Alberto Handfas explica em entrevista os efeitos que o Arcabouço Fiscal pode causar
Aprovado pela câmara e em debate no Senado, o Novo Arcabouço Fiscal (NAF) proposto pelo governo Lula, sob pressão do “mercado”, tem sido objeto de muitas discussões e controvérsias. O Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, chegou a dizer que a medida ajudaria a “despolarizar o país”. Por sua vez, o bolsonarista Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, elogiou: “está no rumo certo”.
O Trabalho, a respeito do NAF, ouviu o professor de Economia da Universidade federal de São Paulo (Unifesp) e dirigente sindical, Alberto Handfas, em entrevista concedida a Alexandre Linares.
O que é o Novo Arcabouço Fiscal?
O NAF é um conjunto de regras que estabelecem limites às despesas públicas primárias – que são todos os gastos, exceto aqueles com pagamento da dívida e de seus juros. Ele substituirá o Teto de Gastos de Temer (Emenda Constitucional – EC95), conforme exigido ao novo governo pelo Centrão, para aprovar a PEC da Transição no final de 2022. Apresentado por Haddad como projeto de Lei ao Congresso (PLP-93), ele foi aprovado na Câmara através de um texto (Substitutivo do relator, o deputado bolsonarista Cajado) que incluiu restrições ainda bem mais rigorosas. Embora um pouco menos brutal do que o Teto de Temer, o NAF cria mecanismos que obrigam o cumprimento das metas de superávit primário (receita acima da despesa para pagar juros da dívida). Isso às custas de gastos sociais, o que comprometerá gravemente a recuperação e transformação do país, tão almejadas na campanha de Lula.
Por que limitar elevação de gastos é tão grave?
Porque o desenvolvimento de um país o obriga a, automaticamente, elevar gastos públicos, sobretudo sociais e de investimentos em infraestrutura. Limitar tal elevação, ainda mais no Brasil de tantas mazelas sociais, significa forçar uma redução relativa dos programas sociais e de desenvolvimento. O Teto de Temer proibiu tal elevação por 20 anos, o que resultou no desastre atual. O NAF permite alguma elevação, mas muito limitada: se ele estivesse em vigor desde 2003, as despesas realizadas durante os governos Lula-Dilma teriam sido menos de um quarto do que efetivamente foram. Ou seja, quase 80% de todos seus programas sociais não teriam ocorrido – do Bolsa Família à expansão das escolas técnicas, universidades e hospitais públicos, passando pela recuperação do Salário Mínimo e pelo Minha Casa, Minha Vida.
Quais são exatamente as regras do NAF?
São múltiplas, sobrepondo-se uma à outra: limita-se o crescimento real das despesas primárias a uma taxa máxima de 2,5% ao ano. Um teto maior do que o de Temer (que era 0%), mas ainda muito estreito, já que a média no Lula/Dilma foi de 7,5%. E, ainda assim, para se alcançar tal limite, depende-se de outras três regras. São elas:
> a taxa de crescimento das despesas será de até 70% da taxa de crescimento das receitas (arrecadação de impostos etc.), se a meta de superávit primário for atingida e se, obviamente, isso não significar mais do que o 2,5%;
> se a meta não for cumprida e/ou se as despesas obrigatórias atingirem 95% do total (algo hoje próximo de acontecer), os gatilhos do Teto Temer entram em vigor: congelam-se todas as verbas obrigatórias (crescimento zero); as verbas discricionárias (cerca de 10%) ficam limitadas a um crescimento de 5% ao ano.
> se tal descumprimento repetir-se no ano seguinte, outro gatilho do Teto é disparado com a proibição de reajustes, concursos, alterações nas carreiras etc. É verdade que o NAF permite ao Executivo pedir ao Congresso um alívio, mediante explicações e através de um Projeto de Lei – e sabemos que o Centrão cobra caro para conceder isso (não por acaso Cajado incluiu tal regra…).
Há despesas livres de tais regras?
Saúde e Educação. Mas às custas de todas as demais despesas. Como o NAF anula a EC95, volta a valer a obrigatoriedade constitucional de as verbas destinadas a essas duas áreas crescerem (no mínimo) com as receitas. Portanto, os gastos nesses dois setores crescerão mais do que 2,5%, quando a receita (que acompanha o PIB) crescer mais. O problema é que o montante total (incluindo Saúde/Educação) do gasto primário estará limitado ao crescimento de 2,5% ou menos, a depender de todos os condicionantes das regras do NAF, o que significa que o crescimento de despesas em Saúde/Educação acima do limite geral esmagará os demais gastos sociais, em concursos, reajustes de pessoal, investimentos públicos etc. Aliás, outros programas livres de limitação na proposta original de Haddad – como o Bolsa Família, o Fundeb, FCDF ou Piso da Enfermagem – foram também submetidos ao limite estabelecido pelas regras do texto aprovado na Câmara.
O NAF cria amarras ao investimento público pretendido pelo governo Lula?
Investimentos públicos são fundamentais para a recuperação da infraestrutura do país – desde a construção de escolas e hospitais, a transportes, habitação, saneamento etc. São essenciais também para impulsionar a reindustrialização do país e a geração de empregos. Eles, que, nos anos 1970, representavam 10% do PIB (incluindo as estatais), têm minguando desde o Teto a 2% (menos de 0,5%, se considerarmos apenas o governo federal), insuficiente sequer para repor a depreciação dos equipamentos.
