A Constituinte de Breno Altman e a nossa luta pela “Constituinte Com Lula”

O jornalista Breno Altman saiu a campo em defesa de uma Assembleia Constituinte para a situação da eleição de Lula Presidente apoiando-se na plataforma do PT de 2020, “Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil”, em um vídeo do site Opera Mundi (*).

Defendemos de há muito uma Assembleia Constituinte Soberana para sepultar as instituições herdadas do regime militar, e transmitidas na carta constitucional de 1988, fonte não da felicidade geral da cidadania, mas, sim, uma das fontes da tragédia institucional e social da nação brasileira, infelizmente hoje bem clara. Afinal, Bolsonaro é o produto da latrina, verdade, mas da latrina destas instituições que lhe serviram, inclusive o agora nervoso Supremo Tribunal Federal, e certamente os desafiadores generais, almirantes e brigadeiros acampados na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, no Distrito Federal.

Nesta período, então, juntos às companheiras e companheiros do Diálogo e Ação Petista (DAP), nós viemos batalhando, com outros membros do Diretório Nacional do partido, a inclusão do trecho que recuperou a bandeira da Constituinte Soberana no “Plano de Reconstrução e Transformação” há dois anos. E, hoje, como DAP, nos posicionamos pela necessidade da integração desta bandeira, com destaque, na campanha Lula Presidente, mesmo se não foi acolhida ainda, pela recém constituída federação do PT com o PCdoB e o PV. Somos por uma Constituinte Soberana, como instrumento para estabelecer a democracia cuja forma e conteúdo o próprio povo definirá num processo de ruptura democrática, produto da sua mobilização por direitos e garantias sociais e nacionais. Não há outro caminho democrático.

Do ponto de vista, então, desta luta pela ‘Constituinte Com Lula’, nós dizemos a Breno: seja bem-vindo.

Agora, esse vídeo do dia 17 pede uma discussão franca que deve, esperamos, clarificar esta questão vital para a luta do povo trabalhador. Neste sentido, é que me dirijo às companheiras e companheiros.

É claro que não se trata de outorgar poderes constituintes a este Congresso bicameral, a ser eleito no próximo dia 3 de outubro, como fez Sarney em 1986 depois de traírem, ele e outros, inclusive gente de “esquerda”, a campanha das Diretas-Já, com o resultado constitucional que sabemos. A bancada do PT votou contra aquela carta, que assinou, depois. É claro, também, que não se trata, muito menos ainda, de agora chamar uma “assembleia constituinte de notáveis”, como propõe certos grupos militares de direita e essa aberrante jabuticaba nativa que é a palpiteira família monarquista dos Orleans e Bragança.

Concordamos com Breno em que a Constituinte se trata de uma tarefa das forças de apoio e – a principal, na nossa opinião – do novo governo Lula saído das eleições de outubro: lutar pela eleição em urna de uma verdadeira Assembleia Constituinte Soberana, eleita pelo povo – queremos agregar – em novas e realmente democráticas condições. Afinal, é rigorosamente impossível revogar as 120 Emendas constitucionais a diversos artigos da carta, adotadas desde a sua promulgação em 1988, a grande maioria regressivas, além daqueles outros artigos, a maioria progressivos, alguns importantes, que ficaram pelo caminho sem a regulamentação devida.

A didática exposição do jornalista e blogueiro no vídeo, contudo, guarda diferenças – serão divergências? – com a nossa abordagem da questão da Constituinte Soberana. E o curso das suas respostas aos internautas, na gravação, a afastam ainda mais do que consideramos necessário para a vitória do PT, de Lula e do povo brasileiro.

