Por Julio Turra
Neste agosto de 2021, que marca os 45 anos da criação da tendência estudantil Liberdade e Luta, com uma maior exposição do filme de Diógenes Muniz “Libelu – Abaixo a Ditadura” em TVs a cabo, novas reações apareceram nas redes sociais e sites.
A memória nos trai, como sabemos, pois ela é filtrada pela experiência própria daqueles que viveram os acontecimentos e pela sua trajetória pessoal posterior. Mas fatos são fatos, ainda mais os que estão amplamente documentados.
O ex-militante da OSI – organização que impulsionava a Liberdade e Luta, atual corrente O Trabalho do PT – Edmundo Machado de Oliveira, publicou em 9 de agosto as suas impressões sobre o filme no facebook. Depois de registrar uma “lacuna importante” – entrevistados, como ele, que não tiveram seus depoimentos aproveitados ou não entrevistados, como Luís Favre, a quem ele atribui “centralidade do papel”, Edmundo diz que “Diógenes Muniz fez um excelente trabalho” e tece suas considerações.
Ao apontar “a incrível desatenção do diretor para com a importância e trajetória do jornal O Trabalho”, Edmundo conclui: “O jornal existe até hoje, mas para mim morreu em 1987, quando estive à frente da dissolução de 2/3 da OSI-O Trabalho no PT juntamente com Luís Favre, Glauco Arbix e Clara Ant, dentre vários outros…”. O que é falso e revelador ao mesmo tempo.
Vamos aos fatos. Ao decidir incorporar-se à construção do PT em 1980-81 a OSI mudou seu nome para Fração 4ª Internacional do PT – entrava, portanto, com “bandeira desfraldada” num partido com democracia interna – depois corrente O Trabalho do PT.
Em 1987, o grupo de dirigentes do qual Edmundo fazia parte ofereceu à corrente majoritária de Lula a dissolução de OT e o ingresso individual de seus militantes na chamada Articulação dos 113. O que provocou a reação de outros dirigentes e da maioria dos militantes de OT, que formaram um agrupamento em defesa da 4ª Internacional.
Houve dois congressos de OT em 1987 – sim, pois os que iriam dissolver-se negavam essa intenção, que hoje Edmundo reivindica – e o que agrupou 2/3 dos militantes, em contraste com 2/3 dos membros da direção que eram pela “dissolução” (daí o apelido Sonrisal), foi o que assegurou a continuidade de OT como seção brasileira da 4ª Internacional-CIR (Centro Internacional de Reconstrução) à época. Os que seguiram os dirigentes que “abriram mão da corrente”, como eles próprios diziam, diluíram-se na corrente lulista ou foram para casa.
Disputa pelo legado da Libelu?
Em 11 de agosto, o site Esquerda Diário, do Movimento Revolucionário dos Trabalhadores (MRT), publicou um artigo, dedicado ao Dia do Estudante, de Giovanna Pozzi, do Centro Acadêmico do Teatro da UFRGS, com o título: “Libelu, a juventude trotskista contra a ditadura e as lições para o Brasil de Bolsonaro”.
O artigo pretende resgatar “algumas das lições, erros e acertos dessa juventude trotskista que marcou os anos 70 com sua combatividade”, mas já começa errando ao dizer que: “A Libelu era a corrente estudantil no Brasil da OSI (Organização Socialista Internacionalista), uma das organizações do movimento trotskista internacional da época, que se referenciava em Pierre Lambert”.
Não sabemos de onde a redatora tirou isso, mas o fato é que a OSI, à época, era membro do Comitê Internacional pela Reconstrução da 4ª Internacional (Corqui), o qual a OCI francesa de Pierre Lambert ajudou a formar em 1972. Já a Liberdade e Luta era uma tendência estudantil, e não uma “juventude trotskista”, animada pela OSI no Brasil (ela sim uma organização trotskista, clandestina à época).
