Laércio Barbosa •
Apresentação
Passaaram dezessete anos após a assinatura do Tratado de Assunção, que deu origem ao Mercado Comum do Sul – o Mercosul. Desde 1991 é certo que muita coisa mudou no mundo e no nosso continente.
Mas, nesse período, no movimento operário, pouco tem se discutido a respeito das conseqüências, os desdobramentos e, principalmente, para onde está sendo conduzindo essas inúmeras reuniões, cúpulas e conferências que tratam do Mercosul. Quais as reais atribuições e finalidades de um tão grande número de comissões, grupos, etc? E quais serão as conseqüências práticas para os trabalhadores e os povos de todo esse emaranhado de decisões, resoluções e diretrizes nascidas no quadro no Mercosul?
Ouvimos de alguns que o Mercosul e outros (Tratados de Livre-Comércio do tipo) seria a via para realizar a integração dos povos. Esses pintam o Mercosul com cores róseas e chegam a chamá-lo de “um pólo de resistência antiimperialista”.
Mas também ouvimos, e nos soa muito estranho, da boca do sanguinário do Iraque, o presidente norte-americano George W. Bush que “o Mercosul é um instrumento de prosperidade, estabilidade e democracia na região”.
Militantes revolucionários que somos, não temos interesses distintos dos das massas exploradas e oprimidas. Estamos sempre prontos a apoiar qualquer iniciativa no terreno da defesa das massas e de suas organizações contra o imperialismo.
Por isso nos fizemos a pergunta: será o Mercosul um instrumento de defesa contra a ofensiva do Imperialismo e das multinacionais?
As nossas observações e conclusões estão expostas nessa pequena publicação. Através dela pretendemos contribuir para essa tão necessária discussão.
E contribuiremos nos valendo do nosso método: partindo dos fatos.
Estudamos as medidas tomadas no quadro do Mercosul, buscamos entender quais foram as suas conseqüências para os trabalhadores, para a economia das regiões e dos países.Verificamos também as experiências já vividas pelos trabalhadores de outros países e regiões com os chamados Tratados de Livre-Comércio e tiramos nossas conclusões.
Os leitores poderão observar que dedicamos especial atenção para entender o que acontece na União Européia, que tem servido de modelo político na implantação do Mercosul.
Desejamos uma boa leitura.
Porto Alegre, julho de 2008
De onde vem o Mercosul?
O Mercado Comum do Sul – MERCOSUL é um Tratado de Livre Comércio (TLC) assinado inicialmente pelo Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. Nasceu com o nome de Tratado de Assunção, em 1991, e pretendia ter aplicação completa em 1994. Seu artigo nº1 fixa seu objetivo:
“A livre circulação de bens serviços e fatores produtivos entre os países, através, entre outros, da eliminação dos direitos alfandegários restrições não tarifárias à circulação de mercado de qualquer outra medida de efeito equivalente” (Tratado de Assunção,26/03/1991)
Praticamente junto com o Mercosul, no quadro da chamada “iniciativas para as Américas” foi também assinado pelos quatro do Mercosul mais os EUA o chamado Acordo 4+1, prevendo a abertura desses mercados para os Estados Unidos.
Em 1991 no quadro do Mercosul são constituídos seus primeiros organismos. Foram criados: o Conselho de Mercado Comum (CMC), composto pelos ministros das relações exteriores e da economia dos quatro países e um organismo do tipo executivo, o Grupo do Mercado Comum (GMC) composto pelos representantes desses ministros e dos bancos centrais de cada país.
Em 1994 o Protocolo de Ouro Preto vem dar personalidade jurídica ao Mercosul frente aos organismos internacionais e, acrescenta ao CMC e ao GMC duas comissões (Comércio e Parlamentar Conjunta), o Fórum Consultivo Econômico e Social e o Secretariado Administrativo. O Protocolo também atribuiu à CMC e ao GMC e à Comissão de Comércio o caráter de
“órgãos intergovernamentais com poderes de decisão. Assim, de maneira coordenada, esses organismos passam a ter poderes: o CMC…de Formular políticas e promover as ações necessárias.. o GMC Tomar as medidas necessárias ao cumprimento das Decisões adotadas …e o CCM”.
Velar pela aplicação dos instrumentos comuns de política comercial (trechos extraídos do Protocolo de Ouro Preto – 17/12/1994)
Outros artigos do Tratado de Ouro Preto descrevem a transposição do direito nacional para o princípio da subsidiariedade, ou seja, as instituições supranacionais decidem e os governos aplicam pois: “As Diretrizes serão obrigatórias para os Estados Partes.”(Idem)
As relações comerciais do Mercosul
Os primeiros anos da existência do Mercosul foram também os “anos das privatizações” no Brasil, no Uruguai e na Argentina. A Argentina, pioneira nessa política viu sua economia desmoronar alguns anos depois. Foram também os primeiros anos de uma ofensiva brutal para desregulamentar o trabalho. Ou seja, foi um período de “preparação” desses países para a derrubada das suas barreiras comerciais.
