Uma nota sobre Carlos Marighella

Lançado finalmente este mês em circuito comercial, o filme Marighella, de Wagner Moura, teve grande acolhida de público. A primeira coisa a ser dita do sucesso de bilheteria é que é uma resposta ao governo federal, cujos órgãos tentaram embargar a obra prevista para vir a público há quase três anos, e a entravaram com expedientes burocráticos propositais da Ancine, a Agencia Nacional de Cinema.

Uma obra de seu tempo, o filme apresenta, em particular às jovens gerações, um militante político que morreu lutando contra um regime autoritário, a ditadura militar de 1964, o que naturalmente remete ao governo Bolsonaro com sua corte de generais. Eles, como seus ancestrais, seguem no exercício da tutela militar sobre a República que nunca acabou realmente, no interesse do grande patronato e do imperialismo.

Essa é uma matéria para reflexão.

Uma outra questão é a dos métodos de luta adotados por uma parcela da geração de militantes revoltados com a passividade burocrática e a adaptação às instituições do novo regime (como o bipartidarismo imposto, Arena e MDB) por parte de partidos comunistas clandestinos, de nacionalistas e de socialistas. Essa parcela terminou brutalmente massacrada, como o filme documenta, e servindo de pretexto para uma repressão muito mais ampla sobre o povo.

Não entraremos aqui na discussão sobre as escolhas ficcionais feitas pelo artista, sobre os diálogos entre personagens que construiu, ou reconstruiu, com a liberdade de autor que, afinal, não viveu aquele período.

Registro, contudo, um detalhe atualíssimo: não lembro de protestos populares contra o “fascismo” nos idos de 1967/69, como sugere o filme, mas sim de protestos contra a ditadura, milicos, gorilas, yankees etc., e também não imagino gritar “fascistas” numa troca de tiros. Tinha de tudo, é verdade, inclusive fascistas. Mas destaco que já existia a “Frente Ampla” dos ex-golpistas de 1964 (Lacerda, JK, Jango e outros), com os comunistas aparentados aos atuais adeptos de uma “frente ampla”, hoje com ex-golpistas de 2016… Para eles, o tal fascismo justificaria a conciliação de classes, embora na realidade o regime fosse uma ditadura policial-militar (bonapartista) apoiada pela burguesia.

O autor escolheu dar no filme uma proporção de ação e introspecção dos personagens maior do que o contexto da luta de classes, para entender a tragédia histórica dos companheiros de Marighella, mas é a liberdade do artista.

Da nossa parte, saudamos o debate aberto, nos reservando uma posição “política” não sobre o filme – partidários que somos de toda liberdade na arte – mas apresentamos uma posição sobre o personagem central do filme, a partir da biografia publicada por Mario Magalhães no qual ele se baseou.

Para tanto, republicamos, abaixo, nove anos depois, uma nota de leitura da biografia de Marighella.

Novembro de 2021

O MARIGHELLA, DE MÁRIO MAGALHÃES

A biografia de Carlos Marighella (1911-1969), o ex-dirigente dissidente do Partido Comunista Brasileiro (PCB) assassinado pela ditadura como líder guerrilheiro da Ação Libertadora Nacional (ALN), recém-publicada pelo jornalista Mário Magalhães, cumpre várias funções. E não apenas para as jovens gerações.

O livro cobre uma lacuna na historiografia. Mas a biografia é também uma reportagem sobre mais de meio século da vida política do país, parcial, com certeza, mas fluida e contínua, cuja leitura provoca a reflexão.

Não estive com Marighella, mas convivi com seus apoiadores, alguns que aparecem nas 874 páginas do livro. As conclusões são pessoais.
 
Sob a égide do PCB e de Moscou
Mário historia o levante de 1935 da Aliança Nacional Libertadora, a ANL, na verdade, uma quartelada esmagada pelas Forças Armadas leais ao governo autoritário de Getúlio Vargas. O movimento da ANL foi decidido pela cúpula do PCB, liderada por Luis Carlos Prestes, assistido pelo argentino Rodolfo Ghioldi, enviado do Comitê Executivo da Internacional Comunista, controlado diretamente a partir de Moscou.

