Publicamos abaixo extratos de uma entrevista reproduzida por Informações Operárias, no. 610, 01 de julho de 2020, Paris, jornal do Partido Operário Independente da França que tem publicado uma série de artigos a respeito do uso político da ciência na pandemia.
Neste caso a reprodução é da Entrevista com o professor Jean-François Toussaint, diretor do Instituto de Pesquisa Biomédica e Epidemiologia do Esporte (Irmes), publicado em 13 de junho de 2020, no International Journal of Medicine (JIM.fr) (extratos).
JIM.fr: Com relação à gestão da epidemia, você considera que, com os meios e as informações disponíveis no início de março, teria sido medicamente (e politicamente) possível não decidir sobre um confinamento geral para evitar uma desastre econômico e social?
Jean-François Toussaint; (…) É claro que, no início de março, quando nos deparamos com a China triunfante alegando que o isolamento lhe permitiu controlar a epidemia e a Itália soava o alarma, a situação era complexa e avançar para um isolamento social global podia parecer legítimo. Mas o que é surpreendente, quando observamos o desenvolvimento da crise, é uma grande falta de adaptação. Os governos não foram capazes de questionar suas próprias escolhas, todos os dias, todas as semanas. Eles não foram capazes de se perguntar regularmente: estamos indo na direção certa? O que é difícil de entender é por que razão os tomadores de decisão não perceberam os enormes efeitos nocivos de sua opção mais rapidamente para extrair dela decisões adequadas (…). Sem mencionar que a preparação para a epidemia em si não estava à altura. Devemos lembrar que em fevereiro, enquanto a Alemanha estava aumentando seus leitos de terapia intensiva e sua capacidade de teste, aqui estávamos vivendo o caso Griveaux, com o ministro responsável por preparar a França para a epidemia deixando o ministério por conta de uma situação política ridícula.
JIM.fr: Como você explica que, apesar dos dados disponíveis, tenham sido feitas escolhas diferentes?
(…) O pânico era alimentado todos os dias por discursos de tirar o fôlego. Tomemos, por exemplo, a comparação com a Peste de 1347, feita pelo Diretor Geral de Saúde. Mas, por ocasião da Peste, um terço da população europeia desapareceu! Em escala mundial, uma Peste Negra equivalente mataria 2,5 bilhões de pessoas. Estamos muito longe da epidemia atual. Houve um completo mal-entendido sobre as forças envolvidas. Não estávamos em uma situação de guerra (a própria palavra, teatralizada, fez estremecer aqueles que realmente conheceram as guerras anteriores). O que houve foi a vitória das novas crenças, nas quais os governos confiaram, alicerçando-se em simulações estatísticas que dariam as chaves do futuro
JIM.fr: Qual é a sua opinião sobre as simulações?
Existem muitas deficiências (…). Os modelos foram erguidos como verdades absolutas, quando eles são, na realidade, baseados em situações datados. A epidemia é um sistema complexo, não linear, com evoluções subexponenciais, do tipo “fractal”. O sistema SIR utilizado é extremamente simplista, como mostra o epidemiologista Laurent Toubiana. Ele resultou em altas estimativas: de 2,5 milhões de mortes nos Estados Unidos, de mais de 500.000 no Reino Unido e na França, e 70.000 mortes na Suécia. Acontece que este país, que não fez confinamento, terminou esta fase com menos de 5.000 mortes computadas. Onde estão as 65.000 mortes que faltam? As vidas foram poupadas pelo confinamento? Projete o medo e depois diga: aquilo que deixou de acontecer foi resultado de uma conduta perfeitamente controlada, equivale a dizer “eu monto no dragão; ele obedece minhas ordens”, quando ele está morto (…).
JIM.fr: Como outro exemplo dos excessos da fala, há indubitavelmente também o que diz respeito às máscaras. O que você acha ?
A comunicação sobre as máscaras demonstra uma mesquinhez intelectual. Por que não fazemos um discurso verdadeiro e divulgamos com clareza: temos tantas máscaras, reservamo-las para pessoas prioritárias, mas você pode se proteger com outros meios, improvisados certamente, mas úteis para reduzir parte da transmissão viral? Se as coisas tivessem sido descritas simplesmente como elas realmente eram, tanto epidemiologicamente quanto politicamente, a situação teria sido melhor compreendida e melhor aceita (…).
JIM.fr: Qual a sua opinião sobre a organização dos tratamentos?
