Por Alberto Handfas
Só a luta dos trabalhadores pode derrotar o capitalismo e exterminar o fascismo
As tropas russas invadiram a Ucrânia para uma “desnazificação”, como diz Putin? Das alegações da propaganda de guerra, essa parece ter convencido algum setor político, ainda que bem minoritário, na sociedade e na opinião pública progressista no Brasil. Mas ela é verdadeira?
É fato, sim, há na Ucrânia uma expressiva atuação de grupos de caráter fascista, racista e nacionalista xenófobo. E não é de hoje. Há duas décadas pelo menos, tais grupos são ativos e agem como milícias armadas. Mas basta observar de perto para ver que a invasão unilateral de Putin não visa enfrentar o problema. Ao contrário, ela pode intensifica-lo.
Oligarquias e diversionismo fratricida pós-soviético
O ultranacionalismo ucraniano, como em outras partes do leste europeu, notadamente na própria Rússia, refloresceu após o fim da União Soviética (URSS) em 1991.
A casta de privilegiados na cúpula do partido único, existentes desde Stalin como parasitas sociais, almejava transformar-se em classe capitalista. Ainda antes da dissolução soviética, os membros do Bureau Político (BP) do PCUS já acumulavam, via pilhagem, no enorme mercado negro. Este, existente por décadas, ganhou contornos muito expressivos enquanto Gorbachev preparava a restauração capitalista – finalizada enfim por seu sucessor e coveiro final da URSS, Boris Yeltsin (cujo governo, Putin viria a compor e cogerir).
Os dirigentes do PCUS e dos PCs das repúblicas, regiões e municipalidades, além da alta nomenclatura do estado tornaram-se enfim capitalistas: “mafiosos” no começo, ao se apropriarem de riqueza ilegítima (mercado negro, onde as diferenças eram resolvidas à bala); e “oligarcas” depois, ao legalizarem suas riquezas, ainda que em esquemas ilegítimos e corrompidos/fraudulentos de privatização. Do dia para a noite, viraram multibilionários em escala planetária apenas com a apropriação (roubo, a bem dizer) da antiga e extensa propriedade social das repúblicas soviéticas como se fossem legatários do patrimônio estatal, cada dirigente de “sua” república, região etc.. E assim, membros dos BP do PCUS – bem como dos PCs de cada república – transformaram-se em nacionalistas burgueses radicais em um passe de mágica.
Com as privatizações em massa e a destruição dos serviços públicos e dos direitos trabalhistas, agigantaram-se o desemprego, a pobreza e as desigualdades sociais e de renda.
Na ausência de verdadeiros partidos políticos de massa comprometidos com os interesses da classe trabalhadora e dos povos da ex-URSS, bem como de centrais sindicais representativas, independentes e implantadas na base, o povo trabalhador encontrou-se indefeso. Isso a despeito de greves e lutas salariais numerosas e poderosas (algumas heroicas). A enorme confusão política criada com tal situação junto às massas trabalhadoras abriu um terreno fértil para o aventureirismo e a demagogia nacionalista oportunista.
Assim, os oligarcas e seus representantes governamentais, em cada república e em cada região, passaram a usar e abusar de tal demagogia nacionalista como um instrumento não apenas em disputas por controle político-econômico regional, mas também de distração das massas e sobretudo de divisão da classe trabalhadora (ex-) soviética. Aliás, de outro modo, é o que também fazem as burguesias no resto do mundo, criando cizânia entre a gente comum.
Na Ucrânia, em particular, por ser uma república com recursos econômicos (militares, políticos etc) bem menores que a “Mãe-Rússia”, os grupos oligárquicos locais tenderam a associarem-se a potências externas, a depender de seus interesses e ligações político-econômicas; seja ao grande capital dos EUA ou da União Europeia (EU), seja aos neocapitalistas da Rússia. Cresceram então tanto as conexões diretas com as potências “ocidentais” (via joint-ventures, financiamentos etc), quanto com os oligarcas da Federação Russa, vizinha enorme e principal parceira comercial. Por tais mecanismos, tais potências passaram a influenciar, financiar e até a manipular não apenas a política institucional ucraniana, mas também milícias ultra-nacionalistas. Tanto fascistas anti-russos, quanto fascistas pró-russos – a depender de quem paga a banda.