Esse episódio foi de fato decisivo na formação do jovem militante baiano, Marighella. A futura ALN que criou após romper com o PCB, 30 anos depois, tem traços de programa (de libertação nacional) e de protagonismo militar semelhantes, até as siglas se parecem.

Com propriedade, Mário Magalhães liga a forma da proclamação de Prestes em 1935 – “Todo o poder à Aliança Nacional Libertadora!” – à palavra-de-ordem lançada por Lênin, no desenlace da Revolução Russa de 1917, “Todo o poder aos sovietes!”. Mas é só na forma, pois no conteúdo não guarda relação alguma.

Não havia por trás da ANL uma rede de organizações de trabalhadores, de camponeses e de soldados, vocacionada para o exercício do poder político – como os conselhos (sovietes em russo) –, nem havia qualquer outra forma de auto-organização popular, para além da coalizão política “nacional libertadora” e relações com militares oriundos do heterogêneo movimento “tenentista” da década anterior.

Prestes nunca entendeu esta questão, não podia explicá-la aos seus discípulos no partidão, como Marighella. Prestes, líder “tenentista” exterior ao movimento operário, foi alçado à direção da Internacional Comunista (IC) e levado para morar em Moscou, de onde retornou “nomeado” secretário-geral do PCB para preparar a “insurreição”. Isso ocorreu mais de dez anos após a morte de Lênin, com a IC já completamente dominada pela nova direção de Stálin, a qual havia desbancado (prendido e assassinado) a maioria dos dirigentes da geração de Lênin e Trotsky. Fundindo o partido com o Estado, havia confiscado das massas o controle sobre os próprios sovietes, e liquidado qualquer traço de democracia no Estado e no partido.

A Internacional não orientou Prestes para uma revolução genuína. O que Moscou fazia era orientar os partidos da IC para políticas ditadas pela necessidade de preservação da burocracia governante no Estado soviético. Elas tanto buscavam “conciliar” as classes, como também podiam, de tempos em tempos, girar para posições sectárias e aventureiras, se isso fosse útil a Moscou (para forçar uma “negociação” com o imperialismo, ou simplesmente para liquidar uma direção incômoda). Prestes, como milhares de outras lideranças em dezenas de países – e o que é pior, como milhões de homens e mulheres –, eram, para os governantes do Kremlin, apenas peões num tabuleiro.

Neste ponto, Mário Magalhães poderia ter acrescentado a informação da linha política dominante imediatamente antes das “Frentes Populares”, consagradas em 1935. Antes ara a linha do chamado “Terceiro Período”, quando a IC incentivou insurreições e aventuras esmagadas em sangue pelo mundo afora, e criminosamente dividiu o movimento operário alemão frente à ascensão do nazismo, com a “denúncia” preferencial da social-democracia (1).

No Brasil, é conhecida a manifestação que, em outubro de 1934, expulsou da Praça da Sé os “galinhas verdes”, os “integralistas” de Plínio Salgado (fascistas). Foi uma iniciativa de frente única puxada pela organização trotskista de Fúlvio Abramo e Mário Pedrosa, junto com anarquistas, socialistas e sindicalistas. Boa parte do PCB em São Paulo se somou aos trotskistas. Mas a cúpula do PCB, tal como a IC, os considerava “traidores” ou “social-fascistas”.

O levante da ANL em 1935, ocorre no Brasil quando Moscou já está passando do “Terceiro Período” para as “Frentes Populares”, passagem de um tipo de sectarismo anti-alianças para o oportunismo das alianças de governo com partidos burgueses. Assim, em ambas variantes, a IC negava a estratégia da frente única vigente até o 4º Congresso da IC, com Lênin e Trotsky vivos, que, em relação às alianças, recomendava em resumo “golpear juntos e marchar separados”.

O que não foi um problema para Prestes que serviu a todos senhores do Kremlin, de Stálin a Gorbatchov, passando por Kruschov e outros. Foi assim no “Terceiro Período” e nas “Frentes Populares”, e também na “União Nacional” com Getúlio Vargas ao final da guerra. Mas voltou ao sectarismo do Manifesto de Agosto de 1950, contra o 2º governo Vargas (que adotou algumas medidas progressistas), e, de novo, depois de Vargas morto, o PCB caiu na “aliança com a burguesia nacional” até o golpe de Estado de 1964, e continuou depois (Frente Ampla).