Desde o surgimento do Mercosul, os EUA permanecem sendo os principais beneficiados nas relações comerciais com o Bloco. Entre os anos de 1990 e 1996 suas exportações para os países do Mercosul quase triplicaram, saltando de U$ 7 para perto de U$ 20 bilhões por ano, enquanto as exportações dos países do Mercosul para os EUA, no mesmo período, elevavam-se em apenas 13% – de U$ 10 para U$ 11,3 bilhões.(fonte: Mercosul, Nafta, Tratados de Livre Comércio – Origens Significado e Conseqüências – Editora Cia. de Informação, julho de 2001)
Nos dias de hoje mais de 70% das transações comerciais dos países do Mercosul são realizadas por multinacionais, que se valem das suas vantagens tarifárias para reduzir custos e, claro, aumentar consideravelmente seus lucros (Idem – veja abaixo o exemplo da indústria de alimentação na cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil).
O Mercosul e a União Européia
Quase todas as decisões importantes tomadas no quadro do Mercosul têm por referência a União Européia. Há pretensões de transformá-lo do que é hoje, um Tratado de Livre-Comércio (um acordo entre países circunscrito à esfera comercial), para um Mercado Comum, o que significaria incluir tarifas de importação e exportação comum dentro do bloco, livre circulação de mercadorias, capitais, serviços e pessoas, invadindo assim os domínios das legislações nacionais dos países membros. Há a pretensão de atribuir poderes a um parlamento supranacional, e ainda de constituir uma moeda única, tal qual o bloco europeu.
Mas o que tem sido a União Européia para os países do velho continente?
Os monopólios de Estado estão sendo liquidados em todos os países europeus em favor de multinacionais. E não se trata de uma “resistência” da Europa face ao poder dos EUA, pois boa parte dessas multis européias já são, de fato, controladas por fundos de pensão norte-americanos.
Por conta da UE está em curso um acelerado processo de relocalização de empresas em direção ao Leste, muitas privatizações, e a destruição de conquistas históricas nos sistemas de ensino e saúde. As leis de proteção social e de aposentadoria estão sendo igualmente questionadas em todos os países.
Não foi por outra razão que a chamada “Constituição Européia” foi rechaçada pelo povo francês em maio de 2005 e holandês no mês seguinte. Depois dessas derrotas nenhuma nova consulta ocorreu. O que não significa que os ditames da UE não seguiram sendo aplicados. Ao contrário, as decisões passam a ser tomada às costas do povo, em conferências de Cúpula. Não é sem motivos que a UE é conhecida como uma gigante econômica e uma anã política.
A política que alimenta a existência da UE, não recua. Com “constituição européia” enterrada, dois anos depois ela renasce com novo nome e pequenas mudanças. Agora chama-se Tratado de Lisboa.
O Tratado de Lisboa foi assinado pelos Chefes de Estado e de Governo dos 27 Estados-Membros da União Européia, na capital portuguesa em 13 de Dezembro de 2007. Seu objetivo é substituir a falecida “constituição européia” e dotar a UE dos meios jurídicos para realizar os mesmo objetivos, mas com uma importante diferença: o tratado não precisa obrigatoriamente ser submetido a referendo popular. Na maioria dos países basta que a adesão seja referendada pelos parlamentos nacionais. Assim, de um só golpe, foi retirado o direito do povo de opinar a respeito de medidas, regras e legislações a impostas através da UE que interferiram pesadamente em suas vidas.
Coube ao povo irlandês falar em nome de toda a Europa. Na Irlanda, por um impedimento constitucional, o tratado teve que ser submetido à um referendo. E foi assim que em 12 de junho último, contra todos os grandes partidos da Irlanda, contra o Vaticano muito influente no país, e em meio a chantagens e ameaça de todo tipo, o povo irlandês rechaçou o Tratado de Lisboa por 53,4% dos votos, colocando de volta sobre a mesa dos dirigentes da UE o mesmo problema: como legitimar as duras mudanças propostas?
Mas a política que empurra à aplicação da UE não parou. A União Européia dá poderes para que um Tribunal Europeu legisle sobre os conflitos a partir de uma invenção jurídica denominada “direito comunitário”. É ele que autoriza
“as administrações e os juízes nacionais a aplicarem plenamente o direito comunitário no interior das respectivas esferas de competência e de protegerem os direitos conferidos por este aos cidadãos, deixando de aplicar qualquer disposição contrária do direito nacional, seja ela anterior ou posterior à disposição comunitária” (do site do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, Uma Ordem Jurídica Comunitária – grifo nosso).
