A acumulação primitiva do capital nos Estados Unidos, a acumulação nacional e a gênese do Estado estadunidense
Artigo publicado originalmente na Revista A Verdade, órgão teórico da 4ª Internacional, edição 58/59 (Abril de 2008).
Introdução
“A descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio, a escravização e o enfurnamento da população nativa nas minas, o começo da conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África em um cercado para a caça comercial às peles negras marcam a aurora da era de produção capitalista. Esses processos idílicos são momentos fundamentais da acumulação primitiva. De imediato segue a guerra comercial das nações europeias, tendo o mundo por palco. Ela é aberta pela sublevação dos Países Baixos contra a Espanha, assume proporção gigantesca da Guerra Antijacobina da Inglaterra e prossegue ainda nas Guerras do Ópio contra a China etc.”. (1)
“Acumulação primitiva do capital”. Foi assim que Marx chamou a acumulação de condições econômicas e sociais que presidiram o nascimento e o desenvolvimento do capitalismo. Em O Capital e em outros escritos, Marx estudou esse processo e a influência que teve na Europa, sobretudo na Inglaterra e na França, países onde nasceu o modo de produção capitalista. Na passagem acima citada, Marx se referia à pilhagem da África, da Ásia e das Américas como condição prévia ao surgimento do capitalismo industrial na Europa.
Naturalmente, a “acumulação primitiva do capital” produziu-se em outras partes do mundo. Este artigo procurará definir os principais elementos da acumulação do capital e o modo pelo qual essa acumulação moldou o que são atualmente os Estados Unidos da América, de um lado forjando sua estrutura social e política interna particular e, de outro, dando o impulso que lhe permitiu transformar-se hoje no país que estende sua hegemonia imperialista sobre o mundo inteiro.
No entanto, antes de seguir adiante, é aconselhável assinalar algumas precisões sobre as definições e uma palavra de advertência. Atualmente, sobretudo depois do aparecimento do stalinismo nos anos 1920, a palavra capital deu lugar a uma multiplicidade de confusões e, com mais razão ainda, o significado da “acumulação primitiva do capital”.
Para Marx, o capital não significava apenas a riqueza, a propriedade privada ou “as economias de mercado”. Ele escreveu: “Dinheiro e mercadoria, desde o princípio, são tão pouco capital quanto os meios de produção e de subsistência. Eles requerem sua transformação em capital. Mas essa transformação mesma só pode realizar-se em determinadas circunstâncias, que se reduzem ao seguinte: duas espécies bem diferentes de possuidores de mercadorias têm de defrontar-se e entrar em contato; de um lado, possuidores de dinheiro, meios de produção e meios de subsistência, que se propõem a valorizar a soma-valor que possuem mediante compra de força de trabalho alheia; do outro, trabalhadores livres, vendedores da própria força de trabalho e, portanto, vendedores de trabalho”. (2)
Em outros termos, Marx considerava que o dinheiro e a propriedade privada só poderiam se transformar em capital a partir do momento em que fossem “investidos” na exploração do trabalho assalariado: seja diretamente, como no caso do capital agrícola ou industrial, seja indiretamente, por meio do capital mercantil e financeiro. No que diz respeito a essas duas últimas formas de capital, Marx escreveu: “A circulação de mercadorias é o ponto de partida do capital. Produção de mercadorias e circulação desenvolvida de mercadorias, comércio, são os pressupostos históricos sob os quais ele surge. Comércio mundial e mercado mundial inauguram no século XVI a moderna história da vida do capital”. (3) E, um pouco adiante no mesmo capítulo: “Do mesmo modo que o capital comercial, encontraremos, ao longo de nossa pesquisa, o capital a juros como forma derivada e, ao mesmo tempo, veremos por que ambos aparecem historicamente antes da moderna forma básica do capital”. (4)
Portanto, Marx considerava que tudo o que se confunde habitualmente com o capital e o capitalismo eram apenas as condições prévias necessárias para a gênese do capital e do capitalismo. Para Marx, ao menos, a condição principal para a formação do capital era a existência de um exército de “trabalhadores livres” que poderia transformar-se no proletariado que conhecemos. Além disso, Marx deu uma definição muito precisa do que entendia por “trabalhadores livres”. Ele escreveu: “Trabalhadores livres no duplo sentido, porque não pertencem diretamente aos meios de produção, como os escravos, os servos etc., nem os meios de produção lhes pertencem, como, por exemplo, o camponês economicamente autônomo etc., estando, pelo contrário, livres, soltos e desprovidos deles. Com essa polarização do mercado estão dadas as condições fundamentais da produção capitalista”. (5)
Infelizmente, esses conceitos essenciais de Marx, que dizem respeito ao próprio capital – e à sua componente produtora de valor mais importante, ou seja, o capital variável ou mão de obra assalariada – foram sub-repticiamente colocados em segundo plano pela maior parte dos comentaristas, professores universitários, social-democratas, stalinistas e revisionistas, e substituídos pelos conceitos vulgares da economia política burguesa pré-marxista que o próprio Marx refutou há muito tempo.
O texto a seguir tem por objetivo simplesmente tentar descrever os “fatos” bem conhecidos do processo histórico que engendrou o capitalismo nos Estados Unidos da América, colocando-os no quadro da concepção marxista do capital, o que freqüentemente não ocorre nas análises que são feitas sobre esses mesmos fatos.
I. O desmoronamento do feudalismo na Europa e a conquista das Américas
“A assim chamada acumulação primitiva é, portanto, nada mais que o processo histórico de separação entre produtor e meio de produção. Ele aparece como ‘primitivo’ porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde.
A estrutura econômica da sociedade capitalista proveio da estrutura econômica da sociedade feudal. A decomposição desta liberou os elementos daquela”. (6)
No sentido mais amplo e mais geral, o processo de acumulação primitiva do capital nas Américas foi parte integrante do mesmo processo que se desenrolou na Europa. A conquista, a pilhagem e a colonização das Américas pela Espanha, por Portugal, pela França, pela Holanda e pela Grã-Bretanha constituíram uma tentativa de dar um fôlego ao sistema feudal decadente e ao mesmo tempo aceleraram de forma poderosa sua liquidação. Mas a maneira pela qual o modo de produção capitalista emergiu nas Américas por sobre as ruínas do feudalismo europeu era um aspecto muito diferente do mesmo processo que produziu o capitalismo no continente colonizador.
A primeira diferença histórica é o próprio fato de que as sociedades coloniais foram impostas a povos e a países que não haviam conhecido o feudalismo. As sociedades indígenas foram levadas à escravidão ou pura e simplesmente eliminadas. Um outro fato quase tão importante: essas novas sociedades foram instaladas com o estatuto de colônias. Isso significa que eram perpetuamente despojadas de todas as riquezas que poderiam produzir, em proveito das metrópoles da Europa. Em terceiro lugar, existiam grandes diferenças entre essas sociedades coloniais subalternas, o que refletia diferentes fases de declínio do feudalismo em cada um dos países europeus colonizadores. Em quarto lugar, as diferenças entre essas sociedades coloniais eram acentuadas pelas diferentes formas pelas quais as sociedades conquistadas foram integradas às novas estruturas sociais coloniais.
No que diz respeito aos Estados Unidos, a sociedade colonial era o reflexo da sociedade inglesa. E a Inglaterra era, entre os grandes países da Europa, exceto a Holanda (7), aquele no qual o declínio do feudalismo era mais avançado. De fato, quando a conquista e a colonização da América do Norte e do Caribe pelos britânicos começaram, no início do século XVII, a Inglaterra estava já às vésperas da revolução puritana, a segunda grande revolução burguesa vitoriosa na Europa. Em vários pontos importantes, as colônias britânicas nas Américas diferiam das colônias espanholas, portuguesas e francesas.
De início, nenhuma das duas principais condições para a formação do capital existia nas colônias americanas, não importa de qual potência europeia. Toda a riqueza acumulada pelas sociedades conquistadas era enviada diretamente para a Europa. Os indígenas não conheciam praticamente nada da propriedade privada dos meios de produção e de subsistência e suas sociedades, em grande parte comunitárias, não ofereciam a possibilidade de desenvolver massas de trabalhadores livres.
