Diretrizes do programa de Lula: sem Constituinte, há um perigoso acomodamento

O favoritismo de Lula se confirma nas pesquisas (embora muitos eleitores ainda não tenham candidato). Em parte é uma reação aos outros candidatos ligados à elite beneficiada desde o impeachment, enquanto o povo passava dificuldade. Com certeza, o povão retém as estocadas de Lula nos ricos, em Biden, a defesa da Eletrobrás e da Petrobrás, e a promessa da volta da valorização do salário mínimo, por exemplo, como motivações programáticas. Mas não há discussão de programa na base.

Há poucos dias, “vazou” na imprensa uma versão das Diretrizes de Programa, logo depois aprovada por maioria na Executiva Nacional, com emendas secundárias. O documento foi submetido aos sete partidos da aliança presidencial (PT, PCdoB, PV, Psol, Rede, PSB e SDD), e em uns dois meses deverá resultar num Programa. 

A bandeira da Constituinte Soberana consta do “Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil”, lançado pelo PT em setembro de 2020, conforme as resoluções do 6º e 7º Congressos do partido. Mas este ponto foi rejeitado para a plataforma da federação (PT-PCdoB-PV), e não entrou nestas Diretrizes – uma emenda teve dois votos dos membros da Articulação de Esquerda e do Diálogo e Ação Petista.

Revogação ou Revisão
Publicadas as Diretrizes, a mídia as tachou de “antigas” e não sintonizadas com o “estilo Alckmin”. A cúpula do partido não se fez de rogada, e pela imprensa mesmo adocicou a revogação da reforma trabalhista de Temer, que virou uma “revisão”. Será outro passo atrás do PT, saudado por certas centrais sindicais, sob um silêncio ensurdecedor da CUT: no programa, a campanha não começa bem.

De fato, as Diretrizes não têm uma dimensão transformadora, pela convocação de uma Constituinte Soberana, o que denota um perigoso acomodamento. Por exemplo, não há a revogação da reforma da Previdência de Bolsonaro que reduziu direitos, sobrou “conciliar aumento de cobertura e com financiamento sustentável”, a conversa do mercado. 

Quem paga a conta?
Outra questão: “o primeiro e mais urgente compromisso” das Diretrizes é com a “restauração das condições de vida, por meio de ações emergenciais”. Certo, ainda são diretrizes, mas o eleitor fica sem pistas de quais seriam elas. Uma diretriz deveria indicar pontos “de emergência” como o tabelamento de preços e o reajuste geral de salários.

Há boas intenções nas Diretrizes, como reindustrializar o país, não privatizar e apoiar as estatais, além de outras políticas públicas. Mas de onde vão sair os recursos, quem vai pagar a conta? E de que montante poderão ser esses recursos? Nas Diretrizes, não há mais que um trecho de frase: “corrigir a injustiça tributária ao elevar a taxação sobre os muito ricos”. Mas aumentar de quanto? E dariam quantos bilhões “corrigir a injustiça”, sem mexer nos capitais dos grandes bancos e nas remessas das multinacionais? São questões concretas.

Tutela militar sumiu
Em defesa das instituições, as Diretrizes fazem um tortuoso elogio da “estrita definição pela Constituição das Forças Armadas a partir de diretrizes dos Poderes na defesa do território”. Mas o artigo 142 justamente atribui aos “Três Poderes” a autorização para acionar as Forças Armadas para a “garantia de lei e ordem”. O que é uma aberração, pois numa democracia elas deveriam se dedicar a cuidar da defesa das fronteiras. Ignorar a tutela militar não é realista e não vai diminuí-la.

É como se os autores não soubessem que foi sob o manto negro das instituições desta Constituição que o STF deixou Lula injustamente preso 580 dias, e que foi de seu porão que saiu, e ainda governa intocável, o inominável do Planalto com seus generais! Os autores ignoram que a Constituição de 1988 foi desfigurada por 120 emendas as quais, como o Teto de gastos, para serem revogadas necessitam de 3/5 dos votos na Câmara e no Senado. O que as regras eleitorais atuais, sub-representadoras e distorcidas, bloqueiam de antemão.

Por tudo isso, o realismo recomenda abrir desde já o debate para, no novo governo, convocar-se uma Constituinte Soberana, unicameral, eleita pelo voto proporcional, em lista, com financiamento público exclusivo e cota de representação indígena. Se ela não foi proposta na letra das Diretrizes, ela virá nos fatos da vida.

Markus Sokol

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