Menina é violentada duas vezes: pelo estuprador, e por juíza e promotora

Aos 10 anos de idade, uma menina foi estuprada, o que, por si só, leva a uma carga enorme de sofrimentos e riscos. Em decorrência, ficou grávida. E pela ação de agentes de saúde e de agentes do sistema judiciário de Santa Catarina, em desrespeito à lei, teve imposta a manutenção da gestação (com todo o sofrimento e riscos que isso pode gerar numa criança de 10 anos), foi submetida a um interrogatório revoltante, além de ter sido separada da mãe por mais de 40 dias.

É isso o que revelou um o vídeo divulgado pelo The Intercept Brasil, em colaboração com o portal Catarinas [disponível aqui https://theintercept.com/2022/06/20/video-juiza-sc-menina-11-anos-estupro-aborto/, conteúdo sensível]. Primeiro, o Hospital Universitário ligado à Universidade Federal de Santa Catarina se recusou a fazer o aborto – que seria legal, pelo fato de ser fruto de estupro e por colocar a vida da gestante em risco. O motivo alegado era pela gestação estar na 22ª semana, decisão que não tem nenhum amparo na lei.

A mãe da criança, então, procurou a Justiça. E ambas foram submetidas a uma sessão de manipulação, imposição de culpa, mentiras e violência emocional, fantasiada de coleta de depoimento, pela juíza Joana Ribeiro Zimmer e pela promotora Mirela Dutra Alberton.

No vídeo, o silêncio insistente da criança, ou suas respostas monossilábicas, nos gritam o tamanho do sofrimento ao qual ela estava sendo submetida.

A juíza Joana Ribeiro Zimmer fala baixo, com voz doce, a chama de querida, enquanto faz perguntas repugnantes e perversas, como “quer escolher o nome do ‘bebê’?”. Quando pergunta, especificamente, se a menina quer ver o ‘bebê’ nascer e crescer, ela responde clara e expressamente: não. A menina também nega, em outro momento, que consiga se imaginar em um parto.

A juíza passa a falar então agindo como quem trafica crianças para adoção em “retirada antecipada desse ‘bebê’”, para “outra pessoa cuidar se você não quiser”, ,o contrário da vontade expressa pela menina, e pergunta: “você suportaria ficar mais um pouquinho?”, passando a induzi-la a manter a gravidez “por mais duas, três semanas” para, depois, encaminhar à adoção (a própria expressão “você suportaria” mostra que a juíza compreendeu a dor imposta à menina).

Em seguida, a promotora Mirela Dutra Alberton passa a falar no mesmo sentido, mas de forma a criar ainda mais culpa na menina, dizendo que o feto “já é um bebê, já é uma criança”, e que ele “iria morrer ali, agonizando” – o que simplesmente não é verdade. A juíza também afirma para a mãe da menina que o aborto seria fazer o ‘bebê’ nascer e esperar morrê-lo, “uma crueldade”, o que é mentira!

O vídeo parece, para muitas mulheres que o assistem, a uma sessão de tortura, ainda mais quando a juíza pergunta: “você acha que o pai da ‘bebê’ concordaria com a entrega para adoção?”. Sim: a juíza quer saber se uma menina de 11 anos, vítimas de estupro, pensa se seu estuprador concordaria com a adoção!

A juíza Joana Zimmer impediu a realização do aborto e, ainda mais, manteve a menina em um abrigo, afastada de sua mãe nesse momento de profunda confusão, dor e angústia, por mais de 40 dias. Durante esse período, outro juíz havia autorizado o aborto, mas não foi realizado por ela estar no abrigo. Com isso, a juíza atenta contra a vida da criança, pois uma das médicas que analisou o caso atestou que ela corre vários riscos, como de eclâmpsia e de sequelas irreversíveis, segundo The Intercept Br.

Esse caso está provocando grande revolta, com razão, como causa revolta o fato de que, no dia seguinte à publicação do vídeo, a juíza foi promovida! Mas o que causa mais indignação é sabermos que esse, infelizmente, é mais um caso de muitos que não vêm a público. Há duas semanas atrás, o G1 divulgava levantamento mostrando as dificuldades impostas para o aborto legal no Brasil, tanto do ponto de vista da oferta do procedimento no SUS, quanto pela revitimização das meninas e mulheres, ou por agentes que simplesmente lhes negam o direito.

Há menos de 2 anos, o país acompanhou o caso de outra menina de 10 anos, também grávida em decorrência de estupro, também impedida de abortar, mas dessa vez no Espírito Santo. Ela precisou ser transferida de estado para realizar o procedimento e enfrentar um bando bolsonarista que manifestou sua falta de humanidade na porta do hospital.

No início desse mês, o Ministério da Saúde do Bolsonaro escreveu que, no Brasil, “todo aborto é um crime”, em uma cartilha – essa sim – criminosa. Tudo isso só comprova que é urgente e necessário debater o aborto legal, de forma consequente, e o PT precisa assumir sua responsabilidade nisso.

Enquanto isso, a menina catarinense, agora com 11 anos, finalmente pode voltar à guarda da mãe, mas sua gravidez segue, na 29ª semana.

Priscilla Chandretti

Atualização em 23 de junho: a menina teve seu direito ao aborto garantido no dia 22 de junho.

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