Marighella foi educado nessa escola. Mas teve o mérito revolucionário de empolgar uma geração de militantes quando, num momento dos anos 60, terminou de romper com Moscou. Mesmo sem plena consciência da ruptura, o que é relevante, pois não originou uma superação da doutrina stalinista (e nem foi “o guerrilheiro que incendiou o mundo”, como exagera o subtítulo do livro). Mas é significativo, como o autor apurou e confirmou nos arquivos soviéticos, que o Kremlin estava acompanhando Marighella.

Do aliado Adhemar de Barros: “Limpem a bunda com o papel assinado!”
Mário Magalhães reconstitui a cassação do PCB em 1947/48, que pesou no curso da geração de Marighella.

Ao final da II Guerra Mundial, a URSS vitoriosa e o aparato mundial dos PCs sob seu controle, ampliaram a sua base à China e para quase todo o Leste da Europa, quando chegaram ao máximo de seu prestígio. Marighella era um quadro profissionalizado do aparato stalinista. Não é uma acusação, é um fato contado no livro: quando a direção da seção paulista do PCB, liderada por Hermínio Sachetta, divergiu da direção prestista, em 1937, e a Rádio Moscou entregou o nome dos dissidentes “trotskistas” à polícia e aos tribunais do regime ditatorial de Vargas, foi Marighella quem veio a São Paulo reconstruir o PCB moscovita. Seu Boletim Interno-Regional acusa os comunistas da véspera de “bando de sabotadores, espiões, desagregadores e provocadores a serviço do fascismo”!
Não será fácil nem rápido para Marighella romper com o stalinismo.

Em 1946, o PCB obtivera milhões de votos nas eleições, e Marighella era um de seus deputados, o PCB tinha a maior bancada na Câmara do Rio de Janeiro, a capital do país, controlava centenas de sindicatos, o movimento estudantil, tinha influência na intelectualidade, uma rede de jornais e era um partido operário de massas como nunca existira antes no Brasil.

Mas na nova conjuntura da “guerra fria”, culminando uma série de provocações pró-imperialistas, o PCB teve seu registro cassado. Pode-se resumir assim, numa citação livre, as passagens a respeito no livro:
“Em maio de 1947, o presidente Dutra suspendeu a União da Juventude Comunista. Na virada do mês baniu a Confederação Geral dos Trabalhadores do Brasil criada pelos comunistas em 1946, 400 sindicatos foram interditados. (Antes) o promotor Himalaia Virgulino pleiteou no Tribunal Superior Eleitoral o cancelamento da inscrição do PCB. Alegou que o partido representava os interesses da União Soviética. O PCB, por seu lado, não mobilizou suas bases pela manutenção do registro. Limitou-se a acordos de cúpula pró-legalidade. Parecia que a ofensiva não passava de delírio de fanfarrões. Até que o procurador Alceu Barbêdo emitiu um parecer pela proscrição do PCB. Marighella anestesiou a militância: ‘O parecer Barbêdo está, de antemão, fadado à completa derrota’. Por três a dois, o TSE empurrou o PCB para os subterrâneos. Quando os deputados estaduais comunistas Armando Mazzo e Escorel de Moraes cobraram de Adhemar de Barros (todos eleitos pela coligação PSP-PCB, em SP) ‘os compromissos assinados com o partido’, o governador paulista os enxotou: ‘Ora, ora, o papel assinado com vocês serve para limpar a bunda!’

Zonzos, os militantes leram um telegrama de Prestes: ‘Aconselhamos a maior calma, sereno acatamento da decisão da justiça’.

A 7 de janeiro de 1948, a mesa (da Câmara de Deputados) proclamou o resultado da votação: por 169 a 74, estavam cassados os mandatos (dos deputados do PCB)”.

