Foram cerca de 1.400 pessoas presas após a tentativa de golpe no domingo, 8 de janeiro, e no dia seguinte, no acampamento em frente ao Exército no Distrito Federal (mais algumas centenas haviam sido detidas e liberadas). A partir do dia 20 de janeiro, 942 seguem presos: tiveram sua prisão em flagrante convertida em preventiva – sem prazo determinado – pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. Outros 464 obtiveram liberdade provisória mediante medidas cautelares, como uso de tornozeleira eletrônica e a suspensão imediata de porte de arma.
As investigações seguem em curso. No mesmo dia 20, a Polícia Federal cumpria mandados de prisão e de busca em cinco estados e no Distrito Federal, contra suspeitos de terem financiado a invasão golpista e planejado ataques a refinarias, portos e aeroportos. A Justiça Federal ainda ampliou para R$ 18,5 milhões o valor em bens bloqueados de suspeitos de financiar a tentativa de golpe, em atendimento a pedido da Advocacia-Geral da União (AGU). Valor que conforme o resultado do julgamento pode se transformar em confisco.
Incitação bolsonarista
Enquanto isso, depois de anos de omissão, um grupo da Procuradoria-Geral da República (PGR) criado após a invasão dos Três Poderes em Brasília afirma que reúne elementos para denunciar Jair Bolsonaro pela incitação à tentativa de golpe.
Augusto Aras, o Procurador Geral da República, teve uma notória inação após os atos em que Bolsonaro anunciava suas intenções golpistas, arquivou as denúncias contra o governo apresentadas pela CPI da Covid, etc. Mesmo agora, o PGR demorou dias para tomar as primeiras ações, e só o fez por pressão da sociedade e de um conjunto de procuradores: 80 deles assinaram uma representação para incluir Bolsonaro no inquérito que apura a autoria intelectual do ataque.
Já a Polícia Federal investiga o ex-presidente, o ex-Secretário de Segurança do DF, Anderson Torres, e outras autoridades que apoiaram a investida golpista ou se omitiram, como o governador afastado do DF, Ibaneis Rocha. Além disso, o governo federal diz que vai encaminhar denúncias de divulgação de fake news para identificação e responsabilização dos autores, o Ministério da Justiça vai monitorar as investigações referentes às agressões a profissionais da imprensa e a Controladoria Geral da União orientou todos os órgãos públicos a apurar a participação de servidores no quebra-quebra e, que se houver confirmação, haja abertura de processo administrativo para demissão.
Sem anistia
Exige-se que não haja impunidade a qualquer um dos envolvidos na tentativa de golpe de 8 de janeiro, isso é certo. Incluindo os líderes políticos que organizaram e continuaram organizando grupos fascistas. Em si, já é uma tarefa e tanto, que pode se apoiar nos 93% da população brasileira que foram contrários à invasão, segundo o Datafolha.
É impensável que o governo e o judiciário ajam com “tolerância”, como apregoa Nelson Jobim, ex-ministro da Justiça e da Defesa e ex-presidente do STF. Ele prega que “se o governo e os democratas começarem a agir com uma retaliação generalizada vamos ter uma radicalização, e aí isso fortalece o Bolsonaro”.
É o contrário: sem um acerto de contas, os fascistas vão seguir em frente com seus planos de golpismo e sabotagem, a curto ou longo prazo. É urgente e incontornável cortar o mal pela raiz, ir até o fim na apuração e condenação de todos os envolvidos no intento golpista.
Começa por aí. Mas nunca é demais lembrar: o grito da massa que deu o tom do mês de janeiro – “sem anistia!” – foi proferido ainda no dia primeiro de janeiro. Empolgou milhões e foi repercutido por todo o Brasil logo no início do novo governo, mesmo antes da tentativa de golpe.
Ele se referia a toda a destruição promovida pelos bolsonaristas ao longo dos últimos quatro anos, sobre a qual, convenhamos, Congresso e judiciário colocaram panos quentes, incluindo o ora celebrado ministro “Xandão” e os “neoaliados”, Lira e Pacheco.
O canto “sem anistia!” veio da multidão após Lula citar, em seu discurso, os crimes políticos cometidos pelo último governo, segundo o relatório da equipe de transição: os recordes de feminicídio, os retrocessos nas políticas de igualdade racial, a falta de vacinas e de recursos para a compra de merenda escolar, de verbas para as universidades.
“Sem anistia” ao conjunto de crimes eleitorais, como a compra de votos e o assédio dos patrões que, segundo o MPT, continuou ocorrendo mesmo após a eleição, com denúncias de coação de empregados para participação nos atos golpistas. “Sem anistia” para os crimes na pandemia. “Sem anistia” para o genocídio contra os povos yanomami e todos os outros povos indígenas.
“Sem anistia”, porque hoje, em amplos setores, há a compreensão de que muito do que estamos vivendo se calca na falta de punição dos crimes da ditadura militar.
Limpar a casa
Por isso é tão importante medidas como a tomada por Silvio Almeida, Ministro dos Direitos Humanos, que reformulou a Comissão Nacional de Anistia (de reparação a vítimas ou familiares de vítimas de perseguição durante a ditadura militar) como uma das primeiras ações de seu ministério.
Almeida afastou os militares, que formavam a maioria do colegiado durante o governo Bolsonaro e não reconheciam a ditadura, chamando os requerentes dos pedidos de indenização de “terroristas”. Entre eles, está o general Luiz Eduardo Rocha Paiva, amigo do torturador Brilhante Ustra. Em todas as sessões da Comissão, o general levava o livro de memórias de Ustra.
Entre 2019 e 2022, dos 4.285 processos julgados pela Comissão, 4.081 pedidos de indenização foram negados, inclusive o de Dilma. Entre os novos indicados por Almeida, estão vítimas da ditadura militar e especialistas em justiça de transição.
Em sentido similar está a demissão da então diretoria da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) – a qual incluía militares de carreira – antecipada por “opções editoriais” durante e após a tentativa de golpe. Interinamente, assumiu a presidência da empresa Kariane Costa, representante eleita dos empregados no Conselho de Administração da EBC, que estava sofrendo perseguição e tentativa de demissão por parte da antiga diretoria por encaminhar denúncias de assédio moral contra os funcionários.
São passos corretos, mas a situação exige ir mais longe. Como a necessária reforma da Forças Armadas.
Priscilla Chandretti