Vejamos então algumas de suas conseqüências:
Algumas decisões do Tribunal Europeu regidas pela “ordem comunitária”:
Os Casos Laval, Viking e Ruffert. Os mineiros romenos.
• “…Em 18 de dezembro de 2008, o Tribunal Europeu de Justiça declarou ilegal o bloqueio organizado em 2004 pelos sindicatos suecos contra a empresa da Letônia, Laval, instalada na Suécia, que se negava a respeitar acordos coletivos suecos que beneficiariam seus empregados letões. Assim, o Tribunal Europeu de Justiça condenou os sindicatos suecos por ‘restrição à livre prestação de serviços’, em completa contradição a lei sueca que permite aos sindicatos defender seus acordos coletivos, inclusive através da greve.
• Em 11 de dezembro de 2008, a Corte de Justiça Européia considerou equivocada a posição do sindicato dos marinheiros finlandeses que impediram a Empresa Viking de matricular seus barcos na Estônia para poder empregar pessoal estoniano para não cumprir as convenções coletivas finlandesas.
• Em 3 de abril de 2008, o Tribunal Europeu de Justiça condenou uma lei da região alemã da Baixa Saxônia, que estipula que os contratos coletivos só poderiam ser assinados com empresas que respeitassem o salário mínimo definido nos acordos coletivos da região. O Tribunal deu razão à empresa polaca Ruffert, que para que pagasse aos seus empregados um salário que representava 46,5% do salário mínimo regional. O tribunal considerou a lei da região da Baixa Saxônia “contrária a liberdade de circulação…”.
• “Por recomendação da UE, há oito anos na Romênia encontram-se presos três dirigentes sindicais mineiros. Seu crime? Respeitar o seu mandato sindical e dirigirem protestos de trabalhadores em 1999” (retiradas do boletim Infointer nº 288, Boletim do Acordo Internacional dos Trabalhadores)
E qual seria a fórmula jurídica pensada para o Mercosul?
Vejamos o que dizem Alfredo Lupatelli Jr., consultor empresarial e coordenador jurídico da revista Direito Internacional e Mercosul – Argentina,. Jurista da burguesia que explica suas intenções no artigo conjunto publicado em maio de 2002 “Mercosul – a atuação empresarial e os efeitos da globalização” ( extraído do site da Teleley – grifos nossos):
“Na União Européia, as normas relativas à atividade econômica ultrapassaram a fronteira do Direito Nacional, instalando-se no âmbito comunitário. A União Européia inovou o cenário jurídico internacional ao abandonar o arcaico conceito de soberania. Instituiu o direito comunitário, estabelecendo um quadro jurídico único. O ordenamento jurídico comunitário é constituído de normas que ultrapassam o direito nacional, configurando total primazia do direito comunitário sobre o nacional, sem extinção do ordenamento interno. Tais normais passam a estar sujeitas ao Tribunal de Justiça Supranacional, assegurando a uniformidade de aplicação e implementação. No modelo comunitário, a relação soberana se assenta em bases verticais, ou seja, os Estados têm sua soberania limitada e esse partilhamento é que assegura o processo de integração e a ordem jurídica internacional comunitária. O direito comunitário nasce nesse modelo, vinculando os Estados-membros e as pessoas físicas ou jurídicas diretamente no âmbito interno de cada Estado, como conseqüência da primazia do direito comunitário.
O governo brasileiro vem insistindo na tese de que não são necessários outros órgãos além daqueles existentes atualmente. Nossos parceiros mercossulenhos argumentam, com razão, que a falta de estrutura comunitária, principalmente de uma Corte Comunitária, está dissuadindo e desestimulando investidores estrangeiros, o que afeta sensivelmente a competitividade do Mercosul no mercado internacional.
No Mercosul, as constituições do Paraguai e da Argentina admitem a ordem jurídica supranacional, ao contrário de Brasil e Uruguai. Nosso maior entrave é o artigo 4 da Constituição Federal de 1988. Em 1994 o então Deputado Nelson Jobim ( ) propôs Emenda Constitucional que viabilizava a vigência imediata de diretivas e decisões tomadas por organismos internacionais e que fosse prevista a hipótese de essas decisões serem tomadas por órgãos supranacionais. Essa proposta de emenda foi derrotada pelo Congresso na concepção do isolamento econômico brasileiro e no conceito ultrapassado de soberania”(!).
Mais claro impossível. A base política é exatamente a mesma: as leis nacionais, as conquistas nelas inseridas pela luta dos trabalhadores, são os verdadeiros obstáculos ao livre-comércio.
