Em sua edição nº33.320, de 24 de junho, o jornal Folha de S. Paulo anunciou o lançamento de uma campanha em defesa da democracia inspirada, segundo o jornal, pela campanha das “Diretas Já”, que cobriu o país entre o segundo semestre de 1983 e o ano de 1984, exigindo eleições diretas para presidente, proibidas pela legislação da Ditadura Militar implantada no Brasil em 1964. A campanha da Folha foi lançada no dia 27, num comercial veiculado no intervalo do Jornal Nacional da Rede Globo.
É bom que se recorde que a campanha Diretas era uma reivindicação para colocar abaixo a Ditadura, uma aspiração a qual desde os anos de 1970 esteve na base das grandes mobilizações de massas que sacudiram os alicerces do regime, como as maciças greves operárias cujo epicentro foi o ABC paulista.
Conforme a Folha, sua campanha recém lançada se apoia nos movimentos “Estamos Juntos” e “Somos 70%”, animados por figuras e partidos que vêm votando as medidas do Governo Bolsonaro destrutivas de direitos. No próprio dia 27, um ato promovido pelo movimento “Direitos Já”, teve como principal estrela o ex-presidente FHC, que, um dia antes reivindicou, contra o Fora Bolsonaro, “mais tolerância” com o governo, o suficiente para demonstrar que a Folha falsifica a história ao assimilar a campanha das Diretas à sua operação atual. O movimento “Direitos Já” anunciou adesão à campanha da Folha.
O que foi a campanha das “Diretas Já”?
O ano de 1983 foi marcado por intensas lutas dos trabalhadores e da juventude e por conquistas organizativas que sintetizavam os anos de mobilização desde a retomada das lutas estudantis a partir de 1975. Em 1983, o movimento operário convertera a mobilização em organização: em 28 de agosto, mais de 5 mil delegados fundam a Central Única dos Trabalhadores. O movimento que estava na base da CUT e do PT se mantinha nas ruas. Buscava uma via para pôr fim a quase 20 anos de Ditadura Militar e alimentava a permanente crise do regime político que amplificava os choques, mesmo no terreno do Congresso Nacional controlado. O MDB (a partir de 1982, PMDB), com o PCB no seu interior, tinha cada vez mais dificuldade em assegurar uma saída por cima.
É neste quadro que o PT engaja a luta com a palavra-de-ordem “Diretas Já”. Depois de uma campanha de adesões ampla, o PT e outras organizações convocam para 27 de novembro de 1983 o primeiro ato com a bandeira “Diretas Já”, o comício do Pacaembu que deu partida à campanha a qual em breve colocaria milhões em movimento pelo fim da Ditadura. No dia do Comício, Maria Victória Benevides escreve em um artigo na Folha de S. Paulo: “para o PT, a defesa das eleições diretas só se entende como conquista popular, subtraída ao jogo das cúpulas”. É assim que, num balanço do comício, Lula escreverá em janeiro de 1984: “para o PT a eleição direta não pode ser vista como a panaceia. Entendemos a eleição direta como meio eficaz de colocar na ordem do dia a solução dos grandes problemas (…) como a crise econômica (…) o desemprego e os salários, o fim da lei de segurança nacional, a autonomia e a liberdade sindical (…) graves problemas criados pelos 20 anos de arbítrio” (Diário Popular, 22/01/1984).
Em fevereiro de 1984, a Executiva Nacional do PT decide propor a continuidade da luta iniciada no comício do Pacaembu. Aí, já tramitava na Câmara dos Deputados a Emenda Constitucional de autoria do deputado peemedebista Dante de Oliveira que restaurava a eleição direta para presidente, e que o PT decide apoiar. A Executiva propõe constituir uma coordenação unitária pelas Diretas, adotar um dia nacional de luta e constituir comitês nos estados e municípios. A iniciativa das organizações do movimento operário e popular, entre eles o PT, permitiu reunir uma ampla frente pelas eleições diretas, com os partidos da oposição burguesa correndo atrás da mobilização que já levava milhares aos atos e comícios neste momento. Parte da imprensa, a Folha, por exemplo, também tentou se apropriar e dar direção ao movimento (tentando apagar sua própria colaboração ativa com a Ditadura), embora outra parte, como a Rede Globo, escondesse os atos em seu noticiário.
Entre fevereiro e abril, atos maciços cobriram o país. Estimativas falam em 6 milhões de pessoas nas ruas: São Paulo (300 mil em janeiro e 1 milhão e meio em abril), Rio de Janeiro (60 mil em janeiro, 200 mil em março e 1 milhão em abril), Goiânia (300 mil), Porto Alegre (200 mil), Belo Horizonte (400 mil). Milhares acorreram aos atos em todas as capitais e muitas cidades do interior.
As massas emparedavam a Ditadura, que, impotente, se defende esgrimindo a eleição prevista na Constituição por meio do Colégio Eleitoral, onde deputados e senadores elegeriam o novo presidente, em 1985, sem o voto popular.
Em abril, se reuniu em São Bernardo o 3º Encontro Nacional do PT. Embalados pelas grandes mobilizações, os delegados reafirmaram, apesar de posições que defendiam a saída por cima, a realização de eleições diretas e denunciaram o Colégio Eleitoral: “a luta pelas diretas deve ser conduzida na perspectiva de frustrar as tentativas de conciliação, o que inclui um firme posicionamento contra o Colégio Eleitoral (…) O PT deve conclamar todos os partidos de oposição a boicotarem o Colégio Eleitoral”.
A Traição no Colégio Eleitoral
Em 25 de abril, a EC nº 5, de Dante de Oliveira, em meio a manobras do regime, não atinge o quórum para ser aprovada. A frente que moveu a campanha das Diretas explode, com o PMDB, incluindo o PCB e PCdoB, correndo para o Colégio Eleitoral para eleger Tancredo Neves e Sarney, num acordão pelo alto com setores do regime, ao custo de manter, inclusive, depois, no Congresso Constituinte (1987-88) parte do entulho da Ditadura. Antes disso, dividiram as centenas de comitês pelas Diretas que haviam se constituído.
O PT manteve as resoluções do 3º Encontro e liderou uma campanha pelo boicote ao Colégio Eleitoral. Distintas resoluções nacionais do partido reafirmaram a luta pelas Diretas, grosso modo com a plataforma que Lula anunciara no artigo de janeiro, citado acima, defenderam a manutenção dos comitês e chamaram o boicote.
O Encontro Nacional Extraordinário do PT, em janeiro de 1985, encerrou a polêmica com o grupo parlamentar que decidiu, à revelia das instâncias partidárias, legitimar o Colégio Eleitoral. O PT reafirmou o boicote, adotando uma resolução “contra o continuísmo e o pacto social”, que abria também a luta por uma Constituinte Soberana e contra a constituinte congressual que o PMDB defendia. Os deputados Airton Soares, Bete Mendes e José Eudes foram expulsos por descumprimento das resoluções.
A campanha das Diretas, malgrado a traição da oposição burguesa e dos partidos stalinistas, acabou por encerrar o período da Ditadura, embora partes significativas de suas instituições tenham sido preservadas. A posição do PT, fiel à democracia e às demandas populares, nesta ocasião, foi um importante ponto de apoio para o desenvolvimento do partido na principal organização de esquerda do país.
Eudes Baima