Primeiras impressões sobre a PEC da Reforma Tributária

Com alguns itens positivos e outros negativos, Parecer da Câmara adia possível progressividade

A Câmara dos Deputados aprovou e enviou ao Senado, no dia 07/07, o Parecer do Relator da Proposta de Emenda à Constituição (PEC-45) da Reforma Tributária. Deram a ele maioria esmagadora, além do grosso do Centrão e suas bancadas apoiadas pela Febraban, Fiesp/CNI, ruralistas e grande mídia, também os partidos de esquerda (PT, PCdoB e maioria do PSOL). Já os bolsonaristas “raiz” votaram contra, não por motivos programáticos, mas por mera birra.

O governo Lula, no quadro de sua opção de essencialmente limitar sua ação ao jogo da “governabilidade no presidencialismo de coalizão” (com a sempre adversa e fisiológica maioria parlamentar reacionária), obteve aí uma vitória política – ao menos momentânea. Tanto ao lograr isolar o bolsonarismo mais radical, quanto ao fazer avançar algumas metas pontuais no Parecer. Ao observa-lo mais de perto, contudo, nota-se que o texto aprovado traz inúmeras contradições, limitações e sobretudo postergações no que diz respeito à batalha histórica pela progressividade tributária (fazer os ricos pagarem mais e os pobres menos).

Esse adiamento, uma imposição do grande capital e seus porta-vozes na Câmara, foi aceito pelo ministro Haddad. Ele e os demais articuladores e operadores (das bancadas de esquerda) na tal “governabilidade” acordaram com o Centrão o fatiamento da Reforma de modo a aprovar já em julho, em emendas à Constituição, alguns princípios gerais de simplificação e racionalização tributária mais consensuais e prorrogar ao final do ano e à legislação ordinária, os temas polêmicos e efetivamente definidores. Dada a correlação de forças no Congresso, entretanto, é difícil crer que tal postergação ajude a batalha pela progressividade. A não ser que o governo inverta suas prioridades e, ao invés de se dedicar exclusivamente ao jogo interno do parlamento e demais instituições podres, passe a focar muito mais na mobilização popular. Necessitaria, assim, junto com as bancadas de esquerda e seus partidos, jogar-se corpo e alma nas próximas semanas e meses ao impulsionamento de forte mobilização popular nas ruas para “taxar os ricos e desonerar os pobres!” – e “coloca-los no orçamento”, embora isto dependa também de reverter o Arcabouço Fiscal.

Aspectos positivos, mas jogados ao futuro incerto
A PEC, portanto, não trata da tão necessária progressividade tributária. Essencialmente, ela apenas procura simplificar tributos. É verdade que foi incluído no Parecer a determinação de que, a partir da promulgação da EC, “o Executivo terá 180 dias para apresentar um projeto de lei de reforma da tributação sobre a renda”. Também se jogou a futuras leis complementares a definição tanto da “Cesta Básica Nacional” de alimentos a serem isentos, quanto a definição de itens essenciais à população de baixa renda que – muitas vezes já (parcialmente) desonerados – serão objeto de um mecanismo de devolução de impostos (“cashback”).

Isso tudo é positivo, pois abre uma brecha à luta por justiça tributária. Mas não há qualquer garantia de que a maioria reacionária do Congresso, depois de aprovar a simplificação da atual PEC – que também interessa ao grande capital – vá se empenhar em aprovar elevação de impostos aos bilionários e especuladores. Ademais, há enormes riscos dos ruralistas imporem seus produtos – à exportação e/ou com agrotóxicos – entre os itens da “Cesta” isenta.

Simplificação, indústria e (em 50 anos!) equilíbrio regional
Quanto à simplificação, a PEC substituirá cinco tributos atuais por dois Impostos sobre Valor Agregado (IVAs): a CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) e o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) a serem respectivamente gerenciados pela União e co-gerenciados pelos estados e municípios. Nos dois casos, haverá um período de transição para que se possa testar e avaliar as novas alíquotas de “referência” a serem cobradas em cada caso. Essa transição permitiria calibrar as alíquotas de maneira a sempre manter a atual carga tributária total. Enquanto não se aprovem leis (federal, estadual e municipal) definindo as alíquotas definitivas da CBS e do IBS, caberá ao Senado fixar tais alíquotas de “referência”.

A transição inicia-se já em 2026. Até 2027, a CBS terminará de substituir os impostos empresariais PIS (para financiar seguro-desemprego, abono e outros auxílios), Cofins (ao financiamento da Seguridade Social) e IPI (sobre produtos industrializados) – por ora, excetuando-se deste último os produtos da Zona Franca de Manaus. E até 2033, o IBS substituirá os atuais ICMS (estaduais) e ISS (municipais). Até lá, as alíquotas destes últimos dois vão ser, ano a ano, escalonadamente reduzidas a zero; enquanto a do IBS é elevada até as substituir por completo.

Nesse período também haverá uma redução paulatina (até sua extinção) dos benefícios fiscais concedidos por estados e municípios – que geraram nas últimas décadas as “guerras” fiscais. Para compensar o eventual fim de atuais vantagens – obtidas tanto por entes federativos menos desenvolvidos, favorecidos por tais “guerras”, como pelo futuro fim da arrecadação na origem, que atualmente favorece entes mais industrializados, será formado um Fundo de Desenvolvimento Regional. Financiado pelo governo federal, ele será de responsabilidade de um “Conselho Federativo” com representantes de cada um dos estados (e DF) e de municípios – parte dos quais eleitos proporcionalmente ao tamanho da população.

Também escalonada (porém apenas no longínquo 2029 a 2078!), será a transferência da cobrança dos impostos da origem ao destino (ou seja, de onde ocorre a produção – como é hoje – para onde ocorre o consumo) algo que favorecerá regiões menos desenvolvidas, permitindo melhor distribuição regional da renda. Isso junto com a simplificação (CBS e IBS) podem em tese trazer três vantagens à nação. A primeira seria a de transferir parte da carga tributária do setor industrial ao de serviços – o que, a rigor, poderia facilitar um pouco a reindustrialização. A segunda seria reduzir as possibilidades de evasão e facilitar a fiscalização. A terceira, que seria a de favorecer regiões menos desenvolvidas, foi lamentavelmente, como explicado acima, postergada… às próximas gerações.

Outros aspectos positivos inclusos no texto são as cobranças de imposto sobre (IPVA) jatinhos, lanchas/jet-skis e iates (artigos de luxo hoje escandalosamente isentos) e sobre (ITCMD) heranças de forma progressiva e a criação de “imposto seletivo” – a recair sobre itens prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, mas que também ainda necessitará de (incerta) definição por regulamentação complementar.

Isenções progressivas e regressivas
O Parecer ainda estabeleceu corte de 60% de IBS e CBS a uma lista de serviços e bens, como transportes, medicamentos, educação privada, insumos agropecuários. E isentou por completo outra lista incluindo alguns itens justos, como medicamentos e alimentos especiais, absorventes, Prouni; e bem outros injustos, como produtor rural com receita anual até R$ 3,6 milhões.

Isentou também (de IBS) exportações, devendo favorecer sobretudo os em geral predatórios pesados ramos primário-exportadores da mineração e do agronegócio – cuja bancada foi das mais insistentes na inclusão de tal item. E, imposição de última hora da bancada da bíblia, proibiu (agora constitucionalmente) qualquer cobrança de impostos a igrejas e atividades religiosas. Além de fonte a uma verdadeira indústria de sonegação e possível lavagem de dinheiro, trata-se aí também de mais uma afronta à laicidade do Estado.

A União e os mega-sonegadores
No mesmo dia do relatório da PEC, o governo garantiu também a aprovação do texto de um Projeto de Lei (2.384/23) que retorna à União o poder de desempate em decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Tal “voto de qualidade” havia sido retirado por Bolsonaro. O Carf, ligado ao ministério da Fazenda e constituído também por representantes de grandes associações empresariais, é uma instância administrativa que “julga” recursos apresentados por contribuintes inadimplentes antes do litígio ir à Justiça.

Grandes empresas inadimplentes que conseguem ter seus recursos ali deferidos, se livram da dívida e de qualquer ação judicial. O Carf acumula mais de R$ 1 trilhão em casos a serem analisados, dos quais quase dois terços refere-se a apenas 130 grandes empresas. Para aprovar a nova lei, o governo teve de fazer a concessão (aos lobbies empresariais e à própria OAB), abrindo mão de cobrar multa ou juros sobre o período de atraso. Ainda assim, calcula-se que com a nova lei, a arrecadação da União pode elevar-se em R$ 15 bi ou até R$ 35 bi por ano.

O segundo passo exige o povo nas ruas
As medidas tributárias aprovadas no dia 07/07 na Câmara, particularmente o Parecer da PEC, contém alguns aspectos progressivos e outros regressivos. Mas o grosso dos instrumentos de desenvolvimento e justiça social, como imposto sobre renda e riqueza ou sobre instituições financeiras foi jogado a um duvidoso próximo passo.

Duvidoso pois depende de uma vasta maioria parlamentar umbilicalmente ligada aos interesses de grandes empresários, bilionários especuladores e ruralistas. Nesse terreno, para tomar o indispensável segundo passo, não seria mais apropriado ao governo e às bancadas de esquerda empenharem-se menos em negociações parlamentares (sem necessariamente abandona-las) e muito mais na mobilização do povo nas ruas?

Alberto Handfas, em 09 de julho

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