A “ajuda” da União Européia à Bolívia
Em 2005, após a eleição de Evo Morales, a UE informa através da imprensa que dará 1 milhão de euros para a Bolívia com o objetivo de ajudar a organizar as eleições para a Assembléia Nacional Constituinte e explica:
“o objetivo da ajuda, que será implementada por vários parceiros, tais como ONGs locais e internacionais, compreende dar apoio ao Conselho Pré-Constituinte e Pré-Autonomia que preparará o campo para as votações decisivas de 2 de julho de 2006; assessorar os processos de descentralização regional, oferecendo notadamente oferecendo exemplos da diversidade de modelos autonomistas e federativos” (Revista A Verdade nº47 – março de 2006 – grifo nosso).
Hoje, quando na Bolívia se luta contra a desagregação do país pretendida pelos separatistas de Santa Cruz de La Sierra e região, fica mais evidente o resultado dessa ajuda: um milhão de euros para desmantelar a nação boliviana, através de projetos de regionalização! Exatamente aquilo que o imperialismo busca fazer para melhor saquear o petróleo e o gás.
A que vem o Parlamento do Mercosul?
Atualmente o Parlamento do Mercosul é formado por representações de parlamentares dos quatro países do bloco, indicados pelos respectivos parlamentos nacionais. Mas até 2010 está previsto que os deputados sejam eleitos pelo voto direto em cada país, como já acontece no Parlamento Europeu. No caso do Brasil prevê-se que as eleições diretas serão em 2010.
No entanto o Parlamento do Mercosul já começou a funcionar, apesar de seu lugar “institucional” não estar claramente definido, pois no organograma atual do Mercosul, a antiga Comissão Parlamentar Conjunta (CPC) – o atual parlamento – é subordinada ao todo poderoso Grupo do Mercado Comum (GMC).
As conseqüências disso todos podem imaginar: negação da soberania nacional e da autonomia política, subordinação total às regras do mercado, que são a base do Tratado de Assunção.
Alguns poderão dizer que “isso é transitório, vai mudar etc”. Mas esse parlamento está previsto para seguir o modelo europeu, nos limites do Tratado de Assunção, sob a base do princípio da subsidiariedade. O resultado disso seria o esvaziamento dos parlamentos nacionais em troca de uma legislação supranacional, expressão do sufocamento da soberania popular.
Por exemplo: será que um parlamento regido por tal princípio não se sobreporá ao dispositivo democrático da Constituição do Uruguai que permite referendo popular antes de se privatizar empresas públicas nacionais? Esse dispositivo, como sabemos, foi um instrumento importante na luta contra as privatizações naquele país. Mas as decisões de um Parlamento fundado num Tratado cujo artigo 1º diz o que diz – “livre circulação de bens, serviços e fatores de produção etc” – não serão organicamente favoráveis à “livre” privatização? E o caráter institucional de suas decisões supranacionais, que devem encadear as decisões “subsidiárias” dos organismos nacionais, não ficarão em aberta contradição com a soberania nacional?
Outro exemplo: desde 2004 está funcionando uma comissão ah-doc do Mercosul onde se discute a regulamentação do Aqüífero Guarani, o maior manancial de água doce subterrânea trans-fronteiriço do mundo, localizado no subsolo dos vários países do Mercosul. A comissão ah-doc não conseguiu, até hoje, chegar a um consenso (e por mais que tentássemos também não conseguimos encontrar qualquer documento público seu).
Imaginemos o que aconteceria se uma regulamentação do Aqüífero no Mercosul fosse recusada por um Referendo Oficial Uruguaio (ou de qualquer outro país): será que os setores empresariais prejudicados aceitariam o resultado ou “recorreriam” às instituições parlamentares e ao Tribunal do Mercosul contra a decisão soberana desse país? É bom lembrar que concretamente houve referendo no Uruguai, simultâneo à eleição de Tabaré Vazquez pelo Frente Amplio, que precisamente anulou as privatizações da água!
Por fim, cabe registrar que a mesma União Européia financia duas comissões técnicas do Mercosul para a elaboração do Parlamento do Mercosul e mudanças necessárias à “harmonização” das legislações de cada um dos países do bloco. É ou não um motivo de preocupação a “ajuda” desses privatizadores?
O governo Lula e o Mercosul
Em novembro de 2005, uma declaração comum de Lula e Bush diz que “o Mercosul é um instrumento de prosperidade, estabilidade e democracia na região”. Mas que autoridade tem Bush para falar em “prosperidade, estabilidade e democracia” Para ele essas palavras têm um único significado: destruição da soberania das nações, fazer pelo Mercosul um caminho para a ALCA (o projeto empacado da Área de Livre-Comércio das Américas).