Quando a Grã-Bretanha se lançou como concorrente à conquista e à pilhagem das colônias, Portugal e Espanha já haviam assegurado o butim de um século de pilhagem, e a França e a Holanda já haviam se reunido aos primeiros. A Grã-Bretanha era o mais fraco e o mais marginal de todos os Estados feudais.
De início, o sucesso da Espanha e de Portugal na acumulação de riquezas foi extraordinário, graças à pilhagem das colônias; o comércio mundial pôde ser estabelecido nos séculos XV e XVI; esses fatos permitiram que Estados absolutistas se desenvolvessem nesses países, o que, indiretamente, serviu de escudo às estruturas sociais feudais contra as forças que trabalhavam para liquidá-las. Nenhum desses dois países recorreu a medidas extremas que foram a regra na Inglaterra do século XVI: a liquidação das terras comunais em grande escala, a pilhagem dos bens da Igreja, a apropriação privada das terras da Coroa, o advento do protestantismo como religião oficial etc. A estabilidade social, política e religiosa relativa que reinava nesses países teve como resultados, dentre outros, que não existisse uma numerosa reserva de camponeses despojados de suas terras e nenhuma força potencialmente capaz de introduzir o desequilíbrio na sociedade e que pudesse juntar-se às fileiras de imensos exércitos mercenários (tanto no continente quanto nas colônias) e na burocracia governamental que se desenvolvia rapidamente.
Essa relativa estabilidade da sociedade feudal na península ibérica, criada em grande parte pela colonização vitoriosa, refletiu-se por sua vez no império. As colônias americanas da Espanha, fundadas sobre a pilhagem da riqueza existente nas sociedades indígenas – principalmente a dos astecas e a dos incas – continuaram como fonte de pilhagem. A encomienda, o modo de produção servil primitivo nas colônias espanholas da América, não passava de uma forma bastarda, uma derivação aproximada do feudalismo. Ela não estava integrada ao mercado mundial e produzia valor de uso para as minas de ouro e de prata das colônias. O sistema de encomienda só poderia servir para enriquecer provisoriamente a Espanha e Portugal; ele desapareceria à medida que as minas se esgotassem. De outro lado, a encomienda serviu para proteger a riqueza e a sociedade privada nas colônias espanholas e, o que é mais importante, impediu a formação de uma massa de trabalhadores livres necessária à formação de um proletariado e à emergência do capitalismo.
Existiam importantes diferenças entre o império português, constituído antes de tudo pelo Brasil nas Américas, e o império espanhol. Antes da conquista das Américas, Portugal, diferentemente da Espanha, contava mais com os lucros relacionados ao monopólio sobre certos mercados do que sobre a pilhagem pura e simples. Portugal foi o primeiro país europeu a conquistar a rota comercial em direção às Índias, ao dobrar o Cabo da Boa Esperança. Em seguida, rapidamente monopolizou o comércio do sofrimento humano, comumente chamado de escravidão.
Quando conquistou um império nas Américas, Portugal se viu confrontado a novos problemas. A porção do continente americano que se atribuiu não comportava nenhuma cidade de ouro que pudesse pilhar, não oferecia uma nova rota para o comércio com o Oriente nem um comércio já estabelecido sobre o qual fosse possível estabelecer um monopólio, e – por razões que examinaremos à frente – as sociedades indígenas se mostravam inadequadas para os caçadores de escravos. Por isso, o desenvolvimento da produção de mercadorias nessas colônias daria a chave do desenvolvimento dos lucros mercantis de Portugal. É o que explica a escravidão no Brasil.
No século XVI, o imperialismo português já havia conquistado certa experiência na caça aos escravos, no comércio e, em menor medida, na exploração dos escravos para o trabalho nas plantations [espécie de latifúndios voltados para a exportação – NDT]; um novo escoadouro se abriu para Portugal: foi a exploração dos escravos nas plantations que formou a base da exploração colonial de Portugal nas Américas.
Em certo sentido, esse modo de produção transitório se aproximava mais do capitalismo que a encomienda. As plantations portuguesas, que produziam principalmente cana-de-açúcar, eram mais integradas ao mercado mundial que as encomiendas. Paralelamente, as possibilidades de acumulação de riquezas, de propriedade privada dos meios de produção e de subsistência eram mais significativas nas colônias portuguesas. Mas, assim como o sistema de encomiendas, a escravidão representava um limite intransponível para a formação de uma classe de assalariados livres, e portanto à formação da principal condição prévia à existência do capitalismo.
Foram as colônias portuguesas, e não as colônias espanholas, que forneceram o esboço de modelo para a conquista tardia das Américas pela Inglaterra. Assim como Portugal, a Inglaterra não encontrou cidades de ouro, rotas para o Oriente, produção de mercadorias já estabelecida sobre a qual pudesse fundar um monopólio, nem uma população indígena facilmente redutível à escravidão. E, ainda mais que em Portugal, o lucro mercantil era já uma realidade importante na sociedade inglesa quando a Inglaterra se lançou à conquista de um império além-Atlântico. Os conquistadores do norte da Europa se voltaram muito naturalmente para a solução que Portugal havia desenvolvido, ou seja, a produção de mercadorias graças à importação de mão de obra escrava.
De início, a Inglaterra tentou produzir tabaco e açúcar na Jamaica e na Virgínia utilizando um sistema ad hoc complexo de mão de obra inglesa sob contrato indenture [contrato por meio do qual uma pessoa se compromete a servir um senhor por um período dado, uma espécie de servidão temporária – NDT] e de pequenos proprietários, mas essa combinação foi rapidamente abandonada para ser substituída pelo sistema bem rodado de exploração de escravos utilizado por Portugal. Esse sistema foi rapidamente disseminado em todas as novas colônias britânicas, no Caribe e na costa do sudeste da América do Norte. Como modo de produção colonial, transição em direção ao capitalismo, ele não diferia muito do sistema português de exploração de escravos nas plantations, que havia tomado como modelo.
Claro, se a colonização britânica nas Américas se reduzisse apenas a esse aspecto, a acumulação primitiva do capital nessa parte do mundo que se tornou os Estados Unidos teria apresentado a mesma característica tardia e inacabada que na América Latina. Mas a Grã-Bretanha do século XVII era muito diferente de Portugal, e, portanto, suas colônias igualmente evoluíram de modo muito diferente.
II. O puritanismo e a Nova Inglaterra
As forças sociais que se desenvolveram de modo impetuoso durante a revolução puritana dos anos 1640 haviam atingido sua massa crítica na aurora do século XVII na Grã-Bretanha. Os anos de 1609, 1619 e 1655, durante os quais os britânicos conquistaram respectivamente Jamestown, a Baía Plymouth e a Jamaica, poderiam igualmente oferecer marcas do avanço da revolução burguesa na Grã-Bretanha. Assim como a dinâmica social de Portugal e da Espanha se refletiu na estrutura social de suas novas colônias no mundo, o mesmo ocorreu com essa dinâmica revolucionária nas novas colônias britânicas.
As colônias da Nova Inglaterra são o exemplo mais evidente disso. A Baía Plymouth, a Baía de Massachusetts, Connecticut e a colônia de Providence representavam todas uma variedade de conquista e de colonização europeia das Américas desconhecida até então. Assim como nas outras colônias, os colonos foram obrigados a conquistar, destruir e deportar sociedades americanas indígenas existentes. E, a exemplo das colônias que se baseavam na escravidão, elas foram desde o início empresas comerciais cujo objetivo era produzir mercadorias e exportá-las para a metrópole. Mas, diferentemente das colônias precedentes, seu objetivo era estabelecer sociedades de colonos europeus. No espírito de seus idealizadores, tratava-se, nessas colônias, de oferecer ao mundo a imagem de sociedades utópicas fundadas sobre a religião – as primeiras de uma longa série de utopias desse gênero.
Para os próprios colonos puritanos, esses postos avançados nas Américas davam a possibilidade de estabelecer o tipo de sociedade que lhes havia sido impossível fundar na Inglaterra. Para a monarquia britânica, essas colônias apresentavam a vantagem de oferecer uma espécie de saída para se desembaraçar de seitas protestantes radicais que punham em perigo a estabilidade política (e para se desembaraçar se possível da massa, muito mais numerosa e potencialmente bem mais perigosa, de camponeses expulsos de suas terras).