Como produto desta vergonhosa derrota sem combate, nunca explicada à bases, o PCB decairá de 200 mil para cerca de 20 mil militantes estimados. Jamais voltará a ocupar om lugar de partido dirigente de massas, muito menos no auge da situação revolucionária que foi quebrada pelo golpe militar de 1964.

Uma analogia
Como não lembrar da atual ofensiva do Supremo Tribunal Federal e do TSE contra o Partido dos Trabalhadores, com respaldo maciço na mídia e apoio dos partidos de direita, incluindo parte dos “aliados” do governo (e mesmo certa “extrema-esquerda”)?

Não está claro que o julgamento “de exceção” montado para condenar dirigentes e cassar deputados do PT, a pretexto do “mensalão”, nunca provado, visa na verdade acuar o PT e, a termo, desconstituí-lo?

E como não notar também a hesitação da própria direção do PT, que tarda em chamar as bases a uma reação nacional organizada, e imagina simplesmente “virar a página”?

A situação não é a mesma de 1947, no Brasil e no mundo. E certamente o PT não é o PCB. Tanto que a reação no interior do PT, bem ou mal, começou em atos e debates. Mesmo em outros setores sociais, afinal, estão em jogo direitos democráticos duramente arrancados.

A situação não é a mesma, mas a classe dominante e suas instituições parecem não ter mudado tanto… Não estamos na “Guerra Fria”, mas os golpes pró-imperialistas voltaram, de Honduras ao Paraguai, e em outras tentativas. Na primeira oportunidade, eles tentam recuperar as posições perdidas.

Aprender com a história
O livro conta a atividade de Marighella nos anos seguintes à cassação do PCB, quando pouco a pouco ele se diferencia de Prestes, buscando na China primeiro, e em Cuba depois, uma alternativa à orientação de Prestes e de Moscou. Deste modo, chegará em 1964 estremecido com o Comitê Central, buscando relações com revolucionários dentro e fora do PCB, no brizolismo, entre os marinheiros e nas Ligas Camponesas, além dos sindicatos.

Com esses militantes, inspirando-se na direção guerrilheira cubana, como outros na época, Marighella lança a ALN, um grupo que, conta Mário Magalhães, queria uma guerrilha no campo, mas foi desbaratado antes numa guerrilha urbana.

Não se discute a coragem e a abnegação desses militantes. Todo democrata, todo militante socialista só pode se solidarizar com as vítimas do regime militar e exigir a apuração e punição de todos os crimes da ditadura. O próprio Marighella, como Mário Magalhães apurou, foi emboscado e assassinado quando estava desarmado – um crime!

Marighella tinha razão de se revoltar contra a liderança prestista, um freio da revolução, e romper com o PCB, um partido totalmente stalinizado, que não comportava um debate democrático.

O problema foi que não concluiu por reatar com o movimento socialista por meio de um autêntico partido de trabalhadores. Sua conclusão está simbolizada na contracapa do livro que reproduz o dístico da ALN: “Trabalhador, arme-se e liberte-se”. Centenas de militantes, sobretudo jovens estudantes, foram assim jogados numa aventura e destruídos pelo regime militar.

Essa política isolou uma parcela da vanguarda social da classe operaria e das massas populares, virando as costas à dura tarefa – ainda mais sob ditadura – de ajudar a organizar os trabalhadores de forma independente, em direção à sua emancipação.

Depois do assassinato de Marighella, quase uma década custará a passar, até que renasça a ação das massas populares contra a opressão e a exploração sob o regime militar, em passeatas e greves, que reunirão as condições para a reorganização sindical e política da classe trabalhadora, notadamente com a construção do PT. Fato que, como estamos vendo, três décadas depois, a classe dominante suporta muito mal, apesar da montanha de problemas e deformações acumuladas no PT e nas organizações populares.

O Marighella de Mário Magalhães pode ajudar a refletir sobre isso também.

Fevereiro de 2013
Markus Sokol

(1) Essa e outras lacunas ou insuficiências (sobre o stalinismo, sobre a sua periodização, ou ainda a problemática avaliação do seu “controle” sobre a famosa greve dos 300 mil em 1953, em São Paulo) não anulam o trabalho escrupuloso do jornalista, que como todo trabalho pode ser aperfeiçoado.

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