Pedro Serrano analisa a Ação Penal 470 e suas implicações
Pedro Serrano é professor de direito constitucional na Faculdade de Direito da PUC-SP. Militante na área de direitos humanos, além da atividade profissional dedica-se ao debate político e jurídico no país através de artigos em vários órgãos da imprensa. É colunista da revista Carta Capital. Em entrevista concedida a Misa Boito, ele analisa a Ação Penal 470 e suas implicações.
O Trabalho – Havia base para as condenações e penas impostas?
Pedro Serrano – É cedo para afirmar isso de forma terminativa, temos de ler os votos e consultar o processo. Com base nos pronunciamentos orais, o que se depreende é que o STF alterou neste caso, profundamente, sua forma de ponderar e entender direitos fundamentais essenciais ao Estado Democrático de Direito, como a presunção de inocência, a coerência das decisões judiciais, a fundamentação das decisões à luz do contraditório etc. Tal flexibilização de direitos implica na adoção inegável de postura punitivista pelo STF, ao menos nesse caso, o que contraria sua jurisprudência anterior e especialmente o sistema de direitos e garantias de nossa Constituição.
O Trabalho – Com a maioria dos ministros nomeada nos últimos anos, na atual composição, o STF parece favorável ao processo de judicialização da política. Qual sua opinião?
Pedro Serrano – Essa tendência de judicialização da política deve-se ao ativismo judicial, ou seja, a adoção pela Corte de interpretações que contrariam o texto e a pauta de valores da Constituição em favor dos valores ideológicos de quem a aplica.
Esta postura, mesmo que simpáticas e justas em questões como a da União Civil entre homossexuais, trazem em si um imenso perigo, o de potencial ruptura da continuidade democrática. O papel das Cortes Supremas nos golpes de Honduras e Paraguai é exemplar. Estamos longe dessa situação, mas há que se reconhecer que os ministros togados não possuem a legitimidade do voto, e suas decisões fora do âmbito da Constituição sofrem de evidente “deficit” democrático.
A soberania popular inerente à democracia tende a trazer avanços implicando em consequente universalização dos direitos fundamentais, até agora só efetivados para as elites.
A maioria de nosso povo vive em Estado de Exceção permanente, nãonum verdadeiro Estado Democrático de Direito. Só através de conquistas de radicalização democrática conseguirá superar este fosso social que ainda existe, apesar dos avanços nos Governos Lula e Dilma.
Ocorre que esta soberania popular é limitada pelas decisões do STF. Se tais decisões circunscrevem-se ao determinado em nossa Constituição não há problema, cabe à Corte a adoção de decisões contra-majoritárias que visam proteger os direitos fundamentais das pessoas e das minorias.
Mas, quando essas decisões não se inserem nas possibilidades de sentido do Texto constitucional e o extravasam fazendo valer os valores de quem julga e não da Constituição interpretada, há um indevido avanço da toga sobre a legítima esfera de decisão da soberania popular.
São inúmeros os exemplos de Cortes Supremas nos países democráticos ocidentais que usaram do discurso de supostamente interpretar a Constituição para, de fato, conter avanços democráticos exigidos pela soberania popular. Debater o papel do STF na interpretação constitucional é debater o papel da soberania popular em nossa democracia. Opor limites constitucionais e normativos ao poder da Corte não favorece os “políticos” como segmento burocrático, mas sim o controle do povo sobre as condutas de nosso Estado e sociedade.
O Trabalho – Você fez menção aos golpes em Honduras e no Paraguai, vê relação com o que se passa aqui?
Pedro Serrano – O que ocorre no Brasil não se compara em extensão e profundidade aos golpes em Honduras e Paraguai, onde as respectivas jurisdições, agindo como fonte da exceção, não do direito, deram amparo e protagonizaram golpes de estados, in-terrompendo mandatos democráticos. Mas, em certa medida, há o risco que no futuro situação semelhante ocorra por aqui se não adotarmos, como sociedade, consistentes limites normativos ao agir jurisdicional. A lei e a Constituição são as fontes primárias e legítimas de decisão no sistema democrático, e não as decisões judiciais. O papel criativo do Juiz não pode ser idealista ao ponto de querer controle absoluto sobre o sentido do texto normativo interpretado. Neste subjetivismo discricionário que a doutrina jurídica positivista outorga ao Juiz, mora a possibilidade do fascismo jurisdicional.
O Trabalho – Como fazer frente a esse processo, em particular à Ação Penal 470?
Pedro Serrano – Creio que existem várias frentes de combate. No campo da doutrina jurídica, o combate ao positivismo discricionarista e pelo uso dos princípios jurídicos como normas restritivas do sentido normativo e não ampliativo como corriqueiramente são usados em nossas Cortes. Este talvez seja o principal fator interno de crise em nosso sistema jurídico e judicial. Também a denúncia e combate aos fatores externos de erosão do sistema jurídico, como a interferência indevida do espetáculo midiático em julgamentos criminais e o ativismo judicial.
Há que se ter um pacto ético no âmbito dos veículos de comunicação que preserve a imagem de julgadores face às decisões que proferem em julgamentos penais e constitucionais. Uma democracia que exige heroísmo de seus Juízes para que possam julgar contra o senso comum não é uma democracia de fato, e o julgamento, nesta hipótese, se transmuta em linchamento.
A fundada suspeita de erro judiciário na decisão da Ação Penal 470 exige sua revisão por nossa Corte. Líderes importantes do principal partido de esquerda brasileiro foram condenados por crimes infamantes, aparentemente sem provas robustas para tanto. Isso é muito grave, como sociedade não devemos conviver com isso.
Entrevista publicada na edição 726 do Jornal O Trabalho