O NAF estabeleceu um mínimo de investimento de 0,6% do PIB ao governo federal (apenas um pouco superior à miséria atual), mas limitou seu crescimento anual a 0,25% do PIB. Se a meta de superávit for ultrapassada, o excedente pode ser destinado a investimento, mas nunca superando tal limite, o que é ridiculamente exíguo.
Pior, gastos com investimentos (aporte de capitais) do governo em estatais – Banco do Brasil, CEF, Petrobras etc – estão também submetidos aos limites de gastos gerais. Programas como Minha Casa, Minha Vida estarão ultralimitados. O forte e necessário impulsionamento de projetos em refinarias nacionais ou de indução estatal à reindustrialização estará condenado.
Os cortes de gastos no NAF são necessários para evitar a “catástrofe da explosão do endividamento público”?
Isso é uma mentira repetida diuturnamente pelos banqueiros e pela mídia. Por um lado, o indicador de endividamento (dívida líquida dividida pelo PIB) é de 57%, não superior à média internacional. E vem decrescendo. Não tem nada de explosivo. Ademais, tal dívida não é em dólar, mas em real – moeda que o país tem soberania para emitir. Por outro lado, o crescimento da dívida se deve muito mais às taxas de juros (que o Banco Central insiste em manter altas) e às recessões do que às despesas primárias. Gastos sociais, ao contrário, tendem a reduzir o endividamento. Pois, sobretudo em períodos de fraca atividade como o atual, geram um ciclo virtuoso de crescimento, consumo, investimentos, novos empregos. Tudo isso faz o PIB e as receitas públicas (impostos) crescerem mais. Quando despesas sociais subiram nos governos Lula/Dilma ou, emergencialmente, na Pandemia, o endividamento caiu. Quando se cortou gastos sociais, entre 2015 e 2019 (Levy/Temer/Guedes), a atividade econômica afundou e o endividamento subiu.
O secretário do tesouro já avisou que no Orçamento 2024 podem faltar mais de R$ 60 bi…
Isso ocorrerá porque o substitutivo aprovado na Câmara eliminou do texto original o mecanismo transitório (relativo apenas ao primeiro ano de vigência do NAF), que faria as despesas primárias crescerem automaticamente 2,5% em 2024. Ao invés, tal crescimento ficou vinculado à arrecadação do ano passado, mais baixa, devido à desoneração eleitoreira de combustíveis promovida por Bolsonaro. Para compensar tal corte, o governo terá de pedir no Congresso autorização de Crédito Complementar, caso as receitas se recuperem o suficiente até o início de 2024. Em todo o caso, a elaboração do Orçamento neste ano forçará mais cortes iniciais.
Reações ao Arcabouço Fiscal
Apesar da pressão para alinhamento ao governo, militantes e entidades procuram reagir
Com votação prevista para o Senado no dia 21 de junho, a luta contra o Arcabouço está muito abaixo da necessidade. As centrais sindicais anunciaram que apresentariam destaques, mas sem questionar o arcabouço como tal.
Apesar disso, há algumas reações que merecem registro, porque tiveram o mérito de não se limitar a propor emendas, mas questionam o mecanismo de conjunto, que, insistimos, não é necessário.
Conferência Municipal de Educação em São Paulo
Nos dias 27 e 28 de maio em São Paulo,os delegados da I Conferência Municipal da Educação aprovaram uma “Moção Em Defesa do FUNDEB e dos serviços públicos, contra o novo arcabouço fiscal”. Eles “repudiam o novo Arcabouço Fiscal (PLC-93), que visa a substituir o teto de gastos – EC 95, aprovada e imposta por Temer em 2016.” A moção afirma que “é necessário que o povo venha em primeiro lugar, as necessidades do povo devem estar acima do pagamento da dívida pública. Por isso,o novo arcabouço fiscal não é necessário.”
No Rio Grande do Sul
Na cidade de Canoas, Rio Grande do Sul, no dia 7 de junho, vários sindicatos se reuniram com o senador Paulo Paim (PT-RS) para discutir sobre o PL. O diretor do Sintrajufe, Marcelo Carlini, destacou que o problema dos gatilhos incluídos pelo relator do projeto na Câmara dos Deputados, Cláudio Cajado (PP-BA), ameaçam a realização de concursos, alterações na carreira dos servidores e reajustes salariais e completou “Por que o Brasil precisa de um arcabouço?”
Paim fez diversas considerações sobre a situação do Novo Arcabouço Fiscal-NAF. Sua avaliação, de acordo com o que tem observado nas movimentações no Senado, é de que é possível retirar o Fundeb e o Piso da Enfermagem das limitações do NAF e reincluir ambos os itens na lista de exceções: “Nossa saída é a mobilização”.
Servidores Públicos
Entidades filiadas à CUT, Confetam, Fenasepe, CNTE, Condsef, CNTSS, Proifes soltaram um panfleto: “Quem precisa de “Arcabouço Fiscal”? …Não é o povo e nem as finanças públicas. Na prática, ficam limitados os gastos sociais para a produção de ´superávits primários´”(site da CONDSEF).
Mobilização?
Apesar dessas e outras reações ao NAF, não há dúvidas que para barrá-lo seria necessário uma mobilização unitária do conjunto dos trabalhadores. A depender da Câmara e do Senado – que não estão nem aí para o povo brasileiro – esse Projeto, do próprio governo, será aprovado e pode comprometer os compromissos de campanha de Lula. A CUT, em particular, deveria ocupar o seu lugar nessa luta fundamental. Ao contrário, até aqui, ela está ocupada em preparar com outras centrais e movimentos populares “atos contra os juros altos”, sem qualquer reivindicação concreta.
João Batista Gomes