Pobreza e desigualdade aumentam no Brasil pós-golpe

O IBGE publicou no início de dezembro o relatório da Síntese dos Indicadores Sociais (SIS) mostrando um assustador aumento não apenas da parcela da população vivendo em pobreza extrema, mas também da concentração da renda nas mãos de poucos. Desde o golpe de 2016, houve uma reversão da melhora – gradual, limitada, mas significativa – no quadro da justiça social levada a cabo durante os governos petistas.

Pobreza extrema acelera e bate recorde
A medida de pobreza utilizada pelo SIS-IBGE é aquela adotada pelo Banco Mundial: As pessoas cuja renda mensal em 2021 fosse inferior a R$ 486 estariam na pobreza – ou abaixo da “linha de pobreza”. E as que recebiam renda inferior a R$168 mensais estariam abaixo da “linha de pobreza extrema”. Assim, no ano passado, mais de 62,5 milhões de pessoas estavam na pobreza, dos quais 17,9 milhões estavam na extrema pobreza (respectivamente 29,4% e 8,4% dos brasileiros). Foram os maiores números e os maiores percentuais desde o início da pesquisa, há dez anos.

E entre 2020 e 2021 houve aumento recorde em ambos os grupos: Um novo contingente de 11,6 milhões de pessoas caíram para baixo da linha de pobreza e novos 5,8 milhões caíram na extrema pobreza (um crescimento anual de 22,7% e 48,2% respectivamente).

O percentual de “pretos e pardos” abaixo da linha de pobreza (37,7%) é o dobro da proporção de “brancos”. Das pessoas que vivem em domicílios chefiados por mães solteiras, 63% estava abaixo da linha de pobreza. As maiores proporções de pobres encontravam-se no Nordeste (48,7%) e Norte (44,9%), regiões que testemunharam também o maior aumento da extrema pobreza.

Pobres mais pobres, ricos mais ricos
Esse quadro só não é mais desolador do que é revoltante. Pois nesse mesmo período pós-golpe de 2016, os muito ricos foram concentrando em suas mãos parcelas cada vez maiores da renda nacional. O mesmo relatório SIS do IBGE apresenta dados reveladores do “índice de Gini”, que mede o grau de desigualdade na distribuição da renda entre os brasileiros.

Variando de 0 a 1, quanto maior for o índice de Gini, pior é a distribuição, ou seja, mais concentrada é a renda na mão dos muito ricos; e menos renda é recebida pela maioria da população. O gráfico abaixo mostra a evolução nos últimos anos do “Gini” no Brasil, comparado a (uma média de) alguns dos principais países vizinhos latino-americanos. A curva cinza representa o índice de Gini do Brasil sem considerar a renda transferida aos mais pobres pelos programas assistenciais emergenciais, como o Bolsa Família, o Auxílio Emergencial etc. A curva laranja representa o mesmo índice considerando todas as rendas recebidas pelas famílias, incluindo tais programas. A curva azul denota uma média (ponderada pelo tamanho de cada economia) de 12 países vizinhos latino-americanos e caribenhos.

Desigualdade brasileira é herança estrutural e histórica
A desigualdade na distribuição da renda (Gini) sempre foi muito alta no Brasil – um dos campeões mundiais de concentração de riqueza nas mãos de poucos bilionários. E sempre foi destacadamente acentuada mesmo quando comparada a seus vizinhos latino americanos – o que pode ser notado pelo quão inferior é o patamar da curva azul, dos demais latino-americanos. E isso, a despeito desses vizinhos – justamente por serem também economicamente “periféricos”, ou “atrasados”, e dependentes dos centros imperialistas – também padecerem de grande desigualdade de renda quando comparados a outros países, inclusive os demais periféricos (o Gini dos países do leste europeu gira em torno dos 0,35; e mesmo o da Índia, Malásia, Tailândia, Egito, Marrocos ou Nigéria, é próximo ou inferior a 0,4).

Em termos de concentração de renda, portanto, o Brasil consegue ser um dos piores dentre os piores. E isso tem certamente a ver com sua herança escravagista e sua histórica tendência à conservação das instituições e estruturas sociais reacionárias de poder desde o período colonial, cuja superação sempre foi feita em acordos por cima, praticamente sem (e à revelia) da mobilização popular, o que impediu reformas estruturais.