Ocorre que a posição sustentada pelo presidente Lula tem plena coerência com o lugar que tem ocupado nas discussões do Mercosul. Na Cúpula de Cochabamba, por exemplo, foi Lula que, frente aos questionamentos de Chávez sobre o Mercosul, afirmou: “(O Mercosul) não é o instrumento adequado para a era que vivemos….Esses instrumentos nasceram para beneficiar ao comércio e à elite”, Lula respondeu com certa dureza: “Não aceito, em hipótese alguma, a negação das coisas que já fizemos”!
O lugar de Lula é plenamente reconhecido no registro da imprensa argentina:
“há duas razões por que o Palácio do Planalto gostaria de ter a Venezuela no Mercosul. A primeira é aumentar uma aproximação com o presidente venezuelano, Hugo Chávez, a fim de exercer melhor controle sobre ele” (Clarin, 23/11/07).
Há muitos exemplos do papel pró-ativo de Lula no quadro do Mercosul. São do presidente brasileiro as propostas de antecipação da Tarifa Externa Comum (TEC) para o final de 2008, da criação do Parlamento do Mercosul, e é o próprio Lula quem explica o papel que pretende desse parlamento:
“o Mercosul tem inimigos internos e externos… os inimigos internos são o corpo técnico e burocrático; dentro de nossos governos, de nossas burocracias. Tem gente que não assimila o Mercosul”.
Essa declaração foi vigorosamente saudada por Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil nos EUA durante o Governo FHC e atual assessor da FIESP, a federação patronal de São Paulo.
Mas a quem se refere Lula quando fala em “nossas burocracias”? Será àqueles que constituem o corpo profissional do Estado, cuja função é zelar pela aplicação das normas e leis criadas no quadro de cada nação? Aqueles que procuram proteger os interesses nacionais, onde se inclui a legislação de proteção trabalhista, hoje tão ameaçada pela ofensiva das corporações internacionais?
Assim, o esforço para constituir um quadro supranacional, fundado sob a base do princípio da subsidiariedade (o “direito comunitário” com é chamado na UE), pretende suplantar não o que Lula chama de “burocracias nacionais que não assimilam o Mercosul”, mas sobrepor-se os próprios Estados nacionais que são obstáculos à livre circulação de mercadorias e capitais.
Conseqüências do Mercosul na região de Pelotas (Rio Grande do Sul, Brasil)
A partir da implantação do MERCOSUL em 1996, a bacia leiteira dos Estados do Sul do Brasil (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná) sofreu um duríssimo golpe. A indústria de doces de Pelotas, por exemplo, foi praticamente dizimada. Os trabalhadores, os pequenos e médios produtores e a economia da região pagaram muito por tudo isso, conforme registramos a partir de uma conversa com o presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Industrias de Alimentação de Pelotas e Região, Lair de Matos.
Pelotas, uma importante cidade da chamada “Metade Sul” do Estado do Rio Grande do Sul – a parte menos desenvolvida, onde predomina o latifúndio, a cultura de arroz, a pecuária extensiva e, mais recentemente, a cultura da soja. O presidente do sindicato da alimentação explica algumas das conseqüências do Mercosul sobre a região:
Lair diz que ‘A crise no setor de alimentação de Pelotas e Região começa no final dos anos 80 e se aprofunda nos anos 90. A cidade, que já foi um importante centro agro-industrial, conta hoje com 12 indústrias do setor de alimentação, contra 40 no início dos anos 90. Isso ocorre num processo de concentração industrial.
Segundo o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), num estudo feito há 2 anos, o desemprego é de 19%, um dos maiores índices do estado e do país.’
Para Lair houve um processo de “modernização” no setor:
“hoje se produz igual ou até mais que nos anos 80, mas com novas máquinas e equipamentos, e menos da metade de mão-de-obra. As empresas eram familiares. Hoje grandes grupos, associados às grandes empresas dominam a produção local.
Tudo começa quando o então presidente Collor abriu o mercado de pêssego em compotas, e o produto grego, fortemente subsidiado, entra via Mercosul pela Argentina. Foi nessa época que a industria CICA, grande empresa brasileira, fechou as portas de sua unidade na região.
Na mesma época o arroz, para além de problemas meteorológicos, sofre uma brutal concorrência do arroz produzido na Tailândia que também entra pela Argentina, mas a única coisa que tem de argentino é um carimbo. Isso provoca quebradeira, e aumenta ainda mais a concentração de terras.Algumas empresas sobrevivem associando-se a empresas de capital estrangeiro (grupo JOSAPAR), outros quebram (grupo Extremo-Sul).
Dois frigoríficos da região fecharam as portas, em conseqüência da concorrência Argentina com seus produtos mais baratos e de melhor qualidade. Esse setor reunia em torno de 2200 trabalhadores. Hoje, depois de algumas empresas reabrirem, são perto de 1500 postos de trabalho.
A indústria de óleos vegetais desapareceu. Uma grande empresa (CEVAL) foi vendida para o grupo Argentino BUNGE e imediatamente fechada.