O artigo prossegue fazendo inúmeros elogios à atuação da Libelu, até chegar aos “balanços necessários”. Aqui a confusão se mescla com falsificações. Senão vejamos.
Ao dizer que a “Libelu foi um meteoro”, se afirma que ela foi “incapaz de se ligar ao movimento operário e se limitava a um sectarismo que por fim a levou para um giro oportunista em 1980, quando a corrente entra para o PT e logo se adapta à direção lulista”.
Assim, a entrada no PT equivaleria, segundo o texto, a “canalizar toda a energia que outrora defendia a revolução socialista pros limites do regime democrático-burguês”. O que é uma opinião, seja da autora, seja do MRT, ainda que infundada. Mas o texto prossegue: “Outra parte, que não se diluiu no PT, entrou em peso nas instituições burguesas, como os vários militantes que adentraram a redação da Folha de São Paulo. Toda a rebeldia se esvaiu rapidamente.”
É curioso como, ao menos num ponto, as posições expressas por Giovanna e Edmundo – que “adentrou” a redação do Estadão e não da Folha, como diz em seus comentários – se encontram: a diluição de OT no PT. O que é falso, e todos os petistas o sabem, pois OT sempre buscou manter uma política independente e uma fisionomia própria no partido, como os 43 anos ininterruptos de publicação de seu jornal demonstram. .
Voltando ao artigo de Giovanna, ela faz um “vôo de pássaro” sobre o movimento trotskista desde os anos 30, apenas para concluir que “é fundamental termos em mente que a organização internacional da qual a Libelu era ligada, a OSI, era uma dessas correntes centristas do movimento trotskista”.
Como já vimos, é falso, tanto quanto dizer na seqüência que: “A virada brusca na orientação da Libelu foi resultado da política consciente de sua direção. Pierre Lambert, principal dirigente da Organização Socialista Internacionalista (OSI), da qual a Libelu fazia parte, defendia uma aliança com setores da burguesia contra o imperialismo. (…) Na França, a OSI apoiou o governo burguês de Miterrand. Uma estratégia falha que levou ao liquidacionismo da OSI e, por consequência, da Libelu no Brasil.”
Um amálgama estapafúrdio, onde Lambert, dirigente francês, defendia “aliança com setores da burguesia contra o imperialismo”, a OSI, organização brasileira, “apoiou o governo burguês de Mitterrand”, tudo levando à liquidação da Libelu. A escola política frequentada pela redatora parece não se pautar por fatos históricos concretos.
Sim, houve uma polêmica em torno da posição da OCI francesa de chamar à unidade PC-PS e ao voto em Mitterrand contra os candidatos dos partidos burgueses na França em 1981, que à época foi explorada pelos partidários de Nahuel Moreno, dirigente argentino, para interromper o processo de unificação de forças trotskistas que se dava depois da revolução na Nicarágua em 1979 – o Comitê Paritário e depois a 4ª Internacional-Centro Internacional (QI-CI). No Brasil, essa interrupção unilateral levou ao afastamento das trajetórias da OSI-O Trabalho e da Convergência Socialista. Não sabemos do que se reivindica exatamente o MRT em relação a essa cisão, mas os fatos seguem sendo os fatos.
Ao seu final, o artigo de Giovanna indica que os “acertos da Libelu” seriam a inspiração para uma organização juvenil de hoje. Não é a primeira a disputar esse legado. Ela conclui o seu artigo de 11 de agosto assim: “Rebeldia intransigente, aliança operário-estudantil, inventividade criativa e independência de classe. São tarefas atuais. É nessa perspectiva que construímos a Juventude Faísca”.
Para nós, da corrente O Trabalho, cujos militantes atuam na Juventude Revolução do PT, a Liberdade e Luta faz parte da história e deixou o seu legado, independentemente da trajetória individual dos que dela fizeram parte. Mas, parafraseando o velho Marx do atualíssimo “O 18 brumário de Luís Bonaparte”, a história não se repete a não ser como farsa.