Duas dimensões da luta estão ali subestimadas, senão ausentes:

1 – Falta afirmar pontos de programa popular – não apenas denunciar mazelas -, assim como afirmar algumas das reivindicações atuais que devem estar na base da luta pela Constituinte necessária, desde, na nossa opinião, a revogação do artigo 142 da tutela militar e a desmilitarização das PMs, ou a retomada do monopólio estatal do petróleo, passando por tópicos do tipo da recomposição imediata dos orçamentos da Saúde, da Educação e da Cultura, ou o aumento de salários e o tabelamento dos preços, e outros pontos em parte até presentes no “plano” do PT. Falando claro, faltam certos compromissos que motivem e que o povo possa depois cobrar;

2 – Falta o chamado, em relação com isso, à formação de uma frente política e social de sustentação, em nossa opinião, de caráter antiimperialista, apoiada no PT, com o PSOL e o PCdoB, mais setores do PDT, do PSB, e outros, além de movimentos populares e personalidades. Esta frente ajudaria a desenvolver a decisiva auto-organização dos trabalhadores e do povo oprimido, juntando as formas atuais e criando novas formas, sem o que não acontecerá, finalmente, muita coisa no plano institucional: nem a reconstrução, nem muito menos a transformação do país.

Essas lacunas deixam a alentada exposição em vídeo do jornalista, um tanto sem vida. Não por problema de linguagem, mas de perspectiva política. O peso da institucionalidade aí é exagerado, desmesurado. A questão Constituinte não deveria se concentrar no lado institucional que obviamente ela tem.

A conclusão de Breno Altman no vídeo é por uma mecânica possível: um referendo sobre uma Constituinte “de entrada”, decidido por maioria simples pelo Congresso Nacional na forma de um PDL (Projeto de Decreto Legislativo), que seria seguido de uma assembleia de deputados exclusiva, eleita por decisão dessa consulta em referendo, e, depois, viria o referendo “de saída”, o qual votaria a carta constitucional adotada por aquela assembleia, também por maioria simples. Legal, um belo modelo.

Mas aí, aparecem algumas questões. É o blogueiro quem insiste na inspiração chilena na “exclusivadade” do modelo de Constituinte. O termo geral “exclusivo” comporta, contudo, variações historicamente concretas.

Em 2013-14, no Brasil, tinha um sentido na campanha, na qual nos engajamos, do Plebiscito Popular por uma Constituinte Exclusiva para a Reforma Política. A presidente Dilma, em face dos protestos massivos de junho de 2013, anunciou 5 pontos na TV, um deles a proposta da Constituinte Exclusiva para a Reforma Política, mas dias depois recuou sob o fogo do próprio vice, o traidor Temer, mais o STF e a Globo. Então, o sentido do “exclusivo” era limitado, mas muito progressivo. Participaram 8 milhões de brasileiras e brasileiros no plebiscito não-oficial (popular) de 7 de setembro de 2014, onde quase 90% respondeu “Sim” à essa Constituinte Exclusiva da Reforma Política. Mas o sentido do “exclusivo” pode não ser exatamente o mesmo, agora.

No caso chileno, por exemplo, o sentido se concretizou em que não houve uma ruptura democrática, não até agora, na Convenção Constitucional ora reunida. A “exclusividade” desta Convenção chilena significou uma separação de corpos entre a Convenção eleita que trabalhou desde o ano passado, por decisão de uma consulta plesbicitaria anterior, de um lado, separada das instituições do pinochetismo que seguiram “funcionando”, de outro lado – parlamento, judiciário e presidência, forças armadas e carabineiros incluídos, todas as privatizações feitas etc. –, até a vitória no fim do ano passado, em segundo turno, do recém empossado em março deste ano, presidente Gabriel Boric, candidato de uma “nova esquerda”.

Mas o fato da não-ruptura, em si, não é surpreendente. Afinal, a Convenção Constitucional foi propiciada como uma das alternativas plebiscitadas – era a “melhor” – em função do acordo de madrugada no congresso chileno, sob o impacto de uma multidinária greve geral naqueles dias, que coroou o mais conhecido “estallido social” de outubro-novembro de 2019 (“Não é por 30 centavos, é por 30 anos”).