O setor industrial de panificação não era grande, mas também viu dois moinhos de trigo fechar as portas, pondo fim a perto de 200 postos de trabalho.
Hoje o sindicato luta contra uma enorme pressão para aumentar produtividade que, nesse período foi multiplicada 2 ou 3 vezes e, em alguns casos até bem mais. Um brutal aumento na exploração da mão-de-obra, acompanhada de igual crescimento de doenças mentais (depressão principalmente). A isso se associa ao isolamento dos trabalhadores, que operam individualmente grandes máquinas, assumindo grande responsabilidade, em ambientes de elevado stress (alto ruído, principalmente). ‘Os operários praticamente não se falam mais’, diz ele.
Atualmente, com uma economia voltada para o arroz e o gado, a concentração de terra cresceu brutalmente. Estão em implantação grandes projetos de plantação de eucalipto de grandes empresas como ARACRUZ, que alimentarão plantas de fabricação de papel.
Como diz Lair ‘o que está ruim sempre pode ficar pior’, conclui o sindicalista.
O Mercosul e a “Governança Mundial”
A integração das organizações de trabalhadores aos planos de destruição é peça-chave nos planos dos organismos supranacionais. Na Europa quem exerce esse papel é a Confederação Européia dos Sindicatos (CES) – um organismo criado de cima pra baixo, abertamente ligado às instituições da União Européia.
No Mercosul, em 1986 foi constituída a Coordenadoria das Centrais Sindicais do Cone Sul (CCSCS), reunindo várias centrais sindicais do Cone Sul como a CUT Brasil, a Força Sindical (Brasil), a CGT do Brasil, CTA Argentina, CUT Chile, PI-CNT do Uruguai e CUT Paraguai.
É verdade que a CES e a CCSCS não são exatamente a mesma coisa, mas se conhecem muito bem, cooperam e já elaboraram comunicados conjuntos.
Num desses comunicados, de abril de 2004, podemos ler que a CES e a CCSCS consideram:
“… essencial a tarefa de reforçar o processo de democratização das instituições comunitárias dos dois blocos… Apóia a introdução da moeda única e a ampliação iminente da União Européia. A CES apóia a entrada em vigor da Constituição Européia e, no mesmo sentido, a 5ª Cúpula Sindical do Mercosul – organizada pela CCSCS – dá seu apoio aos presidentes reunidos em Montevidéu no que concerne a criação do Parlamento do Mercosul”.(Revista A Verdade nº47, março de 2006)
Será que é papel das centrais sindicais combaterem pela “democratização” da União Européia e do Mercosul? Não será que a expressão disso é o apoio aberto que a CES deu à Constituição Européia, a constituição que foi rejeitada pelo povo francês e holandês? E mais: não é isso que se está apresentando como modelo para o Mercosul?
A declaração prossegue:
“Nós, do movimento sindical da Europa e do Cone Sul, …reclamamos igualmente às autoridades comunitárias dos dois blocos que eliminem mutuamente os obstáculos protecionistas que entravam as negociações.Nesse sentido o congresso da CES (Praga, maio de 2003) pronunciou-se por uma reforma da política agrícola comum que elimine os subsídios de produtos agrícolas europeus….” (Idem)
Mais uma vez perguntamos: será papel das organizações sindicais apoiarem a reforma agrícola da União Européia? Reforma que elimina subsídios, o que significa a ruína de milhões de pequenos produtores da Europa. E será que vale o mesmo papel para a CCSCS no âmbito do Mercosul?
A Cúpula do Mercosul em Montevidéu (dezembro de 2007)
Os porta-vozes do imperialismo lamentam os “magros resultados” dessa que foi a 34ª Reunião dos Chefes de Estado dos Países do Mercosul. Para eles pouco se avançou no que diz respeito aos seus interesses imediatos, tais como a implantação imediata da TEC e uma “urgente reforma institucional”.
Mas no que diz respeito ao papel que tem cumprido a Coordenadoria das Centrais Sindicais do Cone Sul (CCSCS), essa 34ª Cúpula merece maior atenção. Ali a CCSCS apresentou uma carta onde, entre outras questões, podemos ler:
“Quanto ao conteúdo do novo instrumento de proteção trabalhista estamos reivindicando a inclusão dos seguintes temas:
– a regulação do uso da terceirização, para que a mesma não seja utilizada como forma de rebaixamento de salários, redução de benefícios e privatização de serviços e empresas públicas;
– a institucionalização da inspeção trabalhista conjunta, principalmente nos âmbitos fronteiriços e/ou de forte presença no comércio regional, com o acompanhamento sistemático dos sindicatos.
– o reconhecimento da negociação coletiva supranacional e do direito de criação de comissões sindicais Mercosul nas empresas com presença em mais de um país do Mercosul”.