Euromaidan, golpe, Criméia e “Nova Rússia”
Ao final de 2013, ao se recusar a assinar a adesão à UE, o presidente Yanukovych (ligado ao setor mais russófilo da oligarquia ucraniana) atraiu a ira da classe média, iludida com tornar-se “parte da Europa”. Também descontentes com a situação social, centenas de milhares de diferentes estratos sociais tomaram as ruas em protestos e entraram em choque com a polícia em um movimento que passou a ser conhecido como “Euromaidan”.
Embora bem minoritários na sociedade e mesmo entre manifestantes, grupos de extrema direita anti-russa, incluindo milícias neonazistas, financiados por parte da oligarquia oposicionista e por agentes pro-EUA, aproveitaram-se da situação para disputar a liderança das mobilizações, cada vez mais violentas. Em fevereiro de 2014, o presidente foi derrubado num golpe articulado no Departamento de Estado dos EUA. Dias depois ele exila-se, claro, na Rússia.
Em resposta, Putin mandou, pelo mar, tropas russas invadirem e tomarem a Criméia (vide mapa), rica e estratégica região do sul da Ucrânia – península no Mar Negro, espécie de mediterrâneo milenar russo (1). Ao mesmo tempo, sobretudo na região oriental do país de maioria russófona, parcelas da população atacadas por milícias fascistas pró-golpe, resistiram ao golpe em mobilizações de rua. Aproveitando-se de tal movimento espontâneo, milícias também de tipo fascistóide – financiadas pela parcela pró-Yanukovych da oligarquia e diretamente pelo regime Putin – auto-proclamaram a criação de duas “repúblicas populares” (do Donetsk e de Luhansk) no Donbass – sudeste do país (2).
Além de ser região com alta concentração de indústria pesada, intensa em capital e tecnologia e com mão de obra qualificada, o Donbass detém cobiçadas riquezas minerais. Apenas as reservas conhecidas de lítio nas montanhas do Donetsk (metal chave para o carro elétrico), que a Rússia atualmente compra na China e no Afeganistão, são avaliadas em US$ 300 bilhões (3) (NYT, 22/2/2022).
A criação destas “repúblicas populares” foi, uma tentativa consciente de fraturar a nação ucraniana por parte do governo russo e seus operadores e milicianos dentro da Ucrânia (algo diferente da ocupação da Crimeia, acima mencionada). Com isso, multiplicaram-se conflitos violentos entre milícias contra e pró-Rússia, e entre elas e manifestantes (sobretudo russófonos, mas não apenas). Em maio de 2014, a milícia anti-russa fascista “Setor Direita” (“Pravy Sektor”) massacrou dezenas de ativistas contrários ao golpe no porto de Odessa, ao Mar Negro.
No mesmo mês, novas eleições levaram à presidência Porochenko, um bilionário e direitista nacionalista anti-russo. Já no início do mandato, seu ministro do interior incorporou à Guarda Nacional a principal milícia ultranacionalista anti-russa, o Batalhão Azov (com cerca de mil soldados organizados pelo neonazista Andriy Biletsky) que – agora com recursos de estado – passou a operar uma guerra de reconquista à Ucrânia de Donetsk e Luhansk contra as milicias separatistas pró-Putin. Entre 2014 e 2020, milícias de ambos os lados foram responsáveis pela morte de cerca de 14 mil pessoas nessa região do Donbass, sendo boa parte de civis – a maioria sequer tomou parte no conflito, mas que, por viver na região, foi pega no fogo cruzado. Após a saída em massa de refugiados (tanto à Ucrânia, quanto à Rússia) em quase uma década, não se sabe quantos habitantes originais ainda permaneciam nos enclaves em fevereiro de 2022.
