Segunda parte da série sobre os 200 anos da Independência do Brasil
Quem assumiu o poder em 1822, com a declaração da independência, foram os proprietários de terras e os grandes comerciantes. Mas o nascimento do Brasil como Estado nacional não foi pacífico e tranquilo. De um lado, começava a quebrar os bloqueios que a colonização de Portugal criava ao desenvolvimento do capitalismo, de outro, libertava um impulso por mudanças que contagiava até as massas de escravos e trabalhadores livres. Apesar dos esforços das elites para impedir mudanças, a independência modificou a vida do país, sobretudo porque exigiu a formação de um Estado nacional e fortaleceu cada vez mais uma dinâmica capitalista na economia, ainda que articulada com a permanência da escravidão dos negros e subordinada ao controle da Inglaterra.
A separação de Portugal
Em uma rápida sucessão de acontecimentos entre 1821 e 1823, o processo de ruptura com Portugal iniciado em 1808 avançou rapidamente. Em 26 de fevereiro de 1821 manifestações de rua forçaram o rei D. João VI a jurar lealdade à Constituição liberal e voltar para Portugal, deixando seu filho D. Pedro como regente. Os liberais portugueses queriam que o Brasil voltasse a ser colônia.
Em 2 de setembro de 1822 o governo no Rio de Janeiro recebe a informação de que o parlamento português enviaria tropas ao Brasil por considerar o regente e seus conselheiros traidores e inimigos. Em viagem a São Paulo D. Pedro proclama a Independência em 7 de setembro de 1822.
Mas a luta pela independência não termina aí. As classes dominantes tentaram uma transição através de arranjos palacianos, mas a resistência das tropas portuguesas de um lado e as mobilizações populares de outro, tornam o processo tenso e violento.
O novo Estado e a Constituinte
Para fazer nascer o novo Estado nacional foi costurada uma conciliação precária entre os que defendiam uma monarquia absoluta e os revolucionários liberais que defendiam algum tipo de monarquia constitucional que desse algum controle aos proprietários. Havia também a pressão das províncias, para não falar das esperanças populares por terra e liberdade, completamente ignoradas e que logo vão aparecer.
Uma tentativa de submeter o imperador ao juramento de uma futura Constituição é esmagada por José Bonifácio em outubro de 1822. Uma onda de prisões e censuras da imprensa prepara a abertura da Assembleia Constituinte em maio de 1823, quando D. Pedro I defende o sistema monárquico e, depois de meio ano de trabalhos, manda prender os deputados e dissolver a constituinte em 12 de novembro de 1823.
A primeira Constituição do país foi imposta em 1824 e estabelecia um governo “monárquico, hereditário e constitucional representativo”. O imperador é “inviolável e sagrado”; podendo exercer o “poder moderador”, outro nome para um poder absoluto: podia intervir sobre câmaras legislativas, Senado e judiciário; escolher os senadores em listas tríplices de eleitos, convocar assembleia geral das províncias quando julgasse conveniente, aprovar ou suspender as decisões dos conselhos provinciais, suspender juízes etc.
O imperador era também o chefe do executivo podendo nomear ministros, bispos, juízes, criar empregos, dirigir a política externa e as forças armadas. A Câmara dos deputados seria temporária e o Senado vitalício. Era uma “democracia” para as elites de proprietários: para poder votar era preciso não ser trabalhador e para ser eleito deputado era preciso ter alta renda. A religião católica foi imposta como religião oficial do Império.
As ideias liberais das burguesias revolucionárias ficaram apenas na mente e nos debates de pequenas minorias. O liberalismo aqui foi adaptado aos interesses dos escravocratas e dos grandes comerciantes: quando lutavam por liberdade e igualdade, nossos “patriotas” queriam acabar com os privilégios que beneficiavam a metrópole e prejudicavam os seus negócios. Esses líderes eram em sua maioria membros da elite e racistas, temiam a rebelião da massa dos escravos e qualquer ideia próxima de democracia.
Independência e o medo da revolução
Na Bahia as lutas se ampliam e entram em cena manifestações populares no processo de independência. A derrota das tropas portuguesas só termina em 2 de julho de 1823, depois de grande mobilização em que participam negros e indígenas, tropas regulares e voluntários. Esse bloco popular despertou grande medo nos proprietários escravocratas, que temiam que as lutas por terra e liberdade se incorporassem ao objetivo da independência e transbordassem fora do seu controle.
Na província do Grão-Pará (hoje toda região norte do país) a luta pela independência foi em parte capturada pelas exigências próprias das massas populares. Ali havia uma forte elite de proprietários portugueses e uma ligação comercial direta com Lisboa, mais próxima que o Rio de Janeiro. Na cidade de Belém a Proclamação da Independência ocorre apenas em 15 de agosto de 1823, depois que o Lord almirante Grenfell a serviço de D. Pedro I derrubou a junta de governo. Mas uma mobilização de massas exige a formação de um governo popular chefiado pelo Cônego João Batista Campos. Grenfell desencadeou violenta repressão, fuzilamentos, centenas de prisões que desembocaram no massacre por sufocamento de 256 prisioneiros no porão de um navio, episódio conhecido como “Chacina do Brigue Palhaço”.
Em Pernambuco as raízes da revolução de 1817 estavam vivas. Dez dias depois da proclamação de 7 de setembro de 1822 forma-se um governo alinhado com D. Pedro I. Em dezembro de 1823, como reação ao fechamento da Assembleia Constituinte, ocorre uma rebelião e o governo da província é derrubado. D. Pedro I envia um governador nomeado e uma esquadra para bloquear Recife em junho de 1824 e impor seu controle. Mas a resistência prossegue e em 2 de julho de 1824 é proclamada a Confederação do Equador como uma república independente unindo Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, chefiada por Manuel Paes de Andrade e frei Caneca. As tropas imperiais conseguem derrotar a confederação com apoio dos senhores de engenho. A guerra termina em 29 de novembro e os seus principais líderes são fuzilados.
O salto ao capitalismo
A Independência provocou uma transformação no Brasil. Obrigou a camada de proprietários a construir um novo e complexo aparato de Estado para a defesa do território, para a sua administração e para favorecer diretamente seus interesses. Esse processo nos primeiros anos foi caótico e contraditório, mas criou uma dinâmica de modernização econômica nova e diretamente capitalista.
Mas ao mesmo tempo em que o país se desfazia do peso parasita da decadente economia de Portugal e se abria completamente para a concorrência do capitalismo inglês (as tarifas de importação eram baixíssimas, 15%), internamente era mantido o trabalho e o tráfico de escravos negros. Um processo de acumulação de capital passou a ocorrer entre os proprietários rurais, mas esmagava a possibilidade de um desenvolvimento autônomo do capitalismo no país ao manter a escravidão e voltar sua produção para fora se favorecendo da abertura comercial. A escravidão era o coração econômico do país e a direção política do novo Estado estava com a classe diretamente interessada na conservação da escravidão.
Everaldo Andrade