Tais pontos merecem uma discussão:
Quanto às terceirizações, por exemplo, a CUT Brasileira, corretamente, sempre lutou contra elas, pois são um mecanismo utilizado pelos patrões para, através da subcontratação, retirar direitos, rebaixar salários e destruir categorias profissionais. O resultado disso é colocar em questão a existência dos sindicatos com a pulverização dos trabalhadores em mini-categorias, fragilizando e fragmentando os próprios sindicatos, criando enormes obstáculos à ação unitária dos trabalhadores por suas reivindicações.
Então o que levaria a CUT, contra suas posições históricas, a assinar um documento onde a reivindicação é “regular as terceirizações”? E a resposta é a busca de um consenso entre as cúpulas sindicais!
Os comitês de negociação supranacionais, por outro lado, negociarão a partir de que base?
Como todos sabem os trabalhadores as conquistas duramente arrancadas na luta de classes durante décadas estão inseridas nas leis de seus países. Não se pode aceitar que essas conquistas sejam abandonadas ou niveladas por baixo, como ocorreu na União Européia. A nova reivindicação: “regular as terceirizações” bem o demonstra aonde conduz tal política.
É isso que vemos acontecer sistematicamente nessas negociações cúpula.
Em nossa opinião, a CCSCS deu um passo perigoso. Que exige uma discussão imediata nas instâncias das centrais, nos sindicatos. Na carta entregue aos presidentes do Mercosul, a Coordenadora de Centrais propõe “regularização do uso da terceirização; o reconhecimento da negociação coletiva supranacional”. O que transformaria os sindicatos em co-responsáveis pelas políticas de desregulamentação e destruição dos quadros nacionais, onde estão inscritos os direitos e inúmeras garantias sociais duramente conquistadas.
A falácia do “Mercosul Antiimperialista”
A partir desses fatos perguntamos: existirá algum tipo de ação antiimperialista possível no quadro do Mercosul? Será que esse é o lugar que devemos estar para defender os sindicatos e as conquistas dos trabalhadores? Será que participar disso tudo não causará mais confusão?
Alguns consideram que não e, ao contrário, colocam-se na linha de frente da defesa do Mercosul.
É o que faz o deputado do PT, Dr. Rosinha, atual Presidente do Parlamento do Mercosul e ligado à Democracia Socialista . Mas, quando chamado a desenvolver seus argumentos para defender a aprovação da entrada da Venezuela no Mercosul pelo Congresso Brasileiro ele revela:
“Pode-se dizer que a inclusão da Venezuela no MERCOSUL é, sob a ótica dos interesses brasileiros, apenas a culminação de um longo processo de adensamento das relações bilaterais Brasil/Venezuela iniciado no governo Itamar Franco, consolidado no governo Fernando Henrique Cardoso e concluído na administração de Luiz Inácio Lula da Silva. Portanto, a adesão da Venezuela ao MERCOSUL não tem nada de intempestivo e tampouco resulta de uma decisão política sem substrato econômico, comercial e histórico, como afirmaram alguns (Dr. Rosinha, Parecer Acordo Brasil/Venezuela –Mercosul – extraído do site do Congresso Nacional)”.
Portanto, Dr. Rosinha reconhece a “contribuição” do governo pró-imperialista de FHC na tarefa de atrair a Venezuela para o Mercosul?
Noutra passagem Dr. Rosinha ironiza as posições de Chávez. Segundo ele, não se deve preocupar com os “arroubos retóricos” de Chávez, pois o consenso exigido no Mercosul é que irá enquadrá-lo. Assim, Lula e o Deputado Dr. Rosinha entendem que o Mercosul é uma ferramenta necessária para combater a política de Chávez.
E essa parece ser também a posição do Sr. Carlos Alvarez, Presidente da Comissão dos Representantes Permanentes do Mercosul que, imediatamente após a eleição de Evo Morales, propôs integrar a Bolívia como membro pleno do Mercosul explicando que “o Mercosul pode jogar papel importante como fator de estabilização da região”.
Não tenhamos dúvida que para esse senhor “estabilização democrática” não passa de um eufemismo para explicar a real natureza do Mercosul: fazer respeitar as leis de mercado e a obediência aos interesses das instituições supranacionais, confiscando tudo que levou a eleição de Evo Morales – a legítima aspiração do povo boliviano à sua soberania.
