Na noite de 16 de abril de 1917, Lenin retorna do exílio. Ao descer do trem na capital russa foi recebido por milhares de apoiadores e simpatizantes de seu partido (Bolchevique). Ali mesmo foi também saudado, em nome da Executiva do Soviete (Conselho de operários, soldados e camponeses) pelo dirigente menchevique Chkheidze, exortando-o a apoiar o Governo Provisório, que mantinha o país na I Guerra Mundial (I GM).
Ao invés, Lenin fez um discurso contundente pela revolução socialista, contra tal governo. Ao encontrar Kamenev, editor do jornal bolchevique Pravda, criticou sua posição “defensista”, pró-guerra e conciliatória com o Governo Provisório.
A Revolução de Fevereiro e os sovietes
Um mês antes, trabalhadores, camponeses e soldados – cansados da guerra e da fome – iniciaram um gigantesco movimento que contaminou todo o país e também os pelotões nas frentes de batalha. Era a Revolução de Fevereiro, que derrubou o Czar da Rússia. Nela, as massas se auto-organizaram em Sovietes que, com a adesão de soldados/marinheiros armados e de milícias operárias, tornaram-se organismos não apenas de luta por reivindicações, mas também pelo poder aos trabalhadores.
Criou-se assim uma situação de “duplo poder”. Potencialmente, o poder estaria nas mãos dos sovietes, armados e mobilizados. Eles eram, contudo, dirigidos majoritariamente pelos líderes dos dois maiores partidos com influência nas classes trabalhadoras e camponesas até então: o Menchevique e o Socialista-Revolucionário (SR). E tais líderes defendiam transferir o poder ao Governo Provisório, estabelecido pelos partidos burgueses, que mantinham intactas as políticas, os compromissos (de guerra imperialista) e boa parte das instituições de estado do regime czarista recém-derrubado.
Os trabalhadores, no entanto, seguiam em suas lutas por reivindicações, como a reforma agrária ou o congelamento de preços em meio à fome gerada pela odiosa guerra, que já tomara a vida de quase dois milhões de soldados. Chegaram a conquistar dos patrões a jornada de oito horas e até algum controle em locais de trabalho.
Enquanto isso, o governo assim exigia que os soldados fossem levados de volta às trincheiras, sob disciplina militar, e que os trabalhadores devolvessem suas armas ao Estado. As demandas populares (incluindo uma Constituinte) até poderiam ser avaliadas, desconversava o governo, mas apenas após a vitória da Rússia e de seus aliados (França e Inglaterra) na guerra contra as Potências Centrais (os impérios alemão, áustro-húngaro e turco-otomano e a Bulgária).
“Defensismo Revolucionário”?
Dirigentes mencheviques e SRs – antes contrários à “guerra imperialista” da Rússia czarista – passaram a defender agora a manutenção da Rússia na I GM. Argumentavam que a Revolução de Fevereiro havia já “transformado” o caráter do envolvimento russo na guerra. O país, diziam, não mais estaria travando uma guerra predatória, mas apenas uma pela “defesa da democracia” e das “conquistas da revolução” contra o militarismo dos Impérios Centrais. Trataria-se portanto de “defensismo revolucionário”.
Assim, tais dirigentes tentavam, com algum sucesso num primeiro momento, convencer os sovietes e milhões de trabalhadores e camponeses a subordinarem-se ao Governo Provisório e à sua guerra. O Soviete de Petrogrado chegou a adotar, duas semanas antes da chegada de Lenin, um “manifesto ao mundo”, defendendo “nossas próprias liberdades” e conclamando os trabalhadores alemães e austríacos apenas (não os russos!) a abandonarem suas trincheiras a serviço “de reis, latifundiários e banqueiros!”.
Stalin e Kamenev
Para a indignação de Lenin, tal manifesto fora apoiado por delegados do próprio partido Bolchevique no Soviete. Pior, altos dirigentes do partido, a reboque dos mencheviques e SR, vinham expressando publicamente “apoio crítico” ao Governo Provisório. Os editores chefes do Pravda, Kamenev e Stalin, assinavam editoriais exortando os soldados a “permanecer firme em seus postos [trincheiras], respondendo bala por bala”; “Nosso slogan não é o grito vazio ‘Abaixo a guerra!’”.
Ainda no exílio, assim que ficou sabendo da Revolução de Fevereiro, Lenin escreveu uma série de cartas à militância bolchevique defendendo: nenhum apoio ao governo provisório, manutenção das posições do partido contra a guerra e pela luta para a tomada do poder pelos sovietes. Logo ao chegar em Petrogrado, notou ser ignorado pela cúpula bolchevique. Só uma de suas cartas fora publicada no Pravda – tendo sido editada (apagada a parte que chamava de “traidores dos trabalhadores e da causa da paz e da liberdade” os que apoiassem o Governo Provisório).