Esse foi o chamado “acordo de paz”, subscrito pela direita governante (governo Piñera) e a boa parte da esquerda institucional, inclusive o deputado Boric, que deixou as instituições herdadas de Pinochet “funcionando” até as eleições, dois anos depois. Aliás, até hoje, mais seis meses. E a Convenção, que estas semanas conclui os seus trabalhos, rumo a um referendo “de saída” em setembro próximo, pode ter tomado algumas decisões progressivas, mas não terá tomado em mãos – três longos anos depois do “estallido”! – as condições de vida do povo, apesar da sua maioria “progressista” em geral. Ela não revogou as privatizações do cobre – base da economia nacional -, da Previdência antes pública, e da Educação idem, nem anulou os tratados de livre-comércio, todas obras desde Pinochet e ao longo dos 30 anos da “Concertación” (governos do Partido Socialista-Democracia Cristã), acompanhada pelo PC chileno e outros, numa alternância eleitoral de governo com a direita, onde não se mudou o essencial da “herança autoritária”. Igual ou pior que aqui.

A Convenção não mudou aquelas coisa, entre outras razões, porque ela tinha uma regra conservadora de 2/3 dos votos dos representantes para poder deliberar, o que quer dizer que a direitona, mesmo minoritária, tinha um virtual poder de veto nesta Convenção, devido a uma regra saída justamente do “acordo de paz”. Em termos claros, ela não era uma Assembleia Constituinte Soberana, mas uma constituinte constrangida pela herança institucional.

Ainda não terminou esse processo constitucional chileno, mas não é isso o que queremos para o Brasil.

Um exemplo nada especulativo: se estivesse hoje aqui reunida uma Constituinte “exclusiva” paralela ao funcionamento normal das demais instituições, como seria o STF continuar bancando as chacinas do BOPE nas favelas, pois foi quem há dois anos “mandou” reduzir segundo um protocolo a presença policial nos morros, o que na vida dos pretos pobres se mostrou fator de chacinas regulares? A Constituinte remeteria a questão ao referendo futuro de uma carta constitucional, em vigor “dali pra frente”, ou agiria já como poder legítimo no país, tomando as medidas que ninguém toma, desmilitarizando, apurando e punindo os crimes? Se é assim, como deve ser, por que não evitar o tumulto nesse e outros temas, além das mortes no caso, prevendo e legitimando a luta pela Constituinte Soberana de fato?

Queremos, porque é necessária, uma ruptura democrática para o estabelecimento da soberania popular que faça valer direitos básicos (reconstrução) e que introduza mudanças estruturais fundamentais (transformação) para a justiça social e a soberania nacional. Queremos uma Constituinte originária, depositária dos poderes da República, todos os poderes, e não caudatária do vetusto STF, ou de outros senadores e deputados, dos generais etc. Não é pedir o céu, mesmo se isso, na sociedade brasileira, vier a ser revolucionário. “Não faz reformas que tem medo da revolução” (Rosa Luxemburgo).

A partir daí, percorrendo rapidamente de conjunto a exposição do jornalista e blogueiro:

A – Demarcamos do analista no vídeo quando fala da “tomada do poder” a propósito da Rússia, da China e de Cuba, de um modo, a nosso ver, perigoso, pois não a liga à auto-organização do povo trabalhador, em formas extraparlamentares que não nos cabe aqui vaticinar para o Brasil, mas que é imprescindível para enfrentar as poderosas forças imperialistas e autóctones que se oporão ao novo poder de Estado, além de vacinar contra a emergência do poder de uma nova oligarquia social ou de uma burocracia estatal;

B – Demarcamos da referência de princípio feita à “democracia participativa” no novo regime constitucional, no caso do vídeo no modelo da experiência de “democracia direta e participativa” de Chávez-Maduro. Não foi isso (plebiscitos e referendos “diretos”) o que deu a sobrevida, apesar de tudo foi a sal obra social, ao regime submetido ao criminoso bloqueio yankee. Ainda mais, que temos aqui a experiência de democracia participativa gaúcha, notadamente os Orçamentos Participativos, de cuja experiência frustrante, o então poderoso PT gaúcho nunca mais se recuperou, eleitoralmente, inclusive;