Ao se ultrapassar um pouco a superfície da ideologia religiosa feudal, vê-se que essas utopias na Nova Inglaterra não passavam, de fato, de uma sociedade pequeno-burguesa de fazendeiros livres independentes, de pequenos artesãos e de comerciantes (8). Os colonos puritanos tentavam se libertar dos vestígios de restrições feudais sobre a propriedade fundiária privada e as múltiplas restrições impostas pelos monopólios comerciais sobre os lucros dos pequenos produtores e comerciantes, e assim por diante.
Como modo de produção transitório para o capitalismo, esse sistema de produção de mercadorias em pequena escala era consideravelmente mais avançado que o sistema de encomiendas e que a escravidão. Ele permitia que os colonos acumulassem mais riquezas, ao constituir um mercado interno bem mais extenso e diversificado, graças ao fato de que a concorrência imperava entre cada pequeno-burguês independente para acumular sua própria pequena fortuna pessoal, e sobretudo isso favorecia uma classe de negociantes coloniais capazes de obter lucros com o comércio entre as metrópoles europeias e as colônias, o que enriquecia os próprios negociantes britânicos. No entanto, o fato central é que, entre os modos de produção coloniais, era o único que não erguia, diante da emergência de uma classe de trabalhadores assalariados, o obstáculo representado por uma classe de mão de obra não-livre e a existência da classe paralela de exploradores de mão de obra não-livre.
No entanto, existiam ainda dois obstáculos centrais à acumulação primitiva, próprios a todas as outras colônias: a escassez dos proletários potenciais e o fato de que a riqueza era sistematicamente apropriada pela metrópole. A luta contra esse segundo obstáculo favoreceu a unidade da Nova Inglaterra e das colônias do Norte com as colônias escravagistas do Sul contra a Inglaterra, o que levou à Revolução Americana. A luta para superar o primeiro obstáculo teve um papel predominante para jogar o Norte contra o Sul no combate que foi resolvido pela Guerra Civil.
III. Um Estado constituído por colonos e fundado sobre a pilhagem
Ainda que, tanto no Norte quanto no Sul, fizesse falta uma classe de trabalhadores livres potenciais, Norte e Sul atingiram rapidamente a outra condição prévia à emergência do capitalismo. Ambas partilhavam o mesmo mercado interno, ligado ao mercado mundial por intermédio da Inglaterra. No interior das duas séries de colônias, se acumularam riquezas monetárias e sob a forma de meios de produção comercializáveis. Essa acumulação de riquezas era em parte devida à temperança, à frugalidade e ao labor dos fazendeiros independentes puritanos e dos quacres [do inglês quaker, religião de parcela dos primeiros colonos – NDT] do Norte. Outra parte resultava dos lucros que os comerciantes do Norte obtinham do comércio de mercadorias produzidas nas colônias, tais como o tabaco, o açúcar, do anil, dos suprimentos para os navios e das peles de animais. No entanto, grande parte dessa riqueza provinha da exploração dos escravos, enquanto a maior parte vinha da pilhagem.
Pilhar é simplesmente se apropriar, pela força das armas, daquilo que outrem possui ou daquilo produziu. Claro, em certo sentido, a escravidão não passou da forma organizada da pilhagem sob a forma de uma ordem social interna de longa duração. Mas, para além dessa forma interna de pilhagem colonial, duas outras (9) explicam em grande parte como as sociedades de colonos puderam acumular riquezas: inicialmente, pela expropriação das terras dos indígenas da América; em seguida, pelo rapto de uma vasta proporção das populações da África ocidental.
Essas duas formas eram na verdade uma forma de dominação pré-capitalista. Ambas eram bárbaras e desumanas, recorriam aos assassinatos e à tortura em uma escala que só seria ultrapassada pelo fascismo no século XX. Ambas destruíram sociedades inteiras.
Essas duas formas compartilhavam outros pontos comuns com o modo pelo qual essas sociedades pré-capitalistas acumularam riquezas. As terras e os escravos vinham do “exterior” dos sistemas socioeconômicos colonialistas. As terras e os escravos estavam entre os mais importantes meios de produção no interior desses sistemas colonialistas; os escravos no Sul, e as terras no Norte. Era a agricultura que predominava nas colônias britânicas da América, muito mais que na metrópole do outro lado do Atlântico na mesma época.
Não foi pela simples expropriação que esses meios de produção puderam transformar-se em riquezas; para isso, era preciso transformá-los em mercadorias e era preciso criar um mercado para essas mercadorias. Vimos anteriormente como a exploração do trabalho escravo e, paralelamente, o crescimento de um mercado para os seres humanos seqüestrados se disseminou de início graças à expansão do império português, depois graças à adoção do mesmo sistema colonial pela Inglaterra (e também pela Holanda, a França e finalmente as colônias espanholas).
Foi um outro estágio do declínio do feudalismo na Europa – a revolução burguesa na própria Inglaterra – que provocou a transformação da terra em mercadoria. A posse da terra sob sua forma riqueza ou bem mercantil era submetida a estritas limitações durante um longo período de declínio do feudalismo, inclusive durante várias décadas no início do século XVII na Inglaterra. Comprar, vender e explorar a terra eram operações submetidas a inumeráveis restrições devidas ao antigo sistema de servidão e de vassalagem. A revolução puritana liquidou a maior parte desses vestígios na Inglaterra. Mas nas colônias norte-americanas, expressão da vanguarda do processo revolucionário que de desenrolava na Grã-Bretanha, essas limitações nunca foram verdadeiramente instituídas.
Assim, desde que se encontrasse um meio de expulsar as populações indígenas da América ou de capturar os povos da África pela força das armas, era possível acumular riquezas nas colônias graças a essas duas formas de pilhagem. No que diz respeito ao comércio de escravos, o próprio Estado britânico fornecia os meios e as incursões militares para guerras intertribais da África ocidental (instigadas pelos europeus), com a ajuda de bandos armados de caçadores de escravos a serviço dos negociantes da Nova Inglaterra.
Quanto à expulsão dos índios da América de suas terras, a potência militar necessária a essa pilhagem era fornecida em parte pelas tropas britânicas, mas sobretudo pela população de colonos armados. Praticamente toda a população masculina branca nas colônias era armada. Os colonos se organizaram em milícias para fazer a guerra aos índios. Essas milícias remontam aos primeiros anos da colonização e em seguida constituíram a coluna vertebral das forças armadas nos Estados Unidos até a Guerra Civil.
A caça aos escravos e o roubo de terras, bem como a comercialização dessas duas operações, foram a base sobre a qual se constituiu a fortuna dos pais fundadores. Alguns fatos bastam para medir a importância das fortunas que foram assim amealhadas.
Entre 1698 e 1807, foram levados da África para as Américas entre 25 mil e 100 mil escravos por ano (10). A maioria foi importada pelos negociantes de escravos da Nova Inglaterra, que, desde o início do século XVIII, tomaram o lugar dos ingleses no comércio norte-americano dos escravos, e que se revelaram temíveis concorrentes no comércio de escravos do Caribe e da América do Sul (11).
Claro, cada centímetro quadrado do território dos Estados Unidos foi roubado! Cada colônia tinha seu próprio sistema para transformar as terras roubadas em propriedade privada, e portanto em mercadoria. As colônias da Nova Inglaterra estabeleciam contratos com as municipalidades e atribuíam um território ainda não conquistado e colonizado a cada chegada de imigrantes, os quais, por sua vez, dividiam esse território em fazendas individuais. As colônias do Sul e do meio da costa do Atlântico ofereciam quinhões individuais cuja extensão era freqüentemente função do número de empregados domésticos que um senhor planejava levar consigo da Inglaterra.
Em pouco tempo, todas as colônias tinham tomado posse de vastos territórios que se estendiam bastante a oeste da Costa Leste já conquistada e colonizada. Essas terras continuavam a ser entregues a “colonos merecedores”, vendidas diretamente a especuladores fundiários ou serviam mesmo de caução para as dívidas dos colonos.