A tremenda desigualdade brasileira foi reduzida entre 2002 e 2015, quando o Gini cai de 0,6 a 0,52, o menor índice de desigualdade atingido pelo país – e que, entretanto, seguia ainda alto quando comparado internacionalmente. No período, países vizinhos também experimentaram redução de seus índices de Gini. O período coincidiu com o “superciclo” das commodities (produtos agrícolas e minerais típicos da exportação latino-americana), mas também com a ação de alguns governos eleitos na região com o apoio das mobilizações populares e da esquerda. O que permitiu – ao menos em alguns países – o redirecionamento de certas políticas econômicas a pautas sociais.

No Brasil, é bom lembrar, a redução da desigualdade foi facilitada por vários motivos, incluindo alguns até mais relevantes e efetivos do que os programas de transferências de renda aos muito pobres (Bolsa Família entre outros). Assim, a queda do Gini foi gerada sobretudo por fatores como: o mais intenso crescimento econômico, a queda do desemprego aliada à alteração na dinâmica demográfica (redução do crescimento da população trabalhadora urbana), a (re)formalização do mercado de trabalho – conectado a um início (ainda que não muito sustentável) de reindustrialização – e a aprovação (no governo Lula) da recuperação do Salário Mínimo. Esse ambiente propício foi resultante em parte de contingências exógenas – demografia e conjuntura externa mais favoráveis – e em parte de políticas governamentais (macroeconômicas expansionistas e distributivistas) combinadas com a (ou por vezes obtidas pela) mobilização popular.

Ademais, a melhora, ainda que limitada, de serviços públicos (Educação, SUS etc) ajudaram também a impulsionar tal ambiente. Que permitiu assim a elevação dos salários acima da inflação e em geral acima mesmo da produtividade (que crescia com o PIB) durante o Lula-Dilma. Algo fundamental na melhora da distribuição da renda nacional: a parcela desta última auferida pelos salários dos trabalhadores cresceu vis-à-vis àquela auferida pelos lucros dos capitalistas – ou seja a taxa de exploração (relação lucro/salário) caiu no período 2002 a 2015.

Golpe de 2016 e ataques a direitos
Com o golpe de 2016, o Gini volta a subir consistentemente, retomando um patamar de 0,55 em 2021. A forte desaceleração dos investimentos privados com a queda do ciclo de lucratividade, aliada à quebradeira gerada pela Lava-Jato e pelo ajuste fiscal (Levy-Temer-Bolsonaro) geraram uma forte recessão e, portanto, um forte aumento do desemprego e do subemprego. Junto com isso, as contrarreformas trabalhistas e previdenciárias ajudaram na (re)informalização intensa do mercado de trabalho e na queda do salário real.

Os cortes sociais no Orçamento público (com o Teto de Gastos) tornaram ainda mais vulnerável a vida das famílias trabalhadoras – enquanto os bilionários, o agronegócio e a especulação financeira seguiam elevando seus lucros. Tudo isso, levou o Gini a percorrer o caminho oposto àquele vivenciado no período dos governos petistas.

Impacto diferenciado dos programas de renda
É interessante notar no gráfico, ao compararmos a curva cinza com a laranja, que no período de baixo desemprego – sobretudo no Lula II e Dilma I -, os programas de transferência de renda, ainda que justos e apropriados, não tinham impacto tão acentuado. O Gini vinha caindo e cairia mesmo sem tais programas. Mas no período da forte recessão pós-golpe de 2016 e particularmente na fase aguda da pandemia, tais programas, quando implementados, amenizaram muito a desigualdade de renda. Em 2020, no auge das quarentenas e do desemprego, o Gini – que deveria ter, portanto, disparado a 0,58 (como indica a curva cinza) – acabou caindo a 0,524 graças ao Auxílio Emergencial. Que, lembremos, fora proposto pela oposição no Congresso, com a resistência de Bolsonaro-Guedes na aprovação e, depois, na implementação.

Os governos petistas implementaram políticas que, ao potencializar o ambiente favorável externo e de crescimento, elevaram salários e expandiram serviços, reduzindo assim a pobreza e a desigualdade. Mas como reformas estruturais não foram realizadas, as classes dominantes e os capitais financeiro e internacional, foram capazes de facilmente deslanchar, a partir do golpe por eles orquestrado, a reversão dessas conquistas. O desafio do novo governo Lula será o de, com o povo mobilizado nas ruas, forçar tais reformas de modo a garantir que a redução da pobreza e da desigualdade sejam permanentes e bem mais profundas.

Alberto Handfas

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