C – Demarcamos que a luta pela Constituinte necessária não é uma “mobilização social”, assim vaga. Aliás, não é bem certo, como se diz no vídeo, que são à favor da Constituinte “a OAB e movimentos sociais”, oxalá fossem. Não sabemos de tomada de posição do MST. E a CUT acaba de, há poucas semanas, tirar a bandeira histórica da sua plataforma para as eleições de 2022, num grave passo atrás, tudo por cima, claro. Razões a mais para trabalharmos desde a base para reassentar a atualidade da bandeira da Constituinte no MST e na CUT, no bojo da luta, como explicamos acima, por uma frente social e política de massas mais ampla, no rumo da auto-organização popular, não concernindo apenas a especialistas, personalidades e outros interessados;

D – E, demarcação final, nos parece despropositado a esta altura do campeonato, sobre a experiência da Constituinte portuguesa de 1975 (“ano 1 da ‘Revolução dos Cravos’ de 25 de abril de 1974”), o analista fazer um ataque ao “PS contrarrevolucionário”, isto é, ao então principal partido operário e reformista de massas, no seu apogeu após a Revolução, contraposto ao “Partido Comunista Português, revolucionário”. Para que isso? Na ocasião (1976), se adotou uma carta constitucional, digamos até avançada (certamente não era o socialismo), cujo balanço reducionista não pode contornar uma avaliação séria do PCP stalinista de Álvaro Cunhal (não o faremos aqui), senão por má vontade, ou alguma ideia sonegada ao internauta. Estranho, em todo caso.

E – Última questão, uma pergunta:

E se a boa parte dos nobres deputados e senadores da próxima legislatura eleita em outubro para este Congresso Nacional, segundo as regras que dominam as nossas eleições – a desproporção entre os Estados, os luxuosos senadores que filtram todas as decisões, o financiamento privado individual por cima do público, a sub-representação das oprimidas e dos oprimidos com o protagonismo dos “famosos”, ao invés de listas pré-ordenadas, o rareamento das negras e negros, e a virtual exclusão dos indígenas – se esse parlamento assim eleito, mesmo sendo Lula o presidente (e Alkmin o vice), não quiser dar a maioria necessária para votar o PDL de Breno Altman para convocar plebiscito ou referendo da Constituinte, o que faremos?

Nenhum de nós abandonaria o campo.

Realismo. Não queremos levar a discussão toda para o polêmico campo jurídico, onde se discutiria a legitimidade de convocar uma Constituinte Soberana, o que será sempre uma questão, afinal, de relação de forças social.

Sim, a eleição de Lula é uma alavanca poderosa, hoje a mais poderosa, de mudança da relação de forças no país. Mas em si, não é tudo, socialmente falando, a caneta do presidente pode muito, mas não pode fazer todas as reformas, nem as imediatas. É preciso despertar e mobilizar a força social de mudança, parte dela adormecida, frustrada ou dispersa no mais de um terço do crescente número de votos brancos, nulos e abstenções das últimas eleições. Aí, o engajamento de Lula é muito importante, por isso, também, levantamos a “Constituinte Com Lula”.

Daí, uma outra diferença com Breno é destacar que Lula Presidente não proporia a Constituinte ao Congresso e nem promulgaria a Constituição da assembleia “exclusiva”, o que para nós não é uma vantagem, nem um problema de obrigação legal, mas sobretudo de engajamento social. Valorizamos mais a atitude do presidente Chávez, que se engajou à época pela Constituinte e, quando uma vez eleita, foi a ela entregar o seu cargo, no sentido de reconhecer a sua soberania.

Por tudo isso, para não termos uma frustação, e até para termos a máxima força para impor a vontade do povo aos parlamentares eleitos, naquilo que deve ser a principal tarefa no novo governo Lula para fazer valer a vontade popular, é preciso, desde já, lucidez e clareza de objetivos.

É preciso, desde já, levantar pontos para um programa de emergência popular que incluam a “Constituinte Com Lula”, como Constituinte Soberana, de modo a ir conformando a força social de mudança pela reconstrução e transformação do Brasil.

25.05.22

Markus Sokol

(*) No último dia 17 de maio, o site difundiu um vídeo “20 Minutos Análise com Breno Altman” – 58 minutos e 48 segundos – com o tema “É hora de uma nova constituinte?”. Na falta de uma transcrição oficial, o leitor nos perdoará eventuais aproximações dos termos utilizados no vídeo.

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