Trabalho escravo chega ao maior patamar neste século no Brasil

18 anos depois da chacina de Unaí, auditores fiscais enfrentam falta de verbas e pessoal

Éramos doze. Falei que o cabra estava mal, nem conseguia levantar da rede. Daí o fiscal ficou bravo. Com um pedaço de ferro, pegou uma brasa e partiu para queimar o menino. Eu disse para ele: ‘Não leve, não. Se levar, você morre’. O rapaz já era escravo, ainda ia ser queimado por um tição de fogo? Você não faz isso com ninguém, nem com bicho. Se machucasse um de nós, os outros iam reagir. E eles tinham armas. Ia dar o pior de tudo. Ele deixou a brasa, mas foi até a rede e sacudiu para o cara levantar.”

Esse é Francisco das Chagas, resgatado de trabalho em condições análogas à escravidão na fazenda Brasil Verde no ano 2000, em relato ao projeto “Repórter Brasil”. 

Francisco narra uma situação que está longe de ser um caso isolado no país. Só no ano de 2021 foram resgatadas 1.937 pessoas nessas condições. Os dados foram divulgados em 28 de janeiro deste ano, dia nacional do combate ao trabalho escravo.

A data marca a chacina de Unaí, quando os auditores fiscais Eratóstenes de Almeida, João Batista Soares e Nelson José da Silva, além do motorista Ailton Pereira, foram assassinados. 18 anos depois o crime segue impune. Os condenados, alguns confessos, recorrem em liberdade.

Minas, palco da chacina, foi o campeão de trabalhadores resgatados do trabalho escravo neste ano, somando 768 pessoas. Na sequência, Goiás (304) e São Paulo (147).

Precarização do trabalho dos auditores
Esses recordes ocorrem em meio a uma ofensiva contra os Auditores. Lucas Reis, diretor do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho denuncia que “os ataques do Governo Bolsonaro à fiscalização começaram desde o primeiro dia de seu governo. O último concurso aconteceu em 2013. De lá para cá, o quantitativo tem sido reduzido drasticamente. Atualmente, há 2.091 Auditores-Fiscais do Trabalho na ativa. Existem, vagos, um total de 1.553 cargos aguardando o preenchimento.”

E o problema não é só o número de trabalhadores, mas também da redução de verbas ao setor. De acordo com Lucas “em 2018, o orçamento para combate ao trabalho escravo, era de R$2,6 milhões. Em 2019, caiu para R$2,3 milhões. Em 2020, foi drasticamente reduzido para R$1,3 milhão. Em 2021, não houve rubrica específica no orçamento voltada para o combate ao trabalho escravo. Essa rubrica foi incorporada pelas ações de inspeção de segurança e saúde no trabalho como um todo, no total R$ 24,1 milhões. O menor valor desde 2013 quando foi iniciado o registro.” 

Crescimento de resgatados se impõe
Apesar dessa degradação das condições de trabalho dos auditores e do corte de verbas, o crescimento do número de resgatados de 2020 para 2021 foi de 106%. 

Para o ex membro do grupo móvel nacional de combate ao trabalho escravo, este aumento “é reflexo direto do aumento da miséria, da fome e do desemprego no Brasil que escalaram a níveis alarmantes. O trabalho escravo contemporâneo se nutre da pobreza extrema e da miséria. Na medida em que isso se amplia, aumenta também a vulnerabilidade diante da superexploração”.

Lucas completa essa análise lembrando que “além disso, a reforma trabalhista de 2017, imposta à força pelo Congresso Brasileiro depois do golpe contra Dilma, abriu as porteiras da terceirização, dos contratos intermitentes, da falsa ideia de primazia do negociado sobre o legislado. Mesmo as normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho, responsáveis por orientar questões de segurança e saúde do trabalho, tem sido questionadas. São os trabalhadores mais vulneráveis à pobreza e à miséria que sofrem os impactos da reforma trabalhista de forma mais contundente e são submetidos a condições de escravidão contemporânea.”

E é no trabalho rural que isso se expressa de forma mais grave. 89% dos trabalhadores resgatados contra 11% no meio urbano. Completa o perfil a informação de que 80% dos resgatados são negros e 47% nordestinos. 

Escravidão com conivência das instituições
Desde 2014 uma Emenda Constitucional prevê a expropriação da propriedade em que houver constatação de trabalho escravo contemporâneo. Mas nenhuma jamais foi expropriada por essa razão. Quando o Incra tentou abrir um processo para este fim, a Advocacia Geral da União argumentou que a emenda não havia sido regulamentada. Enquanto isso o Congresso marca passo com projetos que regulamentariam a emenda, mas estão tramitando desde 2019 no Senado. 

Já Bolsonaro, também em 2019, foi categórico ao dizer que não regulamentaria a emenda em seu governo. Segundo o presidente, o empregador “não quer maldade para o seu funcionário nem quer escravizá-lo”. 

Luã Cupolillo

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