O processo foi aprimorado depois da Guerra de Independência. As dotações de terras foram utilizadas para financiar a construção de ferrovias, de canais e de escolas públicas. Esses métodos, de início utilizados pelos governos dos novos Estados instalados a oeste dos Apalaches, foram em seguida empregados pelo governo federal para a construção de toda a rede ferroviária do Oeste. As empresas ferroviárias Union Pacific, Southern Pacific, Great Northern e Santa Fe (12), entre outras, foram financiadas graças a esse método sofisticado de pilhagem. Foi com base nisso que se edificaram algumas das maiores fortunas dos capitães de indústria do fim do século XIX e, até hoje, as empresas que lhes deram continuidade são todas gigantescas empresas proprietárias de terras (algumas até mesmo venderam sua parte do mercado de ferrovias para se concentrar nas operações imobiliárias!).
O último capítulo dessa forma de pilhagem seguiu-se rapidamente ao término da ferrovia Transcontinental em 1869, no momento em que todas as grandes planícies e os vales do Oeste estavam praticamente conquistados, ocupados e transformados em propriedade privada, no sentido moderno do termo, na nação de colonos europeus. No entanto, mesmo a derrota completa e o quase genocídio das nações indígenas causados por essa pilhagem em escala do continente não significou o fim para eles. O epílogo dessa tragédia se desenrola sob os nossos olhos à medida que as grandes companhias mineiras, os especuladores financeiros e os barões do agronegócio tentam arrancar dos índios da América as sobras de territórios “que lhes estavam reservadas perpetuamente” depois de sua última derrota.
IV. A pilhagem: base tanto da unidade quanto do conflito entre Norte e Sul
“Esses métodos [de acumulação primitiva] baseiam-se, em parte, sobre a mais brutal violência, por exemplo, o sistema colonial. Todos, porém, utilizaram o poder do Estado, a violência concentrada e organizada da sociedade, para ativar artificialmente o processo de transformação do modo feudal de produção em capitalista e para abreviar a transição. A violência é a parteira de toda velha sociedade que está prenhe de uma nova. Ela mesma é uma potência econômica”. (13)
Como eram colônias inglesas, o poder de Estado pertencia à Grã-Bretanha. Seu objetivo era acelerar o advento do modo de produção capitalista na Inglaterra; o papel destinado às colônias era o de fornecer matérias-primas, de servir de local de desterro para as populações julgadas indesejáveis e de assegurar os lucros do monopólio aos comerciantes e aos fabricantes ingleses. Enquanto o sistema mercantil britânico ajudava os colonos a acumular riquezas, eles os apoiavam; mas desde que lhes fez concorrência em sua própria busca de lucro, eles se colocaram em oposição.
As colônias do Norte e do Sul estavam baseadas em dois sistemas de produção diferentes, e sua relação com o sistema comercial inglês era também necessariamente diferente. Por sua própria natureza, o sistema sulista de plantation e de escravidão não poderia concorrer com a Inglaterra capitalista; o Sul só poderia ser fornecedor de matérias-primas e importador de produtos manufaturados. Ainda que os proprietários de escravos ficassem descontentes diante das condições desiguais do comércio, dos impostos elevados ou do fato de não estarem representados no Parlamento britânico, seu modo de produção inferior não lhes deixava quase outra saída a não ser manter-se no interior do império britânico.
Para a Nova Inglaterra e o Norte, a história era outra. Os negociantes nortistas eram concorrentes diretos dos negociantes britânicos e queriam concorrer com os fabricantes britânicos. As colônias do Norte representavam um concorrente potencial para a Inglaterra capitalista. As restrições ao comércio, proibindo-lhes de comerciar diretamente com outros países que não os do império britânico e a proibição de fato de qualquer manufatura nas colônias visavam quase exclusivamente à política econômica das colônias do Norte.
As relações políticas entre as diferentes colônias e a Inglaterra correspondiam a essas realidades econômicas diferentes. O Sul era antes de tudo fiel à coroa e não se opunha verdadeiramente ao mercantilismo britânico; de outro lado, a Nova Inglaterra se opunha constantemente ao regime colonial, praticamente desde o momento em que as colônias se estabeleceram.
No entanto, o elemento dominante era que todos os colonos estavam unidos e deixavam de lado suas divergências para pilhar as terras dos índios no Oeste. Assim, a virada na luta entre as colônias e a metrópole ocorreu em 1763, quando a Inglaterra decretou que a expansão em direção ao Oeste era ilegal. Essa proibição resultava da vitória da Inglaterra sobre a França na Guerra dos Sete Anos, que dava à Grã-Bretanha um novo monopólio sobre o comércio de peles de animais com os índios da América (o que se opunha à expansão das colônias) e deixava o império britânico incapaz de assegurar sua manutenção, tanto em nível militar quanto financeiro.
Para as duas sociedades coloniais, essa proibição equivalia a uma sentença de morte. Ambas dependiam da continuação da conquista do Oeste, não apenas como meio de acumulação de riquezas, mas para sua sobrevivência pura e simples. O sistema de exploração de escravos nas plantations esgotava rapidamente os solos (por causa dos métodos primitivos de cultura e também em virtude do sistema de monocultura imposto pela utilização de escravos), o que impunha a necessidade de estender continuamente as plantations. De outra parte, os pequenos fazendeiros independentes pequeno-burgueses do Norte dependiam também da conquista do Oeste, porque, na falta de novas terras, as novas gerações de fazendeiros veriam a superfície de suas terras diminuir inexoravelmente e seriam obrigados também inexoravelmente a se proletarizar. Com a aprovação da lei sobre as colônias de 1763, o Sul se viu rapidamente ao lado do Norte na luta contra o mercantilismo britânico. A cena estava pronta para a Revolução Americana.
A vitória dos colonos na Guerra de Independência matou dois coelhos com uma cajadada: deteve a fuga de riquezas em direção à metrópole e afastou qualquer obstáculo colocado pela Grã-Bretanha para a conquista do Oeste. Mas o fim do poder de Estado britânico mercantil nas colônias deixou aos colonos a tarefa de construir um novo Estado burguês concebido exclusivamente para favorecer sua própria acumulação de riquezas.
Isso significava necessariamente um Estado concebido antes de tudo para continuar a conquista do Oeste; a seguir, para preservar os dois modos de produção diferentes, ao mesmo tempo em que reforçava os laços entre eles. Isso implicava também a necessidade da dar uma representação no interior das instâncias do Estado aos interesses divergentes entre a aristocracia escravagista do Sul, a burguesia mercantil do Norte e os fazendeiros e a pequena-burguesia do Norte.
Essa tarefa era muito pesada para a forma pouco desenvolvida e descentralizada de Estado tal qual havia sido concebida pelos Artigos (as leis fundadoras) da Confederação; a esse fracasso evidente, sucedeu-se rapidamente a luta que impôs a Constituição e, com ela, uma nova forma de Estado burguês.
A Constituição garantia a escravidão e a expansão rumo ao Oeste, de modo explícito, sob a forma de disposições para o retorno dos escravos em fuga, o imposto sobre a escravidão, a representação no Congresso proporcional ao número de escravos, e o acréscimo de novos Estados à União; tudo isso implicitamente compreendido nas instâncias centralizadas do novo Estado. As disposições tomadas para a elevação dos impostos, para a criação de um exército e para colocar as milícias de Estado sob o controle do Estado federal etc. tinham todas como objetivo construir uma estrutura estatal capaz de retomar rapidamente e de modo eficaz a conquista do Oeste, assegurando ao mesmo tempo a proteção contra as revoltas dos escravos. Além disso, a Constituição livrou as colônias – que haviam acabado de proclamar sua independência e sua unidade – dos últimos obstáculos ao comércio interno, o que permitiu criar um mercado em escala nacional quase tão desenvolvido quanto o mercado entre as nações europeias (e destinado a rapidamente ultrapassá-las).