Lenin sabia que setores da burguesia dentro do próprio governo já conspiravam com generais czaristas para fazer a revolução retroceder ao máximo e assim criar as condições a uma brutal repressão aos trabalhadores e suas organizações de classe. A cada compromisso da direção dos sovietes, e dos bolcheviques em particular, crescia o perigo da contrarrevolução. Exortava assim aos militantes de base bolcheviques a rejeitar e corrigir a linha dirigente de Kamenev-Stalin.
Teses de Abril: reorientar o partido
Rearmar o partido era a tarefa prioritária de Lenin ao descer do trem. No dia seguinte, ele apresentou suas “Teses de Abril” em plenária de delegados bolcheviques (e depois bolcheviques e mencheviques) no Soviete de Petrogrado. Depois desenvolveu-as num texto maior editado numa brochura à Conferência do Partido Bolchevique (“Proposta de plataforma ao partido do proletariado – as tarefas do proletariado na nossa revolução”) realizada no início de maio. Tratavam-se de dez “Teses” em si, que definiam sua orientação política. O primeiro e mais importante ponto estrutura os demais:
“Em nossa atitude perante a guerra, que por parte da Rússia continua a ser indiscutivelmente uma guerra imperialista, de rapina, também sob o novo governo [Provisório], em virtude de seu caráter capitalista, é intolerável a menor concessão ao ‘defensismo revolucionário’. O proletariado consciente só pode dar o seu assentimento a uma guerra revolucionária que justifique o defensismo revolucionário nas seguintes condições: (a) passagem do poder para as mãos do proletariado e dos setores pobres do campesinato que a ele aderem; (b) renúncia de fato, e não em palavras, a todas as anexações; (c) ruptura completa com os interesses do capital. [Aos trabalhadores é] preciso […] pacientemente explicar a ligação indissolúvel do capital com a guerra imperialista e demonstrar-lhes que sem derrubar o capital é impossível pôr fim à guerra com uma paz verdadeiramente democrática e não imposta pela violência.”
A partir daí, as demais “Teses” rejeitam qualquer apoio ao governo, apontam os sovietes como uma forma de estado novo e superior e levantam medidas econômicas urgentes aos trabalhadores e camponeses. Delineiam assim uma dupla orientação: (i) a tomada de poder pelos trabalhadores e camponeses via sovietes, que devem liderar uma revolução (ii) com um programa que combine tarefas democráticas (de uma revolução burguesa) e socialistas.
Lenin, por fim, conclui suas teses expondo, num balanço crítico, as direções social democratas dos países beligerantes por terem apoiado a guerra em colaboração com os capitalistas de seus respectivos países. Tornaram-se assim social-chauvinistas, “nossos inimigos de classe, burgueses dentro do movimento operário […] que foram objetivamente subornados pela burguesia, ajudando-a a saquear e oprimir povos pequenos e fracos e lutar pela divisão dos despojos capitalistas”. Ele repete a caracterização de tais partidos feita por Rosa Luxemburgo: “defuntos fedorentos”.
Internacionalismo: o “inimigo está no país”
Por isso as teses propõem organizar os militantes internacionalistas – da ala “esquerda de Zimmerwald”() -, em ruptura com tais partidos. Além de Rosa, são destacados vários outros revolucionários, particularmente o militante operário social-democrata alemão, “Karl Liebknecht, [que junto com] Otto Rühle [foram os únicos] dois entre 110 deputados que violaram a disciplina [partidária, votando contra os créditos de guerra no parlamento]… [Com] seu lema ‘Nosso inimigo está em nosso próprio país’, ele trava uma luta pela revolução socialista proletária em conexão com a presente guerra. Ele convocou os trabalhadores e soldados da Alemanha a voltarem suas armas contra seu próprio governo e burguesia imperialista… E fez isso abertamente da tribuna do parlamento (Reichstag). [Dali] foi a uma manifestação na Potsdamer Platz, uma das maiores praças públicas de Berlim, com panfletos impressos ilegalmente proclamando ‘Abaixo o governo!’… [A]gora … [está] preso … com milhares de outros verdadeiros socialistas alemães condenados por atividades antiguerra”.
Para apontar uma saída a tais militantes e trabalhadores, traídos e confundidos por seus dirigentes, as teses propõem uma nova organização de partidos operários – a III Internacional.
As teses de Lenin não foram bem recebidas por mencheviques e SRs, que de fato as atacaram violentamente. Mas tampouco foram aceitas facilmente por importantes dirigentes bolcheviques, ainda adaptados a uma linha anterior. Por isso, Lênin teve de seguir por semanas e meses numa batalha, se apoiando na militância operária de base, para convencer a direção bolchevique e reorientar o conjunto do partido. Mas foi justamente isso que permitiu a vitória da Revolução de Outubro.
Alberto Handfas
* A Conferência internacional de Zimmerwald (cidade suíça) foi realizada entre militantes social-democratas de vários países do mundo contrários à guerra. Mas a maioria de seus delegados, ainda que “pela paz”, recusou-se a lutar contra as burguesias beligerantes e pela revolução socialista, posição defendida por uma minoria que ali se formou.