Diante da crise brutal do capitalismo, acelerada e revelada pela pandemia neste ano de 2020, o programa da 4ª Internacional estaria superado?
Em 20 de agosto de 1940, na sua casa de Coyocán nos arredores da Cidade do México, León Trotsky foi golpeado com uma picareta na cabeça por um agente de Stálin, vindo a falecer na madrugada de 21 de agosto num hospital da capital do país que havia lhe concedido asilo.
O seu assassinato tinha o objetivo político, numa situação de início da 2ª Guerra Mundial (1939-45), de privar a classe trabalhadora de uma direção revolucionária que, a exemplo dos bolcheviques por ocasião da 1ª Grande Guerra (1914-18), trabalhasse para transformar a guerra imperialista em revolução socialista. Para Stálin, tratava-se de matar no nascedouro a recém criada 4ª Internacional.
Trotsky foi um revolucionário marxista de marcante trajetória. Ele foi presidente do soviet de São Petersburgo na revolução de 1905, o “ensaio geral” da vitoriosa Revolução Russa de 1917 liderada pelo partido bolchevique “de Lênin e Trotsky” como diziam as massas; ele foi o comandante do Exército Vermelho nos terríveis anos da guerra civil (1918-1921), em que 14 exércitos estrangeiros, aliados aos “brancos” contra- revolucionários, invadiram o território da Rússia Soviética, sendo derrotados pelos operários e camponeses em armas, o que permitiu, em 1922, a constituição da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS); ele combinou a teoria e a prática em sua atuação, escrevendo dezenas de obras que enriqueceram o marxismo; ele denunciou e combateu a burocratização do partido dirigido por Stálin e sua camarilha de altos funcionários do Estado nascido da revolução, o que lhe custou o exílio, a perseguição e a própria vida.
Entretanto, Trotsky, nos seus últimos anos, dizia que a sua principal obra era a luta pela construção da 4ª Internacional. Desde seu exílio, ele preparou e acompanhou a conferência de fundação da nova Internacional, ocorrida em 3 de setembro de 1938 na periferia de Paris. O programa então adotado tinha como título “A agonia do capitalismo e as tarefas da 4ª Internacional” e o subtítulo “A mobilização das massas por meio das reivindicações transitórias”. Ele passou para a história com o nome de Programa de Transição.
A atualidade do Programa de Transição
O que hoje se chama de “crise sanitária” da Covid-19 é, na verdade, uma manifestação da podridão de todo o sistema capitalista mundial em sua etapa imperialista. É impossível separar a pandemia da crise geral do sistema baseado na propriedade privada dos grandes meios de produção.
Bem antes do início da pandemia na China, em meados de 2019, multiplicavam-se os alertas de instituições multilaterais a serviço do imperialismo – FMI, Banco Mundial, OCDE – e na imprensa internacional sobre a iminência de uma crise maior do que a de 2008 de todo o sistema econômico mundial.
Assim, o relatório anual de 2019 do FMI afirmava: “A economia mundial vive uma desaceleração sincronizada: o crescimento para 2019 foi mais uma vez revisado para baixo, em 3%, ou seja, seu ritmo mais lento desde a crise financeira global (…). Recuo generalizado da indústria transformadora e do comércio mundial (…). O aumento das tarifas e a incerteza prolongada em torno das políticas comerciais levaram a uma redução do investimento (…). A indústria automobilística também está passando por uma contração. “
A pandemia só fez acelerar essa crise anunciada e em toda a parte capitalistas e governos a seu serviço a exploram para atacar os salários, os direitos e as conquistas arrancadas na luta de classes pelos trabalhadores e povos oprimidos, buscando a sobrevivência de um modo de produção que empurra a humanidade ao abismo.