Fascistas pró-Otan, fascistas pró-Putin
Em 2019, cansada desse conflito sangrento, 73% da população rejeitou a reeleição do ultranacionalista Poroshenko, levando Zelensky à presidência. Mas Zelensky, um ator que representa os oligarcas, inclusive da mídia, não mudou a política do antecessor. Sobre ele, aliás, começaram a abundar denúncias no último período sobre os laços do círculo dirigente de Kiev, a capital do país, com a atividade bancária em criptomoedas – uma política de Estado com, digamos, um viés cleptocrático.
Nenhum desses dois presidentes, nem seus oligarcas patrocinadores ucranianos “pró-ocidente”, muito menos as milícias fascistas (Batalhão Azov, Setor Direita e outros seguidores de Stepan Bandera, nacionalista fascista que apoiou Hitler na Segunda Guerra Mundial), defende de fato a auto-determinação nacional da Ucrânia. O que eles defendem mesmo é a entrada na Otan e/ou na UE. Defendem os interesses econômicos do grande capital internacional e da oligarquia ucraniana a ele associada. Todos eles estão levando o país a um beco sem saída.
Já, de sua parte, o regime de Putin e seus representantes milicianos nas autoproclamadas “repúblicas” no Donbass (“Nova Rússia”, o nome dado à região pelo colonialismo czarista e agora resgatado pelo governo Putin) não lutam contra o imperialismo, nem tampouco combatem o nazi-fascismo. São apenas instrumentos da oligarquia russa, tão criminosa quanto a ucraniana – ambas surgidas da restauração do capitalismo pela burocracia stalinista que desmantelou a URSS. A guerra fratricida promovida por ambas oligarquias governantes, ucraniana e russa, tenta em seu benefício próprio dividir os povos. Embora, lembremos, foram as tropas russas que invadiram unilateralmente, sem aviso, de forma fria e premeditada, a Ucrânia neste 2022.
A propósito, as milícias separatistas do Donetsk são elas próprias extremistas e nacionalistas de direita com laços obscuros com o Kremlin e movimentos de direita em Moscou. O primeiro governador da “República Popular de Donetsk” (RPD) foi Pavel Gubarev, líder do movimento pró-Rússia na Ucrânia. Ele é membro da organização neonazista e antissemita Unidade Nacional Russa e líder do Partido Nova Rússia (PN), que tem dentre seus ilustres apoiadores os expoentes da extrema-direita russa Alexander Prochanov e Alexander Dugin (ideólogos do regime Putin).
Mas a RPD imita a Rússia de Putin até no papel que atribui a seu Partido Comunista (PCRPD), que de comunista só tem o nome: formado por viúvas de Stalin, de fato marionetes de Putin – que o povo chama de “marrom-vermelhos”: marrons por dentro, vermelhos só na embalagem. Boris Litvinov, principal dirigente do PCRPD foi um dos co-autores da auto-proclamação da RPD, compondo seu ministério. Em uma entrevista em julho de 2014, ele defendeu total “respeito à propriedade privada” e elogiou Rinat Akhmetov, o oligarca mais rico da Ucrânia (proprietário das privatizadas minas de carvão do Donbass) por “entender as preocupações dos negócios; o ideal é que os políticos não intervenham nas estruturas empresariais” (4).
O ministro da defesa da RPD em 2014, Igor Girkin é um funcionário russo da FSB (ex-KGB) com serviços prestados na Transnístria (sob separatismo russo na Moldóvia), Bósnia e Chechênia. De volta à Moscou, ele criou o partido de extrema-direita, neo-imperialista russo “Movimento Nacional Russo”, cuja meta é “unir a Federação Russa, Ucrânia, Bielorrússia e outras terras russas em um único estado de toda a Rússia”. Já o ex-primeiro-ministro da RDP, Aleksandr Borodai é um ideólogo nacionalista russo. Além dos membros oficiais no “governo” das “repúblicas” do Donbass, nelas atuam também várias milícias de ultra direita financiadas pelo Kremlin. Uma das mais conhecidas é o Grupo Wagner, rede de mercenários ultradireitistas, considerada uma guarda privada diretamente ligada a Putin. Eles ganharam destaque ao auxiliarem as forças separatistas no Donetsk/Luhansk em 2014 e 2015 (5).