Outro exemplo da mesma orientação política: num artigo publicado no site da Democracia Socialista, Chico Vicente, sindicalista e ex-dirigente da CUT/RS, se contorce para defender o Mercosul:
“Hoje o Mercosul é uma zona de livre comércio imperfeita, uma quase união aduaneira e um mercado comum em construção. O comércio entre os países que compõem o bloco cresceu exponencialmente, com vantagens e prejuízos para setores e regiões econômicas específicas. Embora a resultante, por conta da necessidade de integração regional face ao processo de globalização neoliberal em curso, seja positiva, sua concepção liberal inicial, centrada na competição selvagem e no salve-se, ou venda-me mais quem puder, na proibição do livre trânsito do fator trabalho, na inexistência de fundos comuns e de instituições comunitárias fortes, exatamente ao contrário da experiência da União Européia, tem atrasado o processo e beneficiado apenas às transnacionais que exercem seu poder para obterem maiores lucros e vantagens no espaço supranacional palidamente estabelecido” (extraído do site da Democracia Socialista -grifos nossos).
Deixando de lado nesse momento sua opinião sobre a União Européia, se compreendemos bem, Chico Vicente considera que, depois de passados 16 anos de Mercosul, onde quem se beneficiou foram “apenas as multinacionais”,… esse processo é positivo! Então, a globalização, além de inevitável é também positiva!
Assim, com um discurso de “esquerda”, defendendo ora o “Mercosul Social” ora o “Mercosul Antiimperialista”, esses dirigentes dão a cobertura necessária para integrar as organizações dos trabalhadores nos Tratados de Livre Comércio, instrumentos da globalização.
Conclusão
Vivemos tempos difíceis. Uma época onde o regime decomposto da propriedade privada dos grandes meios de produção sobrevive ao preço da destruição em massa das forças produtivas, das nações e dos direitos duramente conquistados pelos trabalhadores durante décadas.
E para sustentar esse regime apodrecido que é aplicada a política do imperialismo americano. E é contra ela que se levantam os povos do nosso continente.
Há alguns anos as Américas atravessam uma vaga revolucionária que se manifesta de diversas formas, ritmos e momentos.Na Argentina, Equador, Peru, Brasil, Venezuela, Bolívia e inclusive nos EUA, numerosos acontecimentos indicam que, de norte a sul, as massas demonstram sua disposição de por fim à política que por décadas impõem sofrimento e miséria aos povos com os Tratados de Livre-Comércio, com é o caso do Mercosul, do Nafta, do Pacto Andino entre outros.
Como explicamos, partimos dos fatos. E são eles que demonstram que para defender os direitos dos trabalhadores, seus posto de trabalho e suas organizações, é preciso recusar esse falso “Mercosul antiimperialista” que só existe nos papéis.
Não é nosso papel alimentar ilusões nos organismos gestados no interior das corporações supranacionais do capital. Isso conduz o movimento à um beco sem saída e bloqueia a via para uma verdadeira integração do povos e das nações do continente. Integração essa que só se dará plenamente se for construída na luta contra o imperialismo, suas organizações multilaterais e seus Tratados de Livre-Comércio.
É preciso recusar a confusão travestida de “luta antiimperialista”, desnudadas facilmente pelos fatos.
E temos certeza que a situação amadurece para que possamos avançar.
Recentemente o Encontro Setorial Sindical Nacional do PT, assim como várias Plenárias Estaduais da CUT (preparatórias ao PLENCUT), posicionaram -se para que a discussão sobre o Mercosul seja reaberta.
A resolução do Encontro Sindical do PT afirma:
“Num momento em que a política do imperialismo – diante da inviabilização da ALCA pela luta dos povos do continente – se traduz na multiplicação de Tratados de Livre comércio, é necessário discutir qual é a realidade do Mercosul – que, como indica seu próprio nome, é um ‘mercado comum’ a serviço das grandes empresas (multinacionais em sua maioria) e não da integração entre os povos explorados e oprimidos da região”.
Em Abril de 2008 no 2º Encontro Continental “Pela Soberania Nacional, Contra os Tratados de Livre- Comercio e as Privatizações”, realizado na Cidade do México, tomou posição no mesmo sentido:
“…Com relação ao Mercosul (Mercado Comum do Sul), a mesa recolheu a necessidade de aprofundar a discussão sobre o significado do Mercosul, como variante dos tratados de livre comércio.”
A discussão está aberta e debate é mais do que nunca necessário.Entendemos que é o momento de dar um passo adiante: combater pela ruptura dos países da América Latina com o quadro imposto pelas instituições nascidas do Mercosul, na luta por uma União de Nações Soberanas e Povos Livres, livre de toda opressão e exploração.
Está na ordem-do-dia forjar a unidade dos trabalhadores e povos em defesa da paz, da soberania e das conquistas democráticas. E será na luta contra o imperialismo que poderão nascer os organismos verdadeiramente democráticos e representativos dos povos do continente que poderão trilhar o caminho de uma verdadeira integração dos povos do continente numa União de Nações Soberanas e Povos Livres.
Laércio Barbosa, membro da Direção Regional do PT/RS e militante da corrente “O Trabalho” do PT, Seção Brasileira da IV Internacional.