Para garantir a unidade na situação em que conviviam sistemas sociais e classes opostas, o conceito político de equilíbrio dos poderes, herdado do presbiterianismo inglês, foi integrado ao novo Estado constitucional sob uma forma extremamente ampliada. Por essa razão, os dois corpos legislativos, a Câmara dos Deputados e o Senado, foram eleitos sobre bases diferentes. Os assentos da Câmara dos Deputados foram definidos em proporção à população dos Estados, e os deputados eleitos sobre as mesmas bases que os deputados das câmaras baixas de cada Estado. Para o Senado, cada Estado dispunha de dois assentos, e os senadores eram eleitos diretamente pelos Parlamentos estaduais. O resultado, no ponto de partida, foi que o Norte seria majoritário no Senado e o Sul, na Câmara dos Deputados: havia apenas quatro Estados completamente escravagistas (mais dois, parcialmente), mas sete Estados “livres”, enquanto o Sul escravagista era mais povoado que o Norte “livre”. Isso garantia a dominação das classes possuidoras do Norte e do Sul graças ao Senado; e permitia integrar os pequenos proprietários do Norte graças à Câmara dos Deputados, mesmo se era numa posição politicamente subalterna. No início, alguns riscos de conflitos nessas instâncias foram evitados, ao se deixar nas mãos dos governos de Estados subalternos, mas parcialmente autônomos, grandes poderes para resolver as relações sociais, econômicas e políticas no plano local.
Na cúpula dessa arquitetura, se encontrava o equivalente a uma monarquia eleita que dispunha de vastos poderes para agir à maneira de um Bonaparte em caso de divergências no interior do poder legislativo e com uma autoridade centralizada para a aplicação de praticamente toda a política de Estado. Outra instituição reacionária, a Corte Suprema, foi instaurada para resolver os conflitos julgados muito insignificantes, ou aqueles que, politicamente, não cabia ao presidente resolver.
As instâncias do novo Estado burguês, inteiramente nas mãos de colonos europeus, podiam agora funcionar para pilhar os territórios dos índios a Oeste dos Apalaches e podiam portanto estender a sociedade escravagista do Sul e a sociedade mercantil pequeno-burguesa do Norte. O que foi prontamente feito. Decorreram quase 170 anos entre as primeiríssimas instalações dos britânicos na Costa Leste e o fim da conquista de toda a Costa Leste; no entanto, a partir da independência, bastaram 75 anos para expropriar todos os territórios índios entre os Apalaches e o rio Mississippi. No decorrer de uma operação militar ininterrupta, os Estados Unidos se apoderaram igualmente do Texas e de todo o território do Sudoeste, desde o México até a Flórida, arrebatados da Espanha, compraram os territórios franceses na bacia do Mississippi, puseram fim ao que subsistia de pretensões inglesas sobre os territórios índios ao sul do Canadá e eliminaram a minúscula colônia russa que se estabelecera na Costa Oeste, instaurando um verdadeiro expansionismo, fundado na pilhagem em escala do continente.
A apropriação das terras era um elemento central para a unidade social e política desse Estado, composto de colonos, imperialista e independente; a prova disso está dada pela ascensão ao poder de uma série de presidentes que haviam obtido sua celebridade graças aos sucessos militares nas guerras contra os índios, e sua fortuna, de partes das terras roubadas das quais se apropriaram (bem como da especulação imobiliária que seguia paralelamente). O primeiro presidente mesmo, George Washington, havia sido o fundador dessa tradição, mas outros personagens ilustres, como Andrew Jackson, William Henry Harrison e Zacharie Taylor, também participaram desse processo.
O surpreendente sucesso dessa forma de dominação pré-capitalista híbrida conduziu à extensão do sistema de escravidão desde a Baía de Chesapeake até o Rio Grande, de uma parte, e da economia pequeno-burguesa do Norte desde o Maine até Iowa, de outra parte, com um importante posto avançado na Califórnia, do outro lado do continente. Todas as condições prévias para a emergência do capitalismo nos Estados Unidos estavam agora reunidas: um vasto mercado nacional onipresente, uma enorme acumulação de riquezas comercializáveis em dinheiro, em meios de produção e de subsistência, um poderoso aparelho de repressão de Estado colocado a serviço da acumulação de riquezas pelas classes pré-capitalistas. Todas as condições prévias estavam reunidas, exceto a mais importante: uma massa de trabalhadores livres. A escravidão representava o obstáculo absoluto à formação de um proletariado estável; a “terra disponível” representava um obstáculo relativo. Paradoxalmente, foi o próprio sucesso de sua expansão imperialista comum que agora opunha o Norte e o Sul e os fez enfrentar-se na Guerra Civil em um combate mortal que destruiu os últimos obstáculos ao triunfo do capitalismo nos Estados Unidos.
V. Uma classe operária privilegiada num Estado de colonos
“De início, Wakefield descobriu nas colônias que a propriedade de dinheiro, meios de subsistência, máquinas e outros meios de produção ainda não faz de uma pessoa um capitalista se falta o complemento, o trabalhador assalariado, a outra pessoa, que é obrigada a vender a si mesma voluntariamente. Ele descobriu que o capital não é uma coisa, mas uma relação social entre pessoas intermediada por coisas”. (14)
“Viu-se: a expropriação da massa do povo de sua base fundiária constitui a base do modo de produção capitalista. A essência de uma colônia livre consiste, pelo contrário, em que a maior parte do solo ainda é propriedade do povo e cada povoador, portanto, pode transformar parte dele em sua propriedade privada e em meio de produção individual, sem impedir os povoadores que chegam depois de executarem essa mesma operação. Esse é o segredo tanto do florescimento das colônias quanto de seu câncer – sua resistência à radicação do capital.
‘Onde a terra é muito barata e todos os homens são livres, onde cada um pode à vontade obter uma parcela de terra, o trabalho não somente é muito caro, no que diz respeito à participação do trabalhador em seu produto, mas a dificuldade está em conseguir trabalho combinado a qualquer preço’”. (15)
Antes da Guerra Civil, o único grande obstáculo à formação do capital foi a quase ausência da componente mais importante do capital variável, a mão de obra assalariada – a única componente do capital que produz valor. O valor de troca era essencialmente produzido por meios de produção pré-capitalistas: a exploração dos escravos nas plantations, a produção independente de mercadorias em pequena escala e a pilhagem. No Sul, a escravidão representava o obstáculo absoluto a qualquer exploração em grande escala da mão de obra assalariada. No Norte, a “terra disponível”, ou mais exatamente o fato de que os territórios índios estavam disponíveis para a pilhagem, representava um obstáculo menor mas ainda temível. Esses fatores contribuíram para entravar o desenvolvimento do capitalismo no conjunto desse Estado de colonos.
Todavia, no Norte, os territórios livres representavam um obstáculo apenas relativo quanto à formação de uma classe de assalariados que, de fato, começou a se formar desde antes da Guerra Civil. Eram esses mesmos imigrantes vindos da Grã-Bretanha, da Escócia e do norte da Europa que haviam engrossado as fileiras das massas pequeno-burguesas, compostas muitas vezes de pequenos fazendeiros e de artesãos. Os estaleiros, as pesqueiras, as indústrias de construção e as serrarias da Nova Inglaterra empregavam os fazendeiros como temporários. E, de início, mesmo as fábricas de fiação da Nova Inglaterra recrutavam sua mão de obra essencialmente entre as jovens camponesas solteiras.
Mas as massas pequeno-burguesas dos jovens Estados Unidos eram totalmente incapazes de construir o capital em grande escala. Os pequenos fazendeiros empregavam o dinheiro ganho por seu salário para realizar melhorias em suas fazendas, comprar terras ou pagar os operários agrícolas. As jovens guardavam seu salário para constituir um dote. E cada vez que um jovem camponês estava empregado, tomava o lugar de um operário que se empenhava em sair da fábrica de fiação, indo às vezes em direção ao Oeste para ocupar uma nova terra da qual os índios acabavam de ser expulsos. Enquanto as fileiras da pequena-burguesia engrossassem pela pilhagem de terras, não podiam fornecer os exércitos de assalariados “livres” – no duplo sentido em que Marx o entendia.
Além disso, enquanto houvesse “terras disponíveis”, elas atrairiam a mão de obra, porque mesmo esses imigrantes que eram muito pobres para juntar-se às fileiras da pequena-burguesia poderiam fazê-lo logo em seguida em um prazo muito curto. A possibilidade de comprar a terra a baixo preço graças à pilhagem significava que era não apenas possível para um operário tornar-se um pequeno fazendeiro mas também que os salários se tornariam elevados por causa da escassez de mão de obra. Os primeiros capitalistas poderiam pagar os salários elevados impostos pela escassez de mão de obra – e eles o faziam – porque a operação era rentável graças à riqueza acumuladas, graças à pilhagem.
