Relatório final pede punição dos crimes da ditadura que não cabe na “lei da anistia”
No último dia 10 foi apresentado o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Uma comissão nomeada pela presidente Dilma e formada há dois anos e sete meses cuja tarefa foi investigar o período de 1946 a 1988 e, em particular, a ditadura de 1964-85.
Foram formadas muitas comissões análogas de âmbito estadual, municipal, em sindicatos e em universidades que contribuíram nos trabalhos da Comissão Nacional. O relatório da comissão apresenta 29 propostas que não tem força de lei. São “recomendações” aos órgãos públicos. Entre elas 17 são medidas institucionais, oito iniciativas de mudança de leis ou da Constituição e quatro medidas de seguimento da CNV.
Entre as recomendações, a principal é a punição de 377 agentes públicos. São militares e civis responsabilizados por crimes que vão da tortura de milhares até 434 mortes e desaparecimentos identificados, e outros crimes horrendos.
A CNV se declarou sem tempo de estudar os crimes nas fabricas, no campos e sindicatos – o que levaria a criminosos industriais, usineiros, banqueiros e multinacionais – e, por falta de colaboração das Forças Armadas, não localizou mais que um desaparecido. Finalmente, a CNV não se pronunciou pela revogação ou pela “revisão da lei de anistia” como se anunciou, apesar do pedido dos familiares e vítimas e uma infinidade de entidades e organizações.
A presidente Dilma, por sua vez, recebeu e, emocionada, prestigiou o relatório da CNV numa cerimônia boicotada pelos comandantes da Forças Armadas.
Todavia, Dilma se equivoca ao sugerir que a lei de anistia seja parte dos “pactos políticos que levaram a redemocratização”.
Na verdade, o relatório é um ponto de apoio para a luta pela democracia no Brasil e pelo desmantelamento completo das instituições herdadas do regime militar o que incluem a chamada “lei de anistia”, pois para se chegar à punição, ela acabará sendo derrubada.
Antipetismo
O relatório da CNV também recomendou a desmilitarização das polícias militares, a revogação da Lei de Segurança Nacional e a abertura dos arquivos militares.
E foram as conclusões concretas (clique aqui e leia as 29 recomendações da comissão) quwe levam o jornal O Estado de São Paulo, em editorial de 11 de dezembro, a esculhambar o relatório da CNV a ponto de desqualificá-la porque: “entre os sete membros estava, por exemplo, uma psicanalista conhecida por sua aguerrida militância petista”. Uma!? Então não poderia ter nenhuma?
Entre as reações ao relatório aí está um exemplo da atualidade da questão democrática na boca dos ditos “liberais”, anticomunistas que apoiaram o golpe militar e já voltam a fraternizar com golpistas “antipetistas”.
Ao mesmo tempo, ex-ministros militares protegidos pelo anonimato, generais da reserva e da ativa (o que é indisciplina), espalham a sua bílis ameaçando “articular ações”, segundo a imprensa, “judiciais.
Reforma do Estado
O relatório da CNV levanta a cadeia de comando dos torturadores até os generais na presidência da República no Palácio do Planalto como finalmente reconheceu na noite do dia 9 no Jornal Nacional a Rede Globo, colaboradora ela própria da ditadura.
Como tudo isso pôde ser “escondido” 30 anos?
A resposta está na Constituição de 1988, saída da Constituinte de 1986, que substituiu sem liquidar e enterrar o regime militar. Na verdade, ela preservou o que pôde do aparato militar. Defendeu a base fundiária das oligarquias, a dívida criada pelo sistema financeiro ligado às grandes empresas nacionais e internacionais.
Não houve uma ruptura democrática, apesar da inscrição de alguns direitos, não houve uma reforma a fundo do Estado.
A tortura, por exemplo, continua sendo uma política de Estado da polícia militarizada por decreto do ditador em 1969. O Judiciário não foi depurado como acontenceu em outros países que saíram de ditaduras. Ao contrário, ele foi reforçado como bunker da elite.
E o que mais se poderia esperar da dita “constituinte” que foi apenas a outorga de poderes constituintes ao próprio congresso bicameral – Senado mais Câmara – eleitos da mesma forma com voto unipessoal e não em lista, pelo financiamento privado, aberto ou “caixa 2” e completamente desproporcional?
Por isso, também, os limites do relatório da CNV atualizam a luta pela Constituinte Exclusiva da reforma política, para abrir a via da reforma profunda do Estado de cabo a rabo.
Como disse o familiar de uma vítima da ditadura: “o relatório da comissão é um ponto de partida e não de chegada”.
Laércio Barbosa
artigo originalmente publicado na edição nº 759 do jornal O Trabalho