Em 1938 o Programa de Transição, logo em seu início, dizia : “A premissa econômica da revolução proletária já alcançou há muito o ponto mais elevado que pode ser atingido sob o capitalismo. As forças produtivas da humanidade deixaram de crescer. As novas invenções e progressos técnicos não conduzem mais ao crescimento da riqueza material. As crises conjunturais, nas condições da crise social de todo o sistema capitalista, sobrecarregam as massas de privações e sofrimentos cada vez maiores. O crescimento do desemprego aprofunda, por sua vez, a crise financeira do Estado e mina os sistemas monetários estremecidos. Os governos, tanto democráticos quanto fascistas, vão de uma bancarrota a outra.”
Essas linhas foram escritas às vésperas da 2a Guerra Mundial e da destruição maciça de forças produtivas que ela provocou. Desde então, o mundo passou por múltiplas crises econômicas, guerras de independência nacional, guerras imperialistas, revoluções e contra-revoluções, desabamento da URSS, restauração do capitalismo na China e outros acontecimentos. Está evidente que a crise da humanidade ainda não encontrou solução e que o imperialismo segue destruindo o planeta. Estaria velho e ultrapassado o Programa de Transição?
Um programa é um guia para a ação
Um programa marxista não é um dogma, é um guia para a ação. Seu objetivo é formular um método de ação política para a intervenção organizada na luta de classes, analisando o processo histórico como um todo.
Quem poderia negar nos dias atuais que os avanços da ciência e da tecnologia, nos marcos do capitalismo, ao contrário de elevar as condições de vida das amplas massas, as degrada? Sim, a premissa econômica da revolução socialista não só está madura como começa a apodrecer, como diz o Programa de Transição, agregando : “Sem vitória da revolução socialista no próximo período histórico, toda a civilização humana está ameaçada de ser conduzida a uma catástrofe. Tudo depende do proletariado, ou seja, antes de mais nada, de sua vanguarda revolucionária. A crise histórica da humanidade se reduz à crise de direção revolucionária.”
Parecem longínquas as polêmicas levantadas por stalinistas e revisionistas do trotskismo sobre a frase, pinçada do contexto, “as forças produtivas deixaram de crescer “, opondo a ela a “revolução técnica e científica” e dados de crescimento econômico. Ocorre que, para o marxismo, a premissa objetiva da revolução é a contradição entre as relações sociais de produção – capital explorando a força de trabalho sobre a base da propriedade privada – e as forças produtivas, sendo a principal delas o trabalho humano, que passam a ser asfixiadas e transformadas em forças destrutivas quando um sistema se esgota, colocando assim a necessidade histórica de um novo modo de produção e de uma nova sociedade.
Recusar que as condições objetivas para superar o capitalismo estão dadas, significa que tal sistema ainda tem o que oferecer, que é preciso conviver com ele, talvez distribuindo melhor a riqueza, mas sem tocar na propriedade privada. Basta olhar para o que ocorre no mundo neste século 21 para perceber-se a falácia de tal posição. O “próximo período histórico” de que fala o Programa de Transição abarca o atual momento que estamos vivendo.
A crise de direção revolucionária
Mas faltam as condições subjetivas para a revolução socialista, um partido revolucionário que ajude a dar aos trabalhadores consciência de classe e organização independente para liderar as massas exploradas e oprimidas na liquidação do jugo do capital. O atraso na necessária revolução socialista em escala internacional se deve à crise de direção revolucionária.
Foi a passagem das 2ª e 3ª Internacionais para o lado da burguesia que levou à criação da 4ª Internacional em 1938, reivindicando-se do Manifesto Comunista de Marx e Engels e das resoluções dos quatro primeiros congressos da Internacional Comunista, anteriores à sua stalinização (recordemos que Stálin dissolveu a IC em 1943).
A crise que levou à dispersão da 4ª Internacional em 1952/53, devido ao abandono de seu programa de fundação por dirigentes e grupos que alimentaram a miragem que a burocracia stalinista faria a “revolução à sua própria maneira em séculos de transição”, é claro, não ajudou a superar o obstáculo dos aparelhos contrarrevolucionários do stalinismo e da social-democracia à época.