Mantida pelo discurso de pânico, havia a ideia de que tudo tinha que parar. Os cuidados relacionados às duas principais causas de morte (cardiologia e câncer) foram bastante reduzidos. O aumento dos leitos de terapia intensiva foi essencial e notável. Mas teria sido útil organizar mais transferências de doentes, inclusive para o setor privado. Algumas clínicas haviam se preparado para isso. Elas permaneceram vazias e ociosas por muito tempo. Nos Estados Unidos, isso agora se traduz em demissões de pessoal de hospitais enquanto há colapso do sistema de saúde em algumas cidades.
A segunda onda, hoje, é a da deterioração do estado de saúde daqueles que não foram assistidos. Alguns tentarão explicar que é por causa da epidemia, quando resulta essencialmente do confinamento generalizado e da atmosfera de pânico que está associada a ele. Com relação aos asilos de idosos, que são os primeiros alvos dessa epidemia, hoje podemos lamentar a extrema relutância dos diretores do Ehpad (sistema de tratamento de idosos frances) quando passamos a onda em 98%; o vírus não está mais circulando. Acho que deveríamos ter ousado tomar mais decisões para permitir que os idosos vivessem com mais calma seus últimos dias. Hoje, também podemos lamentar a relutância de alguns diretores de asilo, depois que já passamos pela onda e o vírus quase não mata mais. Na ausência de laços sociais, muitos pacientes progridem muito mais rapidamente para a demência. A neurodegeneração foi acelerada devido ao colapso dos laços sociais.
JIM.fr: Qual você acha que foi o verdadeiro impacto do confinamento na mortalidade da população? Por que é tão difícil medi-lo? O que você acha do projeto da Oxford e o que você espera dele?
O que o Conselho Científico (orgão governamental) nos diz hoje? “Seja qual for a situação, a França não vai se confinar novamente!”. Há uma rejeição terrível, é a demonstração mais contundente de sua ineficácia. Quando você não tem nada além de alguns métodos raros não medicamentosos, como você pode abrir mão dessa ferramenta, se ela foi tão útil quanto seus defensores afirmaram? Obviamente, aí foi reconhecido o limite do confinamento cego e de suas terríveis consequências sociais, econômicas e de saúde que levaram a essa decisão. O confinamento cego é a “sangria” do século XXI! Devemos, a todo custo, evitar que qualquer governo um dia tome tal decisão. Especialmente desde que a instrumentalização da pandemia com confinamentos generalizados para metade da humanidade resultou apenas no fortalecimento de regimes autoritários.
Eu penso que será difícil, se não impossível, medir os reais efeitos positivos do confinamento, em particular porque não há nenhum grupo de controle (que seria necessário para qualquer intervenção terapeutica de um ponto de vista “moderno”). Uma equipe da Universidade de Oxford está realizando um trabalho notável: registrar todas as medidas tomadas país a país e o dia de sua adoção em relação à evolução da epidemia. Ele compara os dados de contaminação e mortalidade. Até o momento, essa equipe identifica-se com nossas constatações e validou nossas hipóteses: ela não constata efeito algum após a introdução de confinamento generalizado, e nenhum impacto relacionado à sua intensidade.
As comparações entre países são perfeitamente legítimas, desde que sejam levadas em conta as diferenças e taxas de variação (demográficos, geográficos, ambientais etc.) que as diferenciam. Nossa equipe avalia país por país a força dos vínculos entre mortalidade e parâmetros de pandemia (início da fase explosiva, data do pico da onda, situação antes, durante e após o pico, meio ambiente, pirâmide etária e estrutura, respostas políticas…).
Nós constatamos uma forte correlação entre a estagnação da expectativa de vida (ou mesmo seu declínio, como já é o caso nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha devido à obesidade) e as maiores taxas de mortalidade por Covid. Também observamos que, nos países onde o aumento da expectativa de vida foi maior, em alguns países africanos, por exemplo, a mortalidade é muito baixa. Se fala muito de um vínculo muito forte entre apoio econômico e mortalidade. Obviamente, deve-se compreender o oposto: em sucessão cronológica, quanto maior o número de mortes nos Estados que optaram pelo confinamento, mais eles tiveram que apoiar suas economias. Esse é um aspecto do enorme custo desse confinamento, que sofrerão programas de pesquisa, instituições culturais e os sistemas de saúde, tanto quanto a economia como um todo. Finalmente, há uma influência real da temperatura.
Essas comparações são notáveis, porque descrevem a mesma coisa em todos os lugares, com patamares diferentes. A rota é sempre semelhante: uma subida em uma etapa, uma descida em duas etapas. Isso caracteriza a fase visível que conhecemos, mas também deve ser entendido que foi precedida por uma fase não detectada da circulação viral de vários meses, que preparou a explosão da primavera (do hemisferio norte).