimento; na prática, um projeto será financiado por bancos e multinacionais se o BM garantir parte dos custos.

A dominação imperialista não é mais a administração colonial direta, abandonada após as guerras de independência, mas um conjunto de restrições financeiras e econômicas, por vezes apoiadas pela ameaça ou pela intervenção militar.

As alianças militares Otan, Otase (sudeste asiático), Aukus (Austrália, Reino Unido, EUA), são lideradas por generais estadunidenses e apresentadas como defensivas. Assim, uma fachada igualitária – cada Estado tem um voto na Assembleia – esconde uma dominação inconteste do imperialismo dos Estados Unidos.

Tratados comerciais mundiais, como o Gatt (acordo geral sobre tarifas) e depois a OMC, Organização Mundial do Comério, estabeleceram o livre comércio para facilitar os investimentos e os lucros das empresas multinacionais, principalmente dos EUA. Áreas específicas de livre comércio, como a União Europeia e o NAFTA (América do Norte), podem completar o sistema, desde que respeitem as exigências contidas nos tratados de livre comércio.

A ONU criou ao longo do tempo agências de cooperação, OMS (saúde), Unesco (cultura) etc., mas seu financiamento depende da boa vontade dos EUA, e quem paga decide. Todo o pessoal da ONU é sujeito a uma investigação minuciosa por parte dos serviços de informação estadunidenses, e tome cuidado se em sua juventude você participou de alguma manifestação contra a guerra do Vietnã.

Reforma e dificuldades da ordem mundial
Em várias ocasiões, desde a queda do Muro de Berlim, falou-se em reformar a ONU e o FMI. De fato, parece um pouco curioso que uma pequena potência como a França pese mais que a Índia, o Brasil, o Japão ou a Alemanha, exceto pelo galo gaulês (símbolo da França – NdT). Da mesma forma, o FMI se parece muito com um braço armado dos banqueiros estadunidenses. Mas todas as tentativas foram rejeitadas pelos EUA, que, pelo contrário, num primeiro momento após a queda da URSS, procuraram liderar o mundo de forma mais direta.

A Guerra no Iraque foi um exemplo particularmente claro dos métodos do imperialismo. Primeiro, o governo dos Estados Unidos fez aprovar a resolução 1441 da ONU em novembro de 2002: “O Conselho de Segurança decide que o Iraque esteve e continua em violação flagrante de suas obrigações em virtude das resoluções pertinentes”. Em seguida, desencadeou uma campanha midiática global sobre as supostas provas de que o Iraque possuía “armas de destruição em massa”.

Em um documentário do canal França 5, “Iraque, destruição de uma nação”, vemos o testemunho de Bruno Le Maire, na época membro do gabinete do ministro das Relações Exteriores, Dominique de Villepin. Ele diz que os EUA haviam enviado um documento para provar a posse de armas de destruição em massa pelo Iraque e que o Ministério das Relações Exteriores francês havia estabelecido que se tratava de uma falsificação (1). Podemos ver que se o presidente Chirac não participou da guerra, o governo francês não revelou esta falsificação grosseira, que poderia ter tido um peso importante.

O general Colin Powell, encarregado de defender a tese dos Estados Unidos na ONU, reconheceu a mentira. Em março de 2013, Em uma entrevista ao L’Obs (2), Colin Powell comentou: “Desde que descobri que uma grande quantidade de informações que me foram fornecidas eram inexatas, tenho me perguntado: o que eu deveria ter feito para evitar isso?”. Cem mil mortes de civis em poucas semanas, anos de horror e sofrimento, mas a França não forneceu as provas que tinha, simplesmente porque a França é parte da Otan e estava amarrada por este tratado. Por sua vez, a 4ª Internacional apoiou a mobilização contra a guerra e, em janeiro de 2003, criou um Comitê Internacional para combater a guerra, com ou sem o acordo da ONU.

A situação da ONU hoje é marcada pelas contingências da política estadunidense, que mantém uma fachada de “cooperação”, enquanto suas decisões são caracterizadas pela brutalidade da economia de guerra e pelos solavancos de sua crise interna. É certo que esta governança global através da ONU está em crise, e a votação sobre a guerra na Ucrânia o demonstrou, já que China, África do Sul, Índia, no total 32 países se abstiveram, recusando um alinhamento completo com o governo dos Estados Unidos.

Evidentemente, a ONU faz declarações sobre direitos humanos com a mão esquerda e o FMI faz negócios com a mão direita, mas é a Otan, o braço armado, quem conduz a dança…

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(1) Bruno Le Maire afirma: “O presidente americano mentiu, o vice-presidente, Dick Cheney, mentiu, a CIA forneceu provas que não tinha. E, no final, cada um deles contribuiu com sua pedra para a construção de um edifício que é uma gigantesca mentira. E em janeiro de 2003, esta mentira tornou-se a verdade da maior potência do planeta e nosso principal aliado: os Estados Unidos”.

(2) “Como a CIA me enganou”, entrevista exclusiva com Colin Powell, por Vincent Jauvert, L’Obs, 1 de março de 2013.

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Algumas palavras de Rosa Luxemburgo…
“A teoria burguesa liberal contempla apenas o aspecto único da competição pacífica, as maravilhas da técnica e o puro comércio de mercadorias… Na realidade, a violência política é também o instrumento e o veículo do processo econômico… O capital não está apenas em seu nascimento ‘pingando com sangue e lama por todos os poros’, mas em toda sua marcha pelo mundo; é assim que prepara, em convulsões cada vez mais violentas, sua própria derrocada” (A Acumulação do Capital, 1912 – existe uma edição brasileira da Editora Zahar).

… e de Leon Trotsky
“Na questão da guerra, mais do que em qualquer outra, a burguesia e seus agentes enganam o povo através de abstrações, fórmulas gerais, frases patéticas (…) O pacifismo e o patriotismo burgueses são mentiras completas. No pacifismo e mesmo no patriotismo dos oprimidos, há um germe progressista que é preciso saber compreender para daí tirar as necessárias conclusões revolucionárias (…). Partindo destas considerações, a 4ª Internacional apoia qualquer reivindicação, mesmo parcial, que for capaz de conduzir as massas, ainda que debilmente, à política ativa, despertar sua crítica e reforçar seu controle sobre as maquinações da burguesia (…). É preciso lançar luz, sob todos os ângulos, no problema da guerra, sempre levando em conta o aspecto com que ele se apresenta às massas num dado momento” (Programa de Transição, 1938, na edição da editora Nova Palavra, páginas 112 a 114).

Informações Operarias 749, Paris, 23 de março de 2023
Tradução Adaias Muniz

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