Mas tal miragem foi destruída pela história, com o desabamento da URSS em 1991 por obra dos sucessores de Stálin. A 4ª Internacional, reconstituída em 1993, vive e luta sobre a base de seu programa original. E o faz hoje numa situação de crise aguda e mortal do imperialismo que coloca a questão da sobrevivência da humanidade.
Em 1939, Trotsky escreveu em “O marxismo e nosso tempo” : “Assim, para salvar a sociedade, não é preciso parar o desenvolvimento da tecnologia, nem fechar fábricas, nem dar bônus aos agricultores para sabotar a agricultura, nem transformar um terço dos trabalhadores, como mendigos, nem apelar aos tolos como ditadores. Todas essas medidas, contrárias aos interesses da sociedade, são desnecessárias. O que é indispensável e urgente é separar os meios de produção de seus atuais proprietários parasitas e organizar a sociedade segundo um plano racional. Depois disso, finalmente seria possível curar realmente a sociedade de seus males. Qualquer pessoa que saiba trabalhar encontraria trabalho. A duração da jornada diminuiria gradualmente. As necessidades de todos os membros da sociedade encontrariam possibilidades cada vez maiores de satisfação.”
Não é uma utopia, mas uma perspectiva realista, realçada nestes tempos de crise acelerada pela pandemia, em que o capital e os governos a seu serviço buscam a precarização sem limites, a destruição das conquistas sociais e trabalhistas, o abandono de milhões à própria sorte. Em nome da pandemia que foram incapazes de evitar, pois no período anterior liquidaram os serviços públicos de saúde e a proteção social, os defensores do sistema dizem querer “salvar a economia”, ou seja, o parasitismo do capital financeiro e seus lucros.
Governos temem explosões populares
Hoje os governos estão inquietos diante da indignação e da raiva que se acumula entre as massas populares diante das manipulações feitas em nome do combate à Covid-19.
Manipulações que, com maior ou menor grau de confinamento, apelam à “ciência” – como se a ciência não fosse prisioneira também das relações de produção capitalistas que a impedem de estar plenamente a serviço da sociedade – para dizer uma coisa e dias depois o seu contrário, mas sempre com os ataques em regra às já precárias condições de vida das amplas massas.
Em 2019, antes da irrupção da pandemia, explosões populares contra o sistema ocorreram na Argélia, no Líbano, no Iraque, no Chile e outros países. Agora, em plena pandemia, a explosão se deu no coração do imperialismo, os EUA, quando do assassinato de George Floyd pela policia racista, com impacto mundial. No Líbano, é retomado o movimento contra o sistema após a explosão no porto de Beirute.
Os governos, diante desses riscos de explosão popular, buscam associar as direções de sindicatos e partidos institucionais de esquerda a pactos sociais ou à “união nacional” para combater a pandemia e relançar a economia, dando bilhões aos capitalistas e cortando direitos conquistados pelos trabalhadores. As massas, nos países dominados e também nos países imperialistas, recebem golpes brutais e simultâneos dos quais nenhum setor, por mais organizado que seja, escapa.
Hoje, passados 80 anos do assassinato de Trotsky, milhões de militantes e de jovens não aceitam pagar o preço de submeter-se a um sistema apodrecido, mesmo que direções ligadas à social-democracia ou aos restos do stalinismo o peçam.
Nisso também reside a atualidade do Programa de Transição e seu método – partir das reivindicações parciais das massas, que se chocam com as tendências destrutivas do capitalismo, e dirigi-las contra as bases do regime burguês – como guia para a ação dos militantes da 4ª Internacional para ajudar, em todos os continentes, a reagrupar uma vanguarda que luta para arrancar o poder das mãos dos capitalistas para que a humanidade possa sobreviver.
20 de agosto de 2020
Julio Turra