Com a invasão total de Putin neste ano, a guerra tornou a Ucrânia numa Meca a grupos fascistas, e a mercenários de vários cantos, que para ali peregrinam para “treinar” com seus correligionários extremistas ucranianos ou russos, em ambos os lados.
Conflito étnico é artificial
A imensa maioria da população e da classe trabalhadora ucranianas não vê sentido nessa guerra fratricida e nela não se sente engajada. Por décadas, as várias etnias que compõem a Ucrânia – particularmente os ucranianos ucranófonos e os ucranianos russófonos (majoritários, respectivamente, no norte / oeste e no leste do pais) – conviveram fraterna e harmoniosamente, reivindicando igualmente a nação ucraniana.
Claro que há animosidade contra opressões imperiais, como a “grão-russa”, a glória do Império, denunciado como “prisão dos povos” por Vladimir Lenin. Ela existe desde os tempos dos czares, mas fora revertida no período inicial da Revolução de Outubro, quando Lenin conseguiu aprovar o direito a uma república socialista e independente ucraniana. Até que o espírito “grão-russo” retornasse com Stalin. O ditador mandou massacrar milhões de camponeses através da coletivização forçada, das transferências impostas a milhões de seus territórios, e da fome (não apenas mas sobretudo) dos ucranianos nos anos 1930 (6). Agora, a atitude “grão-russa” volta com o neo-czarismo putinista. Se é verdade que a Otan se aproveita disso para se legitimar e se imiscuir na política interna da Ucrânia, Putin tem feito o mesmo desde antes do golpe de 2014, sem qualquer legitimidade.
O fato é que o conflito étnico na Ucrânia foi em boa medida fabricado artificialmente contra, inclusive, a autodeterminação nacional. Tanto é que mesmo a população russófona não recebeu com flores os tanques russos, mesmo nas regiões em que são maioria étnica como no Donbass, em Kharkov, em Kherson – muito pelo contrário: manifestações populares se multiplicaram contra a invasão de Putin (7).
A luta contra o fascismo e a guerra só podem se dar a partir da luta popular e da classe trabalhadora pelo respeito à autodeterminação nacional dos povos, com a imediata retirada das tropas invasoras russas. O que não diminui, ao contrário, engrandece a exigência popular na Europa Ocidental (e nos EUA) da dissolução da OTAN, uma organização belicista (responsável por reincidentes crimes contra a humanidade) que não deveria existir.
Tudo isso exige a mobilização política internacionalista contra o capitalismo. Nem Putin, nem Zelensky, nem as oligarquias russas, e muito menos a Otan podem resolver isso. Eles são os responsáveis pela guerra assassina.
1) A Criméia tem uma história diferenciada da Ucrânia, inclusive por essa geografia e pela língua, que não cabe nos limites deste artigo. Ela era parte da República Russa na URSS, até que Kruschov, sucessor de Stálin à cabeça do partido e do estado, em 1954, resolveu dar a Criméia à República da Ucrânia na URSS, a fim de acomodar conflitos na burocracia soviética. Por outro lado, há vários pequenos “enclaves” russófonos (não russófilos) em várias regiões do antigo império czarista, não apenas na Ucrânia -como a região do Donbass – mas também na costa do mar Báltico – Estônia, Letônia, Lituânia e Kaliningrado – ou na Moldóvia – Transnistria.
2) As respectivas populações em 2014 de Donetsk e de Luhansk eram 2,5 e 1,3 milhões de habitantes. A da Ucrânia, ao todo, era de 45 milhões.
3) Publicado no New York Times
4) Veja em: https://profile.ru/politics/pod-vneshnee-upravlenie-7418/
5) Disponível em: https://www.economist.com/the-economist-explains/2022/03/07/what-is-the-wagner-group-russias-mercenary-organisation
6) Fome ocasionada com a extração forçada dos camponeses de escorchantes excedentes a serem exportados à Alemanha hitlerista (com a qual Stalin preparava já uma aliança).
7) No vídeo, manifestantes ucranianos na cidade ocupada por tropas russas, gritam aos tanques de Putin: “Soldados russos, invasores fascistas!”