Claro, desde o início, os capitalistas e os ricos que aspiravam a sê-lo procuravam atenuar a escassez de mão de obra explorável. O método empregado inicialmente foi o dos empregados domésticos ligados por contratos (Indentured Servants). Mas não era possível contar por muito tempo com o reservatório de mão de obra meio livre, meio servil que esse método produzia. Um operário arrendado por contrato em Boston poderia facilmente transferir-se para Nova York, o que não era o caso de um escravo negro da Virgínia; de toda maneira, os termos do contrato estipulavam um número de anos de serviço (em geral, sete anos), ao fim dos quais o operário estava livre. A escravidão mesmo foi adotada como medida própria para atenuar essa escassez de mão de obra explorável, e antes de tudo como uma extensão do sistema de contrato (algumas fontes documentais mostram que os primeiros negros levados para a América eram empregados domésticos sob contrato e não escravos). (16)
Até a década de 1840, os negros livres representavam uma parte importante da mão de obra assalariada do Norte. Eles eram carregadores de mercadorias e de carvão, cocheiros, empregados domésticos e ferreiros. Mas enquanto a escravidão durasse como instituição – com as conseqüências que isso trazia tanto no plano legal quanto no estado de espírito existente no Norte e no Sul –, os negros só poderiam constituir um exército de reserva de mão de obra. Se se crê na maioria dos que observaram a América no período em que ela era uma colônia, assim como no início do século XIX, o racismo era tanto disseminado quanto enraizado no Norte. Ocasionalmente, os negros poderiam ser empregados se faltasse particularmente mão de obra, como por exemplo durante as guerras contra Napoleão na Europa, quando o fluxo de imigrantes europeus secou quase completamente. Mas quando a imigração foi retomada, os negros foram excluídos de todos os empregos, exceto os mais subalternos. (17)
A violenta tomada da Irlanda pelo capitalismo britânico e a fome causada pela doença da batata forneceram a primeira onda de imigração europeia suficientemente importante para inundar o mercado de trabalho dos Estados Unidos. Os negros foram excluídos de praticamente todos os empregos qualificados e de muitos empregos não-qualificados e forneceram a massa de proletários “livres” necessária à enorme expansão da rede ferroviária, ao início da siderurgia, às fiações etc. Rapidamente após os irlandeses, foram os refugiados de “48” que fugiam da derrota das revoluções burguesas na Europa. Ao mesmo tempo – circunstância favorável para todos os primeiros capitalistas nos Estados Unidos –, ocorreu que o acesso às “terras disponíveis” ficou momentaneamente difícil para esses novos imigrantes porque o Norte e o Sul estavam num impasse e nenhum deles sabia a qual dos dois caberia o direito de conquistar o que restava de territórios índios do Far West (Oeste longínquo).
Desde 1860, os Estados Unidos dispunham de uma classe operária numerosa e do esboço de um proletariado industrial. No entanto, essa classe operária tinha todas as características de uma classe operária em um Estado de colonos. Era constituída quase exclusivamente de brancos. Seus salários eram elevados (em comparação com o que seus homólogos ganhavam na Europa) graças à “terra disponível” e ao racismo devido à escravidão. Essa classe operária se opunha tanto à concorrência dos trabalhadores negros livres quanto dos escravos. Para ela, expulsar os índios de seus territórios era tão desejável quanto reservar essas terras aos pequenos fazendeiros em vez dos proprietários de escravos. Mais ainda que os negros, os índios estavam excluídos dessa classe operária do Estado colono, assim como o eram de todas as classes dessa sociedade. Esse fato resultava antes de tudo das relações sociais comunitárias das sociedades de índios da América, mais do que a conquista pelos europeus. Qualquer que fosse a forma de trabalho submetida, trabalho “livre” ou trabalho servil, era impensável para os índios da América, que, enquanto os territórios da “Fronteira” existissem, escolhessem se transferir para o Oeste e continuar a defender seu modo de vida em vez de ser “assimilados” às classes exploradas do Estado colono. Apenas quando uma tribo ou um povo estava completamente batido e seu tecido social totalmente destruído que os índios da América se integravam à classe operária.
É sobre a formação dessa classe operária antes da Guerra Civil que repousaram a potência e a fortuna dos primeiros capitalistas do Norte. Ainda que essa classe operária contivesse o esboço do futuro proletariado de massa dos Estados Unidos, ela não formava ainda a base adequada para o desenvolvimento exponencial do capitalismo que iria se produzir. Uma verdadeira classe de trabalhadores que não possuíam nada e que no entanto não estavam ligadas por qualquer servidão não poderia nascer sem que fossem destruídos os obstáculos da disponibilidade da terra e da escravidão, ou ainda sem a integração de uma onda ainda mais maciça de imigrantes. Como bem mostrou a História, todas essas condições foram reunidas graças à vitória do Norte sobre o Sul.
VI. A Guerra Civil: o capitalismo vitorioso
“Todo o movimento [em direção à Guerra Civil] repousava, e repousa ainda, sobre a questão dos escravos. Claro, não se trata diretamente de emancipar, ou não, os escravos no interior dos Estados escravagistas existentes; trata-se antes de saber se 20 milhões de homens livres do Norte vão se deixar dominar por mais tempo por uma oligarquia de 300 mil escravagistas, se os imensos territórios da República servirão de estufa quente ao desenvolvimento de Estados livre ou de Estados escravagistas, se, enfim, a política nacional da União terá por divisa a propagação armada da escravidão ao México e à América Central e do Sul”. (18)
“O que faz época na história da acumulação primitiva são todos os revolucionamentos que servem de alavanca à classe capitalista em formação; sobretudo, porém, todos os momentos em que grandes massas humanas são arrancadas súbita e violentamente de seus meios de subsistência e lançadas no mercado de trabalho como proletários livres como os pássaros. A expropriação da base fundiária do produtor rural, do camponês, forma a base de todo o processo. Sua história assume coloridos diferentes nos diferentes países e percorre as várias fases em seqüência diversa e em diferentes épocas históricas. Apenas na Inglaterra, que, por isso, tomamos como exemplo, mostra-se em sua forma clássica”. (19)
Sem dúvida alguma, a Guerra Civil estadunidense foi exatamente o tipo de revolução decisiva que Marx vislumbrava. Ela ofereceu o ponto de apoio principal para a formação da classe capitalista nos Estados Unidos ao fazê-la sair de seu lugar marginal e impulsionando-a ao papel de capitalismo dominante nos planos social, econômico e político. O que constituiu a força motriz da Guerra Civil foi o conflito entre dois modos de produção distintos. Para estabelecer sua hegemonia, a classe capitalista tinha necessidade de um mercado nacional unificado que lhe servisse de esfera de acumulação.
A Guerra Civil destruiu a escravidão, que representava o principal obstáculo à formação de uma importante classe de trabalhadores assalariados, e preparou as condições para a rápida liquidação do outro obstáculo à formação do proletariado, a saber, a “terra disponível”. Ela quebrou e remodelou o Estado e colocou-o inteiramente sob o domínio do capitalismo nascente. Mas ela não expropriou os “camponeses” e não os jogou no mercado de trabalho! Ao contrário, a enorme maioria dos milhões de ex-escravos negros tornaram-se peões continuamente endividados e que continuavam subjugados nas propriedades. De outro lado, as fileiras dos “fazendeiros livres” do Norte, eles mesmos vitoriosos na Guerra Civil, continuaram a engrossar durante o quarto de século seguinte.
Como já se viu, a Guerra Civil foi também o produto de um conflito entre o Norte e o Sul para determinar qual dos dois tipos de sociedade nos Estados Unidos predominaria e expulsaria os índios da América de seus últimos territórios. No entanto, esse mesmo conflito foi causado também por um conjunto de acontecimentos internacionais colocados em movimento pelo fato de que a Grã-Bretanha tinha, um século antes, conseguido dominar o mundo e pelo desenvolvimento exponencial do capitalismo que se seguiu a isso.
Como Marx observou, e outros depois dele mostraram, a Guerra Civil foi causada pelo nascimento do “Noroeste” como novo centro de gravidade dos Estados Unidos nas décadas que a precederam. Seria mais adequado dizer que ela foi desencadeada também pelo nascimento do “Sudoeste”. Essas duas entidades foram em grande parte o produto de acontecimentos mundiais que se desenvolveram do outro lado do Atlântico, na Grã-Bretanha capitalista.
A vitória da Inglaterra sobre a França na Guerra dos Sete Anos, um século antes da Guerra Civil, não criou somente as condições para a revolta nas colônias das quais os Estados Unidos surgiram; ela permitiu também que a Inglaterra dominasse a Índia. Isso deu em seguida à Grã-Bretanha praticamente o monopólio do comércio mundial dos tecidos de algodão, que se transformou rapidamente em um monopólio sobre toda a produção algodoeira.
Os teares manuais tradicionais de tecelagem do algodão em Calcutá (Índia) foram substituídos por teares a vapor nas fábricas de Manchester (Inglaterra). O próprio algodão era produzido nas enormes plantações que exploravam os escravos no Alabama, no Mississippi, na Louisiana e no Texas, ou seja, na região Sudoeste de antes da Guerra Civil.
Na Grã-Bretanha, pela primeira vez, um imenso proletariado industrial nasceu e, com ele, a luta de classes entre operários e capitalistas. As revoltas dos cartistas sucederam às dos luditas [grupos de artesãos que se revoltaram contra a mecanização e quebraram as máquinas – NDT] nos anos 1839-1840. Esse levante, ainda que não tenha atingido seu objetivo, dividiu a burguesia britânica. Os novos barões da indústria têxtil reivindicavam a abolição da proteção mercantil da agricultura que mantinha preços elevados para a alimentação e que portanto fazia pressão constante para que salários fossem aumentados. Em 1846, eles conseguiram fazer abolir as leis sobre o trigo e instaurar o “livre comércio” dos cereais.
Os pequenos fazendeiros no novo Noroeste – toda a região compreendida entre os Apalaches e o Mississippi, o Ohio e o Canadá – se viram rapidamente cultivando e comercializando o trigo para fornecer pão à classe operária britânica. Para fazer isso, eles eram ligados aos portos do Nordeste dos Estados Unidos por uma rede de ferrovias e de canais e por todo um conjunto de relações comerciais. Enquanto o Sul havia antes representado o mercado mais importante para todas as mercadorias produzidas pelos pequenos fazendeiros do Oeste (graças às vias navegáveis que ofereciam o Mississippi e seus afluentes), a partir dos anos 1850 o Nordeste e a Inglaterra se tornaram os mercados predominantes e suas relações eram mais estreitas que entre o Noroeste e o Sul.
O capitalismo do Norte estava ligado à escravidão por inumeráveis laços: comerciais (Nova York era o entreposto da quase totalidade do algodão exportado pelo Sul para a Inglaterra), financeiros (os proprietários de plantations dependiam dos créditos fornecidos seja pelos negociantes do Norte, seja pelos negociantes e financistas ingleses) e mesmo por relações familiares. Além disso, a população negra “livre” do Norte, subproduto da escravidão, formava uma casta de párias no próprio interior da classe operária. Sua existência permitia não aumentar os salários dos trabalhadores brancos. Ao mesmo tempo, os trabalhadores negros poderiam ser utilizados – e eles o eram – como quebradores de greve contra os trabalhadores brancos, que, também, poderiam ser utilizados – e eles o eram – como quebradores de greve contra os trabalhadores negros. A abolição da escravatura representava não apenas uma ameaça para os laços rentáveis que existiam entre setores do capital nortista e a aristocracia escravagista; arriscava também abater a divisão que separava os operários negros e os operários brancos no Norte: se a escravidão fosse abolida, isso implicaria que os negros poderiam conseguir obter uma verdadeira igualdade, inclusive o direito de votar, de fazer parte dos júris etc. (tudo o que era de fato praticamente proibido para os negros no Norte). A classe capitalista do Norte se dividiu nesse momento. Uma parte se alinhou quase abertamente a favor da escravatura e formou uma importante parcela dos dirigentes democratas do Norte. Uma outra parte aliou-se aos pequenos fazendeiros do Oeste contra a escravatura; uma de suas razões, entre outras, era a avaliação de que, uma vez libertados, aproximadamente 4 milhões de escravos do Sul afluiriam ao Norte e inundariam o mercado de trabalho de uma massa de mão de obra de quebradores de greves, o que resolveria definitivamente o problema dos salários elevados.
A classe operária persistia em seu apoio integral à política de “disponibilidade da terra” – e consequentemente, à causa nortista – e em sua oposição racista aos operários negros. As implicações revolucionárias da proclamação da emancipação para a derrota da aristocracia escravagista desencadearam igualmente conflitos raciais no Norte, porque os operários e os pequenos comerciantes brancos criaram grupos para linchar os negros em todas as grandes cidades do Norte. Praticamente todos os sindicatos e as organizações operárias existentes, exceto o Sindicato dos Carpinteiros e o Clube dos Comunistas de Nova York, recusaram os negros antes, durante e depois da Guerra Civil.
A vitória total obtida pelo Norte na Guerra Civil descartou definitivamente o risco de que os escravos se transformassem em uma classe de assalariados. Ela foi portanto uma vitória real, ainda que efêmera, para a política de acesso à “terra disponível”: os índios da América que ocupavam ainda toda a região das Grandes Planícies sofreram uma derrota completa em cerca de 15 anos e, a partir de 1890, se poderia dizer que a “Fronteira” havia desaparecido. Os verdadeiros vencedores da Guerra Civil não foram os pequenos fazendeiros, nem os operários do Norte que forneceram o essencial da infantaria – e mesmo alguns oficiais – da União, nem os negros agora livres, mas os capitalistas do Norte.
A Reconstrução não deu “40 alqueires e uma mula” aos ex-escravos; não deu aos negros o direito de voto, de frequentar a escola com os brancos, de ocupar os mesmos empregos que eles; não pôs fim à divisão em castas entre brancos e negros no interior da classe operária. Em vez disso, os negros se tornaram, em sua maioria, arrendatários ou peões endividados diante de alguns aristocratas escravagistas que subsistiam. Essa classe que perdeu o essencial de sua riqueza quando foi despojada de seus escravos pela emancipação se agarrava ainda à terra – ou, em caso de falência, essas terras foram parar nas mãos de financistas, de especuladores e de aventureiros do Norte. A desaparição rápida da Reconstrução radical e o sistema Jim Crow foram os acontecimentos políticos que constituíram firmemente essa nova relação social por cima da potência estatal nos Estados sulistas.
Os negros que se juntaram às fileiras da classe operária, tanto nas cidades do Sul quanto nas do Norte, se viram igualmente relegados ao estatuto de casta oprimida no interior da classe operária: excluídos de empregos qualificados, excluídos de praticamente todas as organizações operárias e alvo da violência racista da classe operária branca dos colonos.
No entanto, foi durante esses mesmos anos de Reconstrução que a “acumulação primitiva” do proletariado se produziu nos Estados Unidos. Um proletariado industrial de massa, mais numeroso que qualquer outra classe comparável no mundo, se formou rapidamente nos Estados Unidos durante as últimas décadas do século XIX.
Ela viu suas fileiras inchadas pelas enormes ondas de emigração vindas da Europa, que inundaram regularmente os Estados Unidos desde o fim da Guerra Civil até o início da Primeira Guerra Mundial. Foram 2,3 milhões durante a década de 1860; 2,8 milhões nos anos 1870; 5,2 milhões na década de 1880; 3,7 milhões durante os anos 1890; 8,8 milhões durante a primeira década do século XX; e 5,7 milhões nos anos 1910, apesar da interrupção da guerra mundial. (20)
A maior parte desses novos imigrantes vinha da Europa do Sul e do Leste – o que contrastava com a origem das ondas de imigração anteriores, que vinham sobretudo das ilhas britânicas e do norte da Europa. Esses imigrantes – pouco mais de 30 milhões, de 20 nacionalidades diferentes, inclusive grande número de chineses – formaram as “massas de trabalhadores livres” que povoaram as fábricas e as oficinas, construíram as ferrovias etc., quando do desenvolvimento impetuoso do capitalismo que ocorreu nos Estados Unidos nos anos seguintes à Guerra Civil. Eles mesmos eram o produto dos progressos rápidos do capitalismo na Europa – a continuidade do mesmo processo que havia anteriormente expulsado o campesinato das ilhas britânicas e que naquele momento atingia a Sicília, a Eslovênia, a Polônia e a Lituânia.
Eles não substituíram a classe operária do Estado colono de origem norte-europeia privilegiada, que formava a partir de então uma verdadeira aristocracia operária; assim como os negros livres que, ainda mais que antes da Guerra Civil, estavam relegados ao ponto mais baixo da escala social como exército de reserva de mão de obra. Esses novos imigrantes não partilhavam a mesma língua, as mesmas tradições nem a mesma religião; eram muitas vezes divididos entre eles e também separados dos primeiros setores da classe operária. Assim como o exército de reserva de mão de obra negra, eram excluídos de praticamente todos os empregos qualificados e das organizações da aristocracia operária; na maioria dos casos, eles lutaram para tomar o lugar dos negros nas fileiras operárias.
Se é verdadeiro que todo esse período foi marcado por enormes lutas operárias, elas foram todas, sem exceção, fracassadas. Esses fracassos foram antes de tudo causados pela quase divisão em castas da classe operária. Um grande número dessas lutas se propunha de fato a preservar os privilégios de um setor da classe operária contra outros (entre eles, pode-se lembrar das greves racistas que ocorreram contra os negros e, na Costa Oeste, contra os trabalhadores asiáticos, assim como greves que visavam a preservar os métodos de produção artesanais).
Se essas lutas – apesar de algumas exceções importantes – não chegaram a unir a classe operária, conseguiram em contrapartida unir a classe capitalista. Em resposta às grandes greves do início dos anos 1870, grandes mudanças se operaram no aparelho de Estado (o que deu continuidade ao processo iniciado durante a Guerra Civil). A Guarda Nacional foi criada como força militar de repressão às greves e outros levantes sociais, e como complemento ao exército profissional que foi mantido após a Guerra Civil (tanto para prosseguir com as “guerras índias” quanto para assegurar o controle da União sobre o Sul). Os proprietários de escravos vencidos foram reintegrados ao Estado, transformado a partir de então em integralmente capitalista, a fim de reforçar a classe burguesa diante do novo perigo representado pelas revoltas operárias. Foi assim que nasceu o sistema atual de partidos nos Estados Unidos.
Conclusão
Ainda que parte integrante de um único e mesmo processo internacional, a acumulação primitiva do capital nos Estados Unidos combinou elementos comuns a esse processo (a comercialização da produção, a acumulação de riquezas sob uma forma de mercadorias, a criação de uma massa de trabalhadores assalariados, a criação do poder de repressão do Estado e sua colocação a serviço da acumulação etc.), de uma maneira singularmente espasmódica. Os lucros provenientes da pilhagem dos índios da América e dos africanos serviram para unir todas as classes de colonos no que, para um observador externo, pareceria ser a república mais democrática do mundo; no entanto, sua violência, sua brutalidade, sua barbárie e sua dureza igualavam, ou mesmo ultrapassavam, as de seus rivais aparentemente menos democráticos. O Estado, essencialmente um corpo de pessoas armadas, era na origem composto de toda a população de colonos homens brancos. Seu objetivo não era o de ser uma força de repressão contra seus próprios membros, pois estavam todos bem armados, mas antes de tudo contra os escravos e os índios.
Essa formação burguesa pré-capitalista estava, desde a origem, livre da maior parte dos entraves do feudalismo que o capitalismo nascente teve de liquidar na Europa. No entanto, sua natureza complexa, aliando um Estado composto de colonos, “o livre acesso à terra” e a escravidão, representava um formidável obstáculo à acumulação da componente principal do capital: a classe operária. A destruição revolucionária desses obstáculos durante a Guerra Civil conduziu a uma solução quase única para esse problema: nem a classe pré-capitalista de fazendeiros pequeno-burgueses nem a classe pré-capitalista de escravos foram arrancadas da terra e jogadas no mercado de trabalho. Em vez disso, uma classe operária heterogênea, atravessada por divisões sociais, nacionais e raciais, se formou de início a partir das massas de camponeses expulsos de suas terras na Europa. A classe operária do Estado de colonos existente anteriormente restou socialmente intacta e deu nascimento a uma força social, reacionária em seu conjunto, nas próprias fileiras da nova classe operária.
O próprio Estado sofreu uma mudança devido tanto à Guerra Civil quanto à luta de classes que se seguiu ao desenvolvimento impetuoso do capitalismo após essa guerra. Todas as formas da democracia em um Estado de colonos subsistiram, mas o conteúdo mudou radicalmente para excluir a classe operária recentemente formada, graças à criação de um aparelho militar repressivo burguês moderno e também à criação da estrutura política bipartidária.
Esse império continental capitalista, criado por um processo global, tornou-se em alguns anos o país mais rico e o mais industrializado da Terra. Sua fase expansionista pré-capitalista marcada pela vitória na guerra hispano-americana – no momento mesmo em que a classe operária composta de imigrantes estava em vias de se constituir – se encerrava e, quase ao mesmo tempo, a “Fronteira” se fechava.
Notas
(1) Karl Marx, O Capital, Volume I, Tomo 2 (São Paulo: Abril Cultural, 1984), p. 285.
(2) Ibid., p. 262.
(3) Karl Marx, O Capital, Volume I, Tomo 1 (São Paulo: Abril Cultural, 1984), p. 125.
(4) Ibid., p. 137.
(5) Karl Marx, O Capital, Volume I, Tomo 2 (São Paulo: Abril Cultural, 1984), p. 262.
(6) Ibid., p. 262.
(7) Pode-se considerar que era a Holanda, e não a Inglaterra, o ponto mais avançado do processo de declínio do feudalismo, mas, comparada às potências imperialistas mais importantes, a Holanda tinha apenas uma importância relativa.
(8) Claro, havia diferenças entre as colônias da Nova Inglaterra: Plymouth, Connecticut e Providence eram fundadas sobre a religião e representavam, no ponto de partida, tentativas de construir mundos utópicos mais que a colônia da Baía de Massachusetts, que era concebida como a combinação de motivos religiosos e de objetivos lucrativos.
(9) É preciso acrescentar a isso a pilhagem, no sentido mais estrito do termo, graças à pirataria e à guerra de corsários praticada no mar. Não é possível mensurar exatamente a importância dessa forma de pilhagem, mas a pirataria e os corsários sempre fizeram parte – às vezes a parte mais importante – das atividades lucrativas de todos os ingleses que percorriam os mares e que abriram a via à colonização dos Estados Unidos, e elas representavam uma parte importante da atividade de seus predecessores na Nova Inglaterra propriamente dita.
(10) W.E.B. Du Bois, The Suppression of the African Slave Trade to the United States of America, 1638-1870 (Nova York: Schocken, 1969), p. 2-6.
(11) Ibid., p. 5.
(12) John D. Hicks, The Populist Tevolt (University of Nebraska Press, 1961), p. 2-4.
(13) Karl Marx, O Capital, Volume I, Tomo 2 (São Paulo: Abril Cultural, 1984), p. 286.
(14) Ibid., p. 296.
(15) Ibid., p. 297-298.
(16) Philip S. Foner, Organized Labor and the Black Worker 1619-1973 (Nova York: International Publishers, 1978), p. 3.
(17) Ibid., p. 6.
(18) Karl Marx e Friedrich Engels, Civil War in the United States (Nova York: International Publishers Co., Inc., 1961), p.71.
(19) Karl Marx, O Capital, Volume I, Tomo 2 (São Paulo: Abril Cultural, 1984), p. 263.
(20) World Almanac, ed. Harry Hansen (Nova York: New York Telegram, 1965), p. 659.
Autor: Claudio Romano
